Foto: Dominik Lange | Unsplash

A doença mental na perspectiva budista | Parte 4

De onde brota a loucura? O Lama Padma Samten explica como a loucura aparece quando nossas identidades entram em crise


Por
Edição: Miguel Berredo
Transcrição: Isabel Poncio

“Por isso o Budismo é tão necessário – ele vem como um caminho no qual nós silenciamos, olhamos para dentro e examinamos como nós estamos operando e, a partir disso, obtemos uma liberação da operação comum da nossa mente. Isso não está dentro da nossa cultura, por isso é difícil. Mas, na verdade, isso não é difícil, apenas não está dentro da nossa cultura. Os pais não entendem, os avós não entendem, ninguém entende, aquilo tem que ser comunicado, mas não é que seja difícil – é uma questão de observar. Eu acredito que nos tempos em que nós estamos vivendo, nós vamos superar essas coisas todas. É como se nós estivéssemos agora, nesse âmbito da mente, numa época semelhante à do passado quando, na medicina, nós não conhecíamos bactérias, vírus e fungos (na medicina não se conhecia bactérias, vírus e fungos); agora, no âmbito psicológico e psiquiátrico, nós não entendemos esse funcionamento, essa complexidade interna.

O Prof. Alan Wallace diz: mesmo na Psicologia, as pessoas estudam estatisticamente – estudam o comportamento dos outros através do processo estatístico – e não entram para ver como ele opera. E para entrar e ver como opera, precisamos de meditação, precisamos aprender a acalmar a mente. Ninguém aprende a acalmar a mente num curso de psicologia, esse método não existe; então, como é que nós vamos aprender a mergulhar no processo interno se nós não temos método para isso, nem descrição. O Budismo então, neste momento, está enriquecendo a cultura global trazendo essa experiência de como nós nos contemplamos internamente; e nós vamos descobrindo uma porção de elementos que estão atuando – sempre estiveram atuando – sempre produziram sintomas e nós nem suspeitávamos disso. E não só nós encontramos esses elementos como aprendemos a manipular e a ultrapassar e encontramos na Roda da Vida um mapa mental que descreve tudo isso.

A energia se manifesta num processo muito mais rápido do que num processo de raciocínio e nós operamos essencialmente através da energia; enquanto seres civilizados, nós vamos substituindo o aspecto de energia pelo processo discursivo e temos a impressão de que a linguagem discursiva é tudo, mas não é.

A linguagem emocional, a linguagem que aciona a energia, ela é a que realmente nos mobiliza; eventualmente nós temos um discurso que fazemos para nós mesmos, mas esse discurso não nos mobiliza e a nossa energia é mobilizada de outro modo. Por exemplo, alguém que vai fazer dieta, sabe que não pode comer isso, deve comer aquilo – tem um discurso bem claro – mas esse discurso é difícil de seguir; muito mais fácil é seguir os impulsos que aparecem por meio dos olhos, ouvidos, nariz, língua e tato; a mente é o processo pelo qual nós raciocinamos e criamos uma outra mente que policia a mente que está associada aos olhos, ouvidos, nariz, língua e tato, mas a mente cognitiva tem um resultado mais frágil. Então nós estamos operando com o bambu: paisagem, mente e energia. De acordo com a energia, aparecem as secreções glandulares, adrenalina, endorfina, as dores – um conjunto de secreções glandulares – temos os lungs, a energia que aciona os vários órgãos. Nós temos as flutuações da saúde e, de acordo com o bambu que nós estamos equilibrando, as paisagens que nós estamos vendo, a mente operando e a energia respondendo, nós temos o funcionamento dos músculos, dos órgãos, glândulas.

doença mental

Foto Luke Ellis-Craven | Unsplash

O próprio Buda dizia: se você se imaginar à beira de um penhasco muito abrupto, paisagem muito longínqua, se você apenas se imaginar assim, talvez você já sinta uma tontura; se você pensar que vai agora chupar um limão, talvez a sua boca se encha de saliva. Então, nós temos uma linguagem da imaginação, da visão; essa linguagem sutil chega dentro do nosso corpo, dialoga com os órgãos, glândulas e, naturalmente nós estamos fazendo o tempo todo esse tipo de visualização onde nós andamos; no nosso trabalho, nós sentimos os ambientes de um certo modo e essa leitura que nós fazemos, essa leitura energética que nós fazemos, ela se reflete sobre o nosso corpo, então nós vamos ter doenças, perturbações, também em nível de corpo. Isso é bem complexo, vejam quantos elementos temos; mas a essência da nossa identidade está ligada à noção de um bambu e de alguma coisa que eu estou sustentando e a loucura vem dentro disso; vem quando essa identidade está em crise. Então, nós podemos ter loucuras comuns. Por exemplo, a mulher foi embora, levou o filho, está entrando na justiça para pedir pensão e está com outro sujeito que não trabalha e eu vou sustentar não só ela, mas o outro e o filho, só porque num momento eu tive um filho com ela e achei que seria uma boa escolha – é uma tragédia masculina!

