Peregrinação em Meca. Foto: banco de imagens

Islam: uma religião da paz, do amor e da ética

Sheikh Rodrigo Rodrigues fala sobre os ensinamentos, a meditação e as práticas que compõem a segunda maior religião do mundo


Por
Revisão: Gabriela Souza
“Deus é Conhecedor do mistério dos céus e da terra porque conhece bem as intimidades dos corações”
Alcorão Sagrado (35:38)

Apalavra Islam em árabe está relacionada à Salam que significa paz. Ao contrário do que se especula, a paz é a base dessa crença monoteísta que remonta à Arábia Saudita do século VII. Mais do que uma religião, trata-se de um sistema de vida completo revelado por Deus — ou Allah — ao Profeta Muhammad (cerca de 570–632 d.C.), por meio do Arcanjo Gabriel. Todas as mensagens celestiais ditadas por Deus a Muhammad compõem o Alcorão Sagrado, livro que conduz o ser humano a Deus em todos os campos da sua vida. Em cerca de suas novecentas páginas, traz temas como felicidade, a reforma entre os homens e a concórdia. Os ensinamentos islâmicos se baseiam no amor e nos pontos de encontro entre os seres humanos por serem da mesma criação.

Sheikh Rodrigo Rodrigues, natural de Porto Alegre (RS), é formado em Educação Islâmica na King Saud University, na Arábia Saudita, sendo o primeiro brasileiro a se formar numa Universidade Islâmica. Atualmente, é Imam (o pregador no culto) da comunidade islâmica de Curitiba (PR). Foi também Imam da Mesquita de Porto Alegre e até recentemente era Sheikh (ou ancião, termo usado no Islam por autoridades religiosas) da Liga da Juventude Islâmica e professor de ensino religioso na Escola Islâmica Brasileira, em São Paulo. É membro do Conselho Superior de Teólogos e Assuntos Islâmicos do Brasil e da Liga dos Sábios Muçulmanos com Sede na Turquia. Perspicaz e bem-humorado, Sheikh Rodrigo esteve em São Paulo e conversou com a Revista Bodisatva.

O Islam é um sistema completo de vida. O senhor poderia explicar o que significa?

O pensamento moderno liberal nos diz que não existe um modelo de vida a seguir — a pessoa decide o que é bom para ela, o importante é ser feliz com aquilo que tem, independente se existe ou não um outro mundo. Esse é um dos fundamentos do liberalismo.

Sheikh Rodrigo Rodrigues. Foto: Acervo FAMBRAS.

Eu acredito que não há valor numa religião, num sistema religioso que diga para o indivíduo o que ele é ou não é. Pode ser um choque para o ocidente de que o Islam seja tomado como um sistema de vida.

No ocidente a religião não ocupa um espaço total na vida das pessoas, já no mundo dos muçulmanos, sim. Nós sabemos que somos livres para fazer o que quisermos aqui no mundo, mas estamos limitados com os atos que vão nos prejudicar hoje ou amanhã.

No ocidente, aquilo que você acredita não precisa necessariamente incorporar ao seu ser. Para os muçulmanos essa religiosidade interfere, em alguma medida, na nossa forma de vestir, comer, no relacionamento com a família, os amigos e a comunidade. Anda junto ao seu dia-a-dia, por isso que é um sistema de vida. Em outras religiões, como no judaísmo e no cristianismo, isso também está presente, mas acabou de alguma forma se desvinculando do cotidiano. Se a religião é aquilo que você acredita, a prática interfere na sua vida pessoal.

Um dos pilares da religião islâmica é o Zakat que consiste em doar uma parte da renda anualmente aos mais necessitados. Qual o sentido dessa prática?

O sentido dessa prática é a purificação do ego e dos desejos por meio daquilo que as pessoas mais gostam: o dinheiro. O Alcorão Sagrado fala que os bens são os encantos da vida terrena. Zakat significa literalmente pureza, por isso não usamos os conceitos de caridade ou esmola para não passar uma ideia de superioridade de quem doa. Quando compartilhamos somente 2,5 % da nossa renda anual com aquelas pessoas que necessitam, estamos nos purificando. É o dinheiro que deve servir às pessoas e não as pessoas que devem servir ao dinheiro. Acredito que todas as religiões pregam esse mesmo princípio.

