Convidados do Diálogo Inter-Religioso de 2018. Da esquerda para a direita: Keivan Saberin, Maria Eliane Cobalchini, Monge Seikaku (Prof. Celso Marques), Monja Shoden, Sensei Dengaku, Ricardo Lindemann, Joaquim Mello, Monge Joaquim Monteiro, Lama Padma Samten, Cacique Jaime, Líder Indígena André Benites, Cacica Julia, Salette Aquino e Fernando Leão. Foto: Polliana Zocche

5º Dia | Diálogo Inter-Religioso

No último dia do ano de 2018, o 108 Horas de Paz reuniu representantes de diferentes tradições para dialogar sobre redes, tolerância religiosa e cultura de paz


Por
Revisão: Bruna Crespo
Transcrição: Lilian Tavares e Bruna Crespo
“Quando todas as religiões perceberem que sua origem é a mesma, então serão unidas.” – Keivan Saberin (Tradição Bahá’í)

No dia 31 de dezembro, véspera de ano novo, aconteceu o já tradicional Diálogo Inter-Religioso do 108 Horas de Paz. Lama Padma Samten (Budismo Tibetano) e representantes de diferentes tradições, como a União Espírita de Viamão, Sociedade Teosófica, Nova Igreja Cristã, Tradição Bahá’í, líderes Indígenas Guarani e Zen Budismo (Via Zen), reuniram-se pela manhã para falar sobre a perspectiva de redes dentro de cada visão, tolerância religiosa e aspirações para o ano de 2019.

O Diálogo Inter-Religioso de 2018

 

Lama Padma Santem abriu o encontro comentando que as redes são ações coletivas que surgem e seguem sendo apoiadas por seus participantes. Propôs que os convidados da mesa compartilhassem, segundo suas visões, o que está andando bem e o que poderíamos propor, enquanto rede, para o bem comum e coletivo.

Comentou da intenção do 108 Horas em formar e fortalecer uma grande rede, maior do que qualquer grupo ou instituição, e da iniciativa de um centro de estudos e pesquisas para centralizar esse movimento, consolidando uma base de dados que possa servir de apoio às ações que venham a surgir. Também falou sobre a ideia de realizar um fórum internacional sobre sustentabilidade e recuperação do meio ambiente.

Na sequência, Cacique Jaime (Jataity / Guarani) concordou que a rede precisa ser discutida e avaliada, que isso é importante, mas lembrou que seu povo já vive em rede e o fundamental, hoje, é que eles possam fortalecê-la por meio da preservação dos seus “livros” – os indígenas mais velhos.

Em uma fala comovente, disse que enquanto sobreviverem, jamais vão esquecer sua história, que será sempre contada para as crianças pelos mais velhos. Eles são o elo de continuidade da rede, responsáveis pela transmissão de conhecimento para que possam viver, usar a terra de forma sustentável e plantar.

“Nosso livro não é importante para vocês, mas é importante para o nosso viver. (…) Nós sabemos por onde nossos antepassados passaram, a marca ficou em nosso coração, em nosso pensar. Esse coração que quer sobreviver, e sobrevive, é a terra, principalmente. A terra para nós é tudo.” – Cacique Jaime

O líder indígena André Benites (Tekoa Ka’Aguy Porã/ Guarani) também reforçou a intolerância e a falta de respeito às tradições dos povos da terra, afirmando que, mesmo que o juruá (“homem branco”) utilize nomes indígenas para nomear cidades, ninguém lembra da situação em que vivem hoje, no Brasil. Comentou também que muitos falam em apoiá-los, mas não sabem – não querem ouvir – o que os Guarani precisam: “acho importante a gente falar, nós falarmos por nós”. Além disso, compartilhou o sonho de um encontro internacional de troca de sabedoria entre os povos indígenas, para manter a caminhada, trocar e fortalecer sua rede.

Cacica Julia (Tekoa Nhundy / Guarani) também lembrou da rede dos guaranis: sua própria família e sua nação, que não vê limites de território. Falou da felicidade de estar presente no evento e da abertura para entenderem seu povo. Lamentou que nem sempre tenha sido assim, que os “juruá” têm uma dívida com os povos originários, mas ainda assim, os guaranis rezam por todos, pois todos dividimos o mesmo teto, a Terra.

“Nossa reza é igual, sabemos que cada um tem o seu Deus, mas cada um de nós faz a reza para viver bem, para levantar bem, para comer bem, para caminhar bem. Cada um de vocês que nos pede, nós rezamos. Nós rezamos igual, nosso teto é só um e é pra ele que nós rezamos”. – Cacica Julia

Ainda neste tema, Lama Padma Samten comentou que a nação Guarani é muito ampla, incluindo Brasil, Paraguai e Argentina, que está tentando sobreviver aos estados nacionais, os territórios criados artificialmente, e que vivemos a realidade de um colonialismo predatório, onde as inteligências das nações predam os próprios países. Ressaltou a dificuldade deles em manter sua cultura viva, sua língua, seus livros vivos (os velhos, a natureza), e a sua caminhada pelas terras. Em suas palavras: “a gente acha que vai resolver dando um pedaço de terra para eles, mas eles não são assim. Eles precisam caminhar, trocar, se ouvir, eles se conhecem uns aos outros”.