Mas tem a tragédia feminina; por exemplo, eu estava conversando com uma outra ex-esposa: o ex-marido encontrou um novo ser e ela pensou: vou mandar o filho para ele ver como é; vai acabar logo esse romance. Não é fácil! Nós olhamos as coisas dentro desse tipo de jogo, desse tipo de aflição e, quando nós ficamos presos a isso, o primeiro sintoma é o aparecimento da ansiedade – nós ficamos intranquilos. Os sintomas do pensamento acelerado são pequenos acidentes, pequenos esquecimentos. Quem está na escola começa a ir mal, não consegue estudar direito, não consegue prestar atenção, não consegue se lembrar de levar o caderno que tinha que levar, porque está com parte da atenção focada nessa perturbação. Nós temos vários sintomas assim e podemos ver o agravamento – o agravamento é quando achamos que submeter outros a sofrimento devido ao fato de nós estarmos com problemas, não tem nenhuma importância, é assim mesmo. Se eu estou numa crise, vou submeter os outros aos problemas, isso não importa, não estou nem considerando. Então vocês vão ver as pessoas assaltando, matando, roubando, todo tipo de loucura; pessoas agredindo, oscilando entre agressão e apego.

Quando nas relações, se a pessoa está finalizando uma relação, ela oscila como um louco mesmo entre o apego que ela tem à pessoa e o ódio que ela sente; quando ela pensa que a pessoa podia estar com ela, ela tem apego, mas quando ela pensa que o outro pode ir embora, ela tem ódio porque, vendo o outro ir embora, ela sente a dor que o outro está causando para ela. Então parece que a pessoa se desorganizou mentalmente; mas é assim, porque o outro é objeto de apego, mas ao mesmo tempo, ele é destruição. Então, vemos pessoas assassinando a família. Não vemos muito as mulheres fazendo isso, mas os homens matam esposa e filho, não necessariamente nessa ordem. Por quê? Morreram. Aquela mulher desalmada foi embora, então o que vai fazer o pobre do homem? Matar todo mundo! Acontecem coisas horríveis. As pessoas enlouquecem, não são mais capazes de olhar o outro no contexto dele, só olham o outro dentro do seu próprio contexto e o seu contexto é aquele bambu onde elas apostaram tudo; elas não sabem viver outra coisa, só sabem viver aquilo – parece que não tem solução. A morte vem; não só a morte, mas o universo inteiro se fecha, fica escuro, não há o que fazer. É uma morte em nível de tortura, de desgraça, por um longo tempo não veem solução então, quando elas estão nesse inferno, não há mais limite.

Se a pessoa tenta, ainda assim, se manter equilibrada de algum modo, pode ser que ela trema, pode ser que ela opte por uma depressão, por ficar quieta, não falar com ninguém, ficar isolada. Procurar não enfrentar, não olhar – como os animais também fazem; eles estão vivendo numa casca – os caramujos fazem, as tartarugas fazem – se escondem dentro de um lugar. Isso é uma depressão. No meio disso, muitos sonhos, muitos medos, medo de tudo; então, tem que tomar alguma medicação, mas se a pessoa não fizer essa transição de um mundo para outro, o processo fica apenas amortecido. Quando ela faz a transição, assume uma outra identidade, ela está liberada! Todos nós estamos submetidos a isso, todos nós temos essa fragilidade; se não quisermos ter essa fragilidade, nós temos que entender o processo pelo qual isso acontece. Entender antes, porque durante, muito difícil conseguir escapar, aprendendo sobre o processo em meio ao processo. Muito difícil.

Deveríamos aproveitar que estamos um pouco melhor em algum momento e aprofundar sobre isso; especialmente tomar refúgio na natureza que não enlouquece, não adoece. Na natureza livre da mente, aquela que constrói o personagem.

Se nós estamos embicados dentro daquilo, nós não vemos, parece que nós não temos nenhuma outra perspectiva, como um rato preso numa ratoeira, rodando, mas ele está preso. As alterações glandulares aparecem; não pensem que são as alterações hormonais e químicas que o corpo possa ter, ou contrações ou tremores, ou sonhos, que sejam o problema. O problema está justamente porque não queríamos que acontecesse o que aconteceu – nossos bambus caindo.

Naturalmente nós podemos ter um pequeno número de doenças com esses sintomas que vem por uma desordem que não vêm dessa origem. É como se dentro desse mecanismo todo, um outro nível de perturbação pudesse se introduzir – é como se surgissem desordens mais por um ponto de vista de engenharia; ou seja, as pessoas têm efetivamente uma desordem química que podem ter outra origem, mas essa desordem dá uma aparência de desordem psicológica. Isso pode acontecer, mas é muito menor esse número de casos. Por exemplo, a pessoa pode quebrar um osso e ter uma série de perturbações que decorrem da quebradura e essa coisa orgânica também pode produzir algum efeito, mas o número de doenças desse tipo é muito menor do que as perturbações que brotam da região sutil, dentro desse quadro mais amplo. Esse quadro mais amplo é um quadro ao qual todos nós estamos submetidos. Na visão budista, todo mundo tem um nível de loucura porque nós operamos com os três animais no centro da roda e operamos com os 12 elos. Isso é o atestado da nossa dificuldade; nós não entendemos bem de onde surge a nossa sensação de identidade, como ela pode se dissolver e como nós podemos viver sem essa complexidade artificial que são as nossas vidas.”


Continuação da transcrição da palestra do Lama Padma Samten sobre as doenças mentais. Aqui estão a parte I, parte II e parte III da palestra.

O texto acima foi publicado originalmente em agosto de 2012, no site antigo da Bodisatva, por Miguel Berredo. Revisitado em dezembro de 2017.


 

Apoiadores

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *