Foto: DIPTENDU DUTTA/AFP/Getty Images

Celebrando o Dia dos Milagres

A equipe de Sua Santidade o Dalai Lama relata como foi o último Dia dos Milagres em Dharamsala, Índia


Por
Revisão: Dirlene Ribeiro Martins
Tradução: Celia Berliner

O pátio de Tsuglagkhang, o principal templo tibetano em Dharamsala, estava lotado de tibetanos e pessoas de outras nacionalidades que se reuniram para escutar Sua Santidade o Dalai Lama, em março deste ano. Ele foi escoltado de sua residência até o trono, preparado sob o templo, protegido pela sombra de um grande guarda-chuva cerimonial e recebido ao som dos cânticos dos monges. Assim que Sua Santidade tomou o assento, o Sutra do Coração foi recitado, enquanto chá e arroz-doce eram servidos.

A Bodisatva traduziu, na íntegra, a matéria de cobertura do Dia dos Milagres, do Grande Festival das Preces, que é celebrado em Lhasa há quase 600 anos, feita pelo site de S.S. o Dalai Lama. Este dia comemora a ocasião, durante a vida do Buda, em que ele derrotou outros ascéticos em demonstrações de feitos miraculosos.


Dia dos Milagres

No início dos ensinamentos de Monlam, voluntários servem chá para as pessoas aglomeradas no principal templo tibetano em Dharamsala, Índia, em 2 de março de 2018. Foto: Tenzin Choejor.

Depois de recitar um verso chamando os deuses, semideuses e outros para escutar os ensinamentos, Sua Santidade também repetiu os versos de Nagarjuna:

Presto homenagem a Gautama
Que movido pela compaixão
Ensinou o elevado Darma
Que leva ao abandono de todas as fixações.

Deuses ou seres humanos, todos almejamos ser felizes, e a raiz da felicidade se encontra na mente. A liberação pode levar algum tempo, mas todos podemos encontrar paz em nossa mente se dermos atenção a isso aqui e agora. Até animais, quando estão fora de perigo, podem relaxar e encontrar paz. O que nos deixa chateados é a raiva, o medo, a ansiedade. É a nossa mente irrequieta que nos faz infelizes. Para as antigas tradições indianas, lidar com as aflições mentais é mais importante do que o cultivo dos prazeres sensoriais. Os Budas não se livram de maldades e aflições mentais lavando-as com água, eles nos mostram como entender a realidade tal como ela é – só assim podemos superá-las.

Dia dos Milagres

Sua Santidade o Dalai Lama falando para a multidão aglomerada no pátio do principal templo tibetano em Dharamsala, Índia. Foto: Tenzin Choejor

Temos tendência a ver as coisas como existindo de forma independente, por si mesmas, e, quando se tornam atraentes, ficamos apegados a elas. Quando, por algum motivo, nosso acesso a elas é interrompido, ficamos com raiva. O psicólogo americano Aaron Beck me explicou que, observando pessoas a quem ele descreveu como prisioneiras da raiva, percebeu que tais pessoas viam o objeto de sua raiva como totalmente negativo.

Ao mesmo tempo ponderou que 90% dessas respostas eram decorrentes de projeções mentais. Do mesmo modo, Nagarjuna afirmou que a eliminação do carma e das aflições mentais, decorrentes de nossos exageros conceituais, levam à liberação.

A ignorância é combinação de equívoco e exagero. E é graças a insights como o da originação dependente que hoje os cientistas estão se interessando pelo que o Buda tem a dizer sobre a mente.

Sua Santidade o Dalai Lama explicou que o Buda não começou a ensinar imediatamente após sua iluminação porque imaginou que ninguém seria capaz de compreender o que ele havia percebido. Entretanto, no momento certo, ele ensinou sobre a natureza, propósito e resultados das Quatro Nobre Verdades.

Nós nos apegamos à aparência de que as coisas existem de maneira independente”, continuou o Dalai Lama, “uma visão distorcida que o Buda contrapôs pelo uso da razão. A natureza humana é compassiva, enraizada no amor que nossas mães nos mostram e sem o qual não sobreviveríamos. E ainda assim o mundo está assolado por problemas e conflitos que ocorrem quando estamos esmagados pela raiva e apego”.

Educação secular baseada em valores universais pode nos ajudar entender melhor as falhas disso. Por sua vez, o Buda ensinou que podemos dar fim ao carma e às aflições mentais desafiando nossa visão da verdadeira existência por meio da meditação sobre a vacuidade.

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Monges ouvindo os ensinamentos do Dalai Lama sobre o Dia dos Milagres, no pátio do principal templo tibetano em Dharamsala, Índia
Foto: Tenzin Choejor.

Precisamos saber quem o Buda é”, Sua Santidade continuou, “o que não significa ser capaz de identificar as marcas menores e maiores em seu corpo, mas, sim, compreender seus ensinamentos. Quanto mais nos familiarizarmos com seus ensinamentos, mais apreciaremos seu teor científico”.

O Buda ensinou diferentes temas para diferentes grupos de pessoas em diferentes momentos. Primeiro, ele explicou As Quatro Nobres Verdades. No segundo giro da roda do Darma, explicou a perfeição da sabedoria e, no terceiro giro, ele explicou sobre a natureza de Buda.

As Quatro Nobre Verdades incluíram breve descrição sobre o altruísmo, que a perfeição da sabedoria explica de maneira mais sutil. No texto Desvendando o Sutra do Pensamento, parte do terceiro giro da roda, ele esclareceu que ensinava de acordo com as diferentes disposições mentais de seus ouvintes.

Essencialmente, o Buda ensinou como transformar a mente, o que envolve o uso de lógica e da razão. Ao ver as coisas com nossa visão distorcida podemos penetrar em nossas aflições mentais. Assim como preservamos nossa saúde seguindo um protocolo de higiene física, temos de adotar um senso de higiene mental para alcançar e preservar nossa paz mental aqui e agora.

Observando que a tradição de comemorar o Buda neste dia inclui a leitura de um dos Contos de Jataka, histórias das vidas passadas do Buda, Sua Santidade comentou que a coleção foi compilada por Arysura, também conhecido como Ashvaghosha, um estudante de Aryadeva que era discípulo de Nagarjuna. A história de hoje diz respeito a uma nobre lebre altruísta que vivia na floresta, onde liderava outros animais, uma lontra, um chacal e um macaco em particular, no caminho da virtude.

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Sua Santidade o Dalai Lama comentando o texto de Je Tsongkhapa, Em Louvor da Originação Dependente, no pátio do principal templo tibetano em Dharamsala, Índia. Foto: Tenzin Choejor.

Depois de ler a abertura do Conto de Jataka, Sua Santidade anunciou que também gostaria de ler Em Louvor da Originação Dependente, de Je Tsongkhapa, transmissão que ele recebeu do Lama Kinnauri, Rigzin Tempa. Começa com um verso em homenagem ao Conquistador, que viu a originação dependente e a ensinou.

É com base nisso que podemos superar nossa visão distorcida da realidade, que é a raiz de nossas aflições”. Sua Santidade enfatizou que essas aflições mentais não são da natureza da mente. Ele observou que os ensinamentos da perfeita sabedoria, no segundo giro da roda, trata da vacuidade, que é a luminosidade do objeto, enquanto o terceiro giro da roda refere-se à luminosidade subjetiva, a mente subjetiva que está acostumada a realizar vacuidade. “Essa mente com clareza e consciência constitui a base da prática de tantra. Todas as tradições budistas tibetanas enfatizam a importância da compreensão da natureza da mente”.

Enquanto lia os versos, Sua Santidade fazia pausas para dar esclarecimentos e observações.

Compreender a originação dependente nos ajuda a superar a ignorância, o primeiro dos doze elos da originação dependente, que pode envolver a não compreensão da lei da causalidade, ou ignorância de como as coisas são.

Ele observou que ‘dependência’ contradiz a visão extrema da eternidade, enquanto originação contraria o niilismo.

Sabemos que as coisas existem porque nos afetam, mas elas existem somente porque lhes damos significado.

Para esclarecer a originação dependente, Sua Santidade mencionou que um resultado existe na dependência de uma causa, mas também podemos dizer que alguma coisa é uma causa somente porque produz um resultado. Há relação similar entre o todo e suas partes.

Chegando ao final da leitura do texto, Sua Santidade comentou que o estudo da lógica prevaleceu na Índia e que esta tradição continua no Tibete. “Os grandes textos do budismo indiano foram traduzidos para o tibetano, enriquecendo esse idioma, que no momento é a linguagem pela qual as ideias budistas são expressas de forma mais precisa. A tradição budista que se manteve viva no Tibete é como um tesouro para o resto do mundo; isto nos deixa orgulhosos”.

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Sua Santidade o Dalai Lama se juntando às preces de encerramento, na conclusão dos ensinamentos no Dia dos Milagres, no pátio do principal templo tibetano em Dharamsala, Índia. Foto: Tenzin Choejor.

Mesmo depois da fragmentação política do Tibete, as coleções de Kangyur e Tengyur têm sido fonte de unidade e harmonia. Elas foram encontradas e reverenciadas nas três províncias do Tibete, bem como em terras adjacentes como Mongólia e Ladakh. Embora eu não tenha educação muito avançada, consigo reconhecer que o conhecimento existente nessa literatura pode contribuir para expandir os diálogos. Por exemplo, o ponto de vista da física quântica de que as coisas não têm existência objetiva ressoa com a visão da Mind Only School. A diferença pode estar no fato de que em nossa tradição usamos nossa compreensão de como as coisas são para transformar a mente, o que a física quântica talvez não faça.”

Je Tsongkhapa aplicou o que ele aprendeu na prática. Nós também temos de integrar o que aprendemos em nossas próprias mentes. Precisamos estudar e refletir para que nossa fé se baseie na razão. No passado, o Monastério Namgyal, as duas escolas tântricas de Gyuto e Gyumé e conventos não leram os tratados filosóficos, mas por insistência minha iniciaram os estudos com bons resultados. Esses monges e freiras estão dando um exemplo brilhante para as próximas gerações.”

Preces de dedicação foram recitadas enquanto Sua Santidade descia do trono. Ele então caminhou em direção à sua residência, saudando amigos e seguidores na multidão sorridente em seu caminho.


Texto publicado 02 de março de 2018. Ver o texto original →


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4 Comentários

  1. Celso Padma Choden disse:

    Obrigado 🙏🙏🙏

  2. Angela Aparecida Decat Franca disse:

    Obrigada, estou interessada em obter as revistas mais antigas, gostaria de saber como podem chegar a mim, que moro em Brasilia.

    Fotos lindas e textos inteligentes, gosto muito!

    Parabens!

    Aguardo resposta e enviarei endere;o para receber o material.

    Grata!

    • Polliana Zocche disse:

      Oi, Angela!

      Você pode comprar as revistas de todas as edições pela loja online do CEBB ou na lojinha da sanga de Brasília, caso ainda tenham por lá.

      http://lojavirtual.cebb.org.br

      E se não tiverem, podem pedir que a gente manda de Viamão para os centros. =)

      Abraço e seguimos
      Polliana

  3. Gabriel disse:

    Lindo texto!! Muito precioso!

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