Na sequência, Salette Aquino (URI) convidou todos a questionar sobre o que sentem ao ouvir o termo intolerância religiosa. Então, ressaltou que, normalmente, quem não teve oportunidade de alguma vivência inter-religiosa não costuma refletir sobre este tema. E agradeceu à Cacica Julia por relembrar que temos um Deus comum.

Ela comentou sobre o propósito da URI, que possui círculos de cooperação em 190 países, de trazer paz, justiça e cura para todos os seres viventes. E, ao pensar em como integrá-los à rede que está se formando a partir do 108 Horas de Paz, propôs que pudessem ser um elo de ligação, como um parceiro ou um círculo de cooperação.

“Nós estamos no mesmo planeta, nós temos que cuidar dessa terra comum. Ou vocês cuidam ou vocês serão expulsos deste planeta”. – Salette Aquino

O professor e Monge Joaquim Monteiro, representante do Budismo Shin, iniciou sua fala comentando que o budismo brasileiro é muito novo e, juntamente com o Brasil, está passando por uma fase crítica, mas que traz muitas possibilidades.

Relembrou que a situação brasileira nunca foi harmoniosa e os momentos de crise são uma ocasião muito propícia para o diálogo. Ainda nesse sentido, evidenciou o papel do Budismo como uma tradição de pensamento, de posicionamento, e a necessidade das comunidades das diversas tradições e etnias em debater, discutir.

“Quando atravessamos um momento de crise, a coisa mais importante é aprendermos a falar uns com os outros, a debatermos com os outros, a explicitar as nossas diferenças de uma forma significativa.” – Monge Joaquim Monteiro

Keivan Saberin, da tradição Bahá’í, lembrou que um dos pontos essenciais de todas as religiões pode ser simbolizada pela palavra unidade. Contou um pouco sobre a fé Bahá’í, que se originou no Irã, em 1844, e fez a leitura de uma escritura sagrada e uma oração que trazia justamente o tema da unidade religiosa.

“Quando todas as religiões perceberem que sua origem é a mesma, então serão unidas. Quando percebermos que todas as religiões, budistas, cristãos, muçulmanos, enfim, todas as tradições vêm do mesmo Deus , do mesmo criador, que são capítulos do mesmo livro e revelados em épocas diferentes, um complementa o outro. Aí sim, poderemos então nos considerar unidos e verdadeiros irmãos”. – Keivan Saberin

Ricardo Lindemann (Nova Igreja Cristã / Sociedade Teosófica) trouxe à mesa as mudanças e evoluções históricas das religiões, destacando que, no fim, nos organizamos em torno delas como forma de buscar a paz. Comentou sobre a importância da tolerância e a revolução proposta por S. S. o XIV Dalai Lama baseada na compaixão: “Embora a palavra tolerância seja pequena, ela é uma coisa extremamente importante, o mundo precisa disso, precisa de tolerância para começar a formular a ideia da paz”.

Monge Seikaku (Budismo Zen / Instituto Zen Maitreya) segue o diálogo retomando alguns pontos trazidos por Monge Joaquim Monteiro, do Budismo enquanto uma tradição que se articula intelectualmente e em redes. Também falou sobre o momento atual de crise, associado a processos involutivos, tanto no aspecto humano quanto no aspecto biológico do planeta.

“Se por um lado estamos vivendo uma crise profunda, por outro lado, estamos vivendo uma época também maravilhosa. Me parece que estamos prestes a um renascimento cultural. Mas esse renascimento cultural tem uma dimensão potencialmente para ser planetária.

Porque a tomada de consciência que temos hoje é de uma responsabilidade que nós temos enquanto indivíduos, enquanto grupos, enfim, todas as formas dessas redes todas. Essas redes têm a ver com o futuro da humanidade, com a nossa sobrevivência no planeta como espécie.” – Monge Seikaku (Prof. Celso Marques)

Sensei Dengaku, também da tradição Zen budista, focou na questão da capacidade de cada um transformar a própria realidade. Comentou sobre a experiência transformadora do 108 Horas Paz, que permite nos reunimos para refletir e rever as questões pelas quais passamos e pensar no futuro. Também reforçou a qualidade dos méritos gerados a partir da rede em formação no evento e a necessidade de compartilhá-los, ampliá-los. Por fim, pediu que não perdêssemos a esperança em nós:

“Se não acordarmos amanhã com a decisão tomada de que nós elegemos a nós mesmos a cada dia e a cada situação em que estamos inseridos, talvez fiquemos dependentes de outras pessoas. Dependemos, sim, de um coletivo de pessoas que, por alguma intenção, chegamos a nos reunir.

