Foto: Cindy Tang | Unsplash

A doença mental na perspectiva budista | Parte 3

Confira a terceira parte dos cinco trechos de palestra oferecida no Hospital da Lagoa, no Rio de Janeiro, em 2010, resgatada do Acervo online da Bodisatva


Por
Edição: Miguei Berredo
Transcrição: Isabel Poncio

Estamos com nosso bambuzinho, como um garçom com a bandeja, pulando de um lado para o outro, e aquilo não cai. Milagrosamente não cai. Mas o software, o código-fonte por trás disso é o fato de que nós estamos sempre equilibrando alguma coisa. Isso é a Roda da Vida.

Isso é o aspecto sutil da palavra apego. Apego, ao mesmo tempo, é vacuidade, não tem nada. Eu elejo alguma coisa e tenho apego, mas esta eleição é uma eleição particular.

Nas relações familiares isso é muito interessante. Nós nos vemos como indispensáveis aos filhos. É muito surpreendente quando vemos que os filhos passam bem, muito bem, melhor do que acharíamos razoável, sem a mamãe e sem o papai. Aliás, não só passam bem como passam melhor. Nós temos crenças, que tentamos colocar nos filhos, de que eles não poderiam sobreviver sem nós. O apego é isso, nós estamos sustentando aquele bambu e não queremos que o bambu seja levado e sustentado por outro, nem pelo próprio filho, que, aliás, é o bambu. Não queremos transferir para ele, então dizemos: Eu sei fazer isso!

Outro dia, eu estava conversando com uma ex-esposa que tem um filho de quatro anos – não a minha, ela é ex-esposa de um outro ser. Ela dizia como dirige a vida do ex-marido. Impressionante! Aí agora o filho vai para lá e ela quer garantias de como ele vai lidar com o filho: “como é que você vai buscar ele?” e tudo o mais. Naturalmente, agora ela está perturbada porque descobriu que o ex-marido agora tem uma companhia doce e serena – esse é um grande problema, porque agora ele está independente. Até então, nesses quatro anos, ela tem feito esse grande sacrifício de sustentá-lo, mas agora ele descobriu que tem outras formas de andar.  Então, é muito interessante ver como que o apego pode se transferir além do próprio casamento que terminou, aquilo se propaga.  Então nós temos essas identidades, temos esses valores; somos equilibradores de bambus.

Eu até convidaria vocês a relacionarem os bambus que vocês estão equilibrando; lembrar que vocês já viveram sem esses bambus, já tiveram outros bambus. Mas ninguém consegue viver sem um bambu – está certo que podemos viver sem essa ou aquela pessoa, mas sem um bambu não dá! A nossa crise é essa: a pessoa fica sozinha por um tempo até que encontre um bambu, seja o qual for; aquilo não é necessariamente um outro marido, uma outra esposa, aquilo pode ser uma coisa que tome a mente da pessoa e, se ela estiver completamente ocupada equilibrando alguma coisa, a vida dela vai ficar boa, ela vai ficar com o olho brilhando.

Mas… regra no. 1: todos os bambus caem; não há bambu que não caia; então, se preparem! Uma alegria vem junto com um sofrimento. Quando deixo de equilibrar o bambu, os infernos se ampliam. Por quê? Porque o inferno é quando o bambu cai.

Nós ampliamos nossa identificação com aquele processo e nos tornamos progressivamente mais frágeis. O rato procurando uma saída é quando o bambu está condenado a cair e nós não queremos que aquilo caia. Ficamos tentando encontrar uma solução.

Eu acho isso maravilhoso: vocês olhem o que vocês já viveram; aí quando as soluções não aparecerem, vocês digam “então tá; vou fazer outra coisa.” Aí o rato sai da ratoeira! Porque o rato tem corpo de arco-íris, grande mestre! Mas quando ele quer atravessar com o corpo comum – corpo comum é aquela identidade – ele não consegue sair, mas nós saímos! Por exemplo, o menino está jogando xadrez e tentando ganhar de qualquer jeito. Quando ele não ganha, como é que ele sai daquilo? Ele sai com corpo de arco-íris – ele não é aquele personagem! Aquele personagem não consegue sair vivo do jogo – ele foi derrotado. Mas, com corpo de arco-íris, ele vai se manifestar em outro lugar. Nossa característica é essa. Quando nós estamos em crise, nos esquecemos disso; quando nós somos lembrados disso no meio da crise, não queremos nem ouvir; queremos mesmo é ganhar.

Precisamos ter essa perspectiva – só conseguimos lutar até o fim porque sabemos como sair. Algumas pessoas se protegem – elas não lutam até o fim porque elas têm medo da derrota. Para a pessoa poder namorar direito é preciso ter coragem; para ter coragem, a pessoa tem que se expor a ser derrotado. Quando somos derrotados, o que nos dá coragem? A capacidade de ter o corpo de arco-íris. A gente vai até aonde dá, se não der, nós nos levantamos e saímos pela parede, não precisamos de uma porta; nossa natureza é translúcida!

O que dá solidez são os bambus que são a essência das identidades. Vocês contemplem isso, vocês se vejam se prendendo nas coisas mínimas: o sinal está verde e passa para vermelho e vocês têm frustrações! O carro que estava na frente passou e eu fiquei trancado! Relaxe, o outro passou na frente, não tem nada! Mas tem o bambu: de uma forma trágica, o bambu do sinal verde cai. Estamos cheios de frustrações… O tempo todo… isso é o samsara, a Roda da Vida.

Isso são os múltiplos giros da Roda da Vida; sucessão de mortes e renascimentos. Cada vez que pegamos um bambu e ele cai, uma morte.  Fazemos um bambu surgir de novo: renascimento. Nós somos especialistas em dar nascimentos e colher mortes. Nós pegamos as menores coisas: a temperatura do ar condicionado dentro do carro, se a janela do quarto, de noite, está aberta e a pessoa que está dormindo conosco quer a janela fechada – um problema – precisa de dois quartos! Nós nos fixamos nas várias coisas. Esse processo de fixação é o software, o código fonte da Roda da Vida; a multiplicidade é apenas o conjunto das aparências das fixações, não é outra coisa.

Roda da Vida. Imagem: arquivo CEBB

A doença mental não é propriamente uma doença mentalela é a tragédia da fixação acontecendo

Nós alteramos o nosso comportamento quando nós temos uma fixação grande e não estamos conseguindo mais manobrar de modo causal as condições daquilo e estamos obtendo derrotas, então vamos manifestando os sintomas – o javali ferido. Os sintomas usuais do javali, quando ele está em uma condição saudável, são descritos pelos 12 Elos da Originação Dependente.

Quando nós estudamos, entendemos direitinho como é que aquilo está operando: produzem o apego, produzem os múltiplos êxitos que aspiramos e esses múltiplos êxitos geram uma sensação de confiança que produz a noção de uma identidade clara que começa a se relacionar com o mundo de um certo modo, e do décimo primeiro elo, inevitavelmente vamos colher o décimo segundo elo, que é a morte. Eu nem falo da morte física, mas da morte de uma identidade sustentada.

Para nós entendermos melhor isso tudo, precisaríamos ver que esses bambus quando eles são criados, eles não são criados assim “eu sou isso”; o bambu mesmo é criado, alguma coisa que começamos a equilibrar: quando nós estamos equilibrando alguma coisa, alguém chega e diz: o que você está fazendo? E eu respondo: eu estou equilibrando isso. E se alguém perguntar o que você é, talvez você diga: eu sou o equilibrador disso.

Assim é que os pais se caracterizam; quando eles dizem – eu sou pai, eu sou mãe, significa que eles estão cuidando de uma criança, a criança é a prioridade para aquela pessoa; quando a pessoa diz: eu sou profissional de tal coisa, esse é o bambu que eu estou cuidando, isso é o que eu faço; só que quando essa identidade está presente, ela é só um aspecto do bambu; o outro aspecto do bambu é a paisagem, uma visão de mundo; ela tem aquele bambu se movendo dentro de um mundo.

A mente da pessoa é que vai aconselhar sobre como manter o bambu equilibrado dentro daquele mundo; portanto, essa visão de mundo é crucial, pois ela é que vai determinar os pensamentos que vão ocorrer. A visão de mundo, os pensamentos e o bambu em conjunto, vão produzir também as energias que se manifestam numa pessoa. Então, se a pessoa se diz “assustada”, ela está assustada por aquilo – vem desse conjunto de elementos esse aspecto de energia.

A linguagem básica do samsara não é a linguagem discursiva; a linguagem discursiva é muito particular aos seres humanos; no entanto, na natureza, vocês vão ver uma multiplicidade de seres que se entendem sem a linguagem discursiva. Eles se olham e já se entendem. Um pequeno movimento, um pequeno reflexo de um pássaro pode significar perigo. É um processo muito sutil e rapidamente eles respondem, porque não estão operando com um processo cognitivo, filosófico, psicológico, seja o que for, estão operando num nível de responsividade.


Continuação da transcrição da palestra do Lama Padma Samten sobre as doenças mentais na perspectiva budista. Aqui estão a parte I e parte II da palestra.

O texto acima foi publicado originalmente em agosto de 2012, no site antigo da Bodisatva, por Miguel Berredo. Revisitado em novembro de 2017.


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4 Comentários

  1. […] doenças mentais. A primeira parte da palestra está disponível aqui. Aqui estão a parte I e parte III da […]

  2. […] da palestra do Lama Padma Samten sobre as doenças mentais. Aqui estão a parte I, parte II e parte III da […]

  3. Mônica disse:

    Boa Tarde! Eu gostaria de saber como posso ter acesso as outras partes da palestra? São cinco partes no total? Obrigada!

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