E não estou falando de budismo ou outras tradições religiosas, estou falando de interesses, que começam num interesse pessoal, passam e permeiam o coletivo e, aí sim, isto pode se transformar numa instituição das 108 Horas de Paz. Não sabemos como isso vai seguir, mas ela já é viva.” – Sensei Dengaku

Maria Eliane Cobalchini, Presidente da União Espírita de Viamão, mencionou a importância da vida em comunidade e aprofundou o nosso nascimento em redes, lembrando que a primeira é a família que nos acolhe e nos recebe. Ela destacou que, na perspectiva espírita, estamos aqui para aprender a conviver, estar juntos, compreender e nos entender, para sermos pessoas melhores, e a religião tem um papel fundamental nisso.

“No nosso entendimento, o papel das religiões do mundo é justamente tornar o homem melhor. Por isso temos tantas religiões, porque cada uma apresenta uma forma de tornar o homem melhor.” – Maria Eliane Cobalchini

Na sequência, Joaquim Mello, representando a Sociedade Teosófica do Rio Grande do Sul trouxe um pouco a história e a perspectiva da instituição sobre as redes. Explicou que as religiões trazem a existência de um eu divino atemporal e vários povos, independente dos conflitos, conseguem acessar essa rede de sabedoria pela aspiração e pela dor.

No espírito de incentivar todos à ação, à magia da iniciativa, fez a leitura de um texto atribuído a Gothe, e nos convidou a investigar quais são nossas vontades e desejos que poderíamos torná-los mais plenos e felizes.

“Até que você esteja comprometido, há hesitação e possibilidades de voltar atrás. Sempre há ineficácia com respeito a todas as iniciativas. Mas no momento em que há compromisso decisivo, a providência também se movimenta. Um turbilhão de acontecimentos é desencadeado pela decisão. Seja o que for que você possa fazer, ou sonhar que pode, comece. A ousadia contém em si genialidade, poder e magia. Comece agora.” – Goethe, citado por Joaquim Mello

Monja Shoden (Budismo Zen) salientou a visão da tolerância como um aspecto interno, o que podemos fazer internamente a respeito dos conflitos externos, e como ajudar os outros a tolerarem aquilo que os desagrada. Reforçou a necessidade de aprendermos a tolerar os nossos sentimentos para depois transformá-los em ação, e para precisamos estar abertos uns aos outros, ao diálogo.

“Muitas vezes, a gente busca a religião e a meditação para ficar bem, para ficar em paz. E a meditação não é para ficar em paz. Sinto muito. Mas é para a gente olhar para os conflitos, olhar para o que está acontecendo e ver o que vai fazer com isso. Não temos como ficar em paz – essa paz de ficar numa boa, ficar zen, ficar legal. Não é isso.” – Monja Shoden

Para encerrar, Lama Padma Santem reforçou o papel social do Budismo e afirmou que vê o processo de redes como uma ação política, prática e objetiva, sendo esta a nossa agenda permanente. “Se estamos vivos é porque a ação em rede está funcionando”.

Ressaltou a importância de rede acolher todos os seres, até aqueles que querem trazer conflitos, lembrando que o milagre da continuidade da rede, de ultrapassar lógicas particulares e movimentos que acreditamos não serem possíveis, acontece porque ela está baseada na compaixão.

Conversas apreciativas: onde queremos chegar?

 

Na parte da tarde, os participantes foram convidados para a última roda de conversa apreciativa, desta vez mais prática, organizando e planejando as visões partilhadas em planos de curto, médio e longo prazo. Os grupos formados compartilharam ideias, propostas, pedidos e ofertas para estruturação de uma rede maior que conecte iniciativas que já estão acontecendo em todo o Brasil. A ideia é reuni-las em um site para que haja diálogo e conexão entre elas. Em paralelo, aconteceram saraus culturais.

 

Nas atividades do 108 Horinhas, ainda, João Marcelo conduziu uma palestra explicativa sobre as espécies de abelhas da região e ensinou as crianças a criarem ninhos para abelhas solitárias. Mariana Russo também ofereceu um atelier de desenho. E, à noite, como parte da celebração de virada de ano, foi oferecida a tradicional cerimônia budista do Tsog.


Confira a transmissão do quinto dia do 108 Horas de Paz 2018-19


Complemente sua leitura

  • Veja como foi a roda de conversa apreciativa final desta edição dos 108 Horas: Parte 1 | Parte 2
  • Monge Joaquim Monteiro conversou com a Bodisatva sobre política, budismo e a relação com o Oriente. Leia a entrevista →
  • Confira nossa página especial sobre 108 Horas de Paz com o perfil dos convidados desta edição e a cobertura da programação (com os resumos dos outros dias) neste link →

Acompanhe o registro fotográfico colaborativo do 108 Horas de Paz 2018-19: Ações em Rede – CEBB/ICM que está sendo feito no Facebook do CEBB! Acesse aqui.

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