No budismo, aprendemos a exercitar a generosidade e o desapego…

No Zakat exercitamos o desapego, interiormente, por ser um mandamento divino, que só é aceito por Deus se eu fizer isso de coração para a pessoa que necessita. O Zakat não é pago para religiosos e nem para entidades religiosas; o máximo que as entidades fazem é ter um cadastro dos doadores e redistribuir as doações. Ele também é utilizado para quem está começando a vida de casado ou para quem está saindo de um casamento. Em um divórcio, por exemplo, quem sempre sai prejudicada é a mulher; então, ela pode recorrer ao Zakat para se reorganizar como solteira. Sabemos que muitas mulheres não têm para onde ir e não têm trabalho quando acaba o casamento, então esse dinheiro serve de ajuda para essas mulheres e seus filhos reconstruírem suas vidas.

Para o muçulmano, qual o significado do Alcorão Sagrado?

O livro possibilita a leitura ou a recitação das palavras literais proferidas por Deus e reveladas pelo Anjo Gabriel ao profeta Muhammad. São 114 Capítulos que tratam de Deus, da crença dos anjos, do dia do Juízo final, da história dos profetas bíblicos anteriores, como Moisés, Abraão, Davi e Jacob e de Muhammad, além de algumas regras jurídicas e de comportamento. Levou 23 anos para o Alcorão Sagrado ser revelado por Deus. Ele não está organizado como a Bíblia — que começa com Deus criando o mundo e termina com o Apocalipse.

Alcorão, o livro sagrado do Islam. Foto: Abd Ulmeilk Majed.

O Alcorão está disposto em diversos assuntos distintos, o que torna a leitura difícil para muitas pessoas, pois não está escrito numa ordem cronológica. Acreditamos ser a palavra divina literal, porque Deus realmente falou aquelas frases. Consideramos como sagrado o texto original em árabe e não as suas traduções.

É a palavra de Deus que serve de guia para os muçulmanos, por isso que quem aprende o idioma árabe, acaba recitando-o no idioma original.

O Islam valoriza a ética. De que forma essa qualidade é exercida?

A palavra ética em árabe vem da palavra criação, cujo criador é Deus. A ética islâmica é uma conduta que devemos ter por causa do nosso criador. Viver em sociedade só é possível graças a certos limitadores sociais. Isso foi criado por nós seres humanos, mas no contexto islâmico Deus criou a mim para eu não cometer injustiças contra Ele. Por exemplo, o pai deve sustentar, proteger, defender e respeitar a sua família, porque isso é ético, deve ser inerente ao pai e à mãe. Os filhos devem respeitar os pais, essa é a natureza dessa relação. Deus espera que o ser humano seja assim.

Existe um versículo do Alcorão que diz: Não abra a sua mão deliberadamente e nem a feche, mas seja moderado. No ato de doar, não dê tudo o que você tem porque outras pessoas dependem de você e nem guarde tudo que você tem, porque outras pessoas que não têm podem depender de você. Isso é considerado um princípio ético e uma prova de que a pessoa obedece a Deus ou não. Deus vai nos cobrar pela nossa ética com os demais no dia do Juízo final. Mas Deus perdoa se Ele quiser nos perdoar. Somente uma ofensa que se faz a Ele é imperdoável.

O Islam nos convida a não seguir cegamente os costumes e as culturas dos antepassados, mas incentiva a meditação, o pensamento e o equilíbrio mental. Como é a prática de meditação no Islam?

Para nós muçulmanos, a meditação é uma reflexão, um exercício mental. O Alcorão condena aquelas pessoas que dizem: “Eu fiz assim, porque assim fizeram meus pais”. É importante ter autocrítica, saber discernir.

O Alcorão pede para a pessoa fazer essa reflexão em relação àquilo que ela acredita, em relação a Deus, em relação ao seu comportamento, pede para ela se questionar frequentemente.

E se os seus pais estiverem errados? Essa é a meditação para a pessoa não seguir cegamente os costumes de outras pessoas e do costume religioso. Há um versículo no Alcorão que diz assim: Com certeza, na criação dos céus e da terra, há sinais para os sensatos. Você só poderá refletir se parar e observar a criação de Deus, a sua natureza, os animais e o ser humano. Olhar para si mesmo como uma criação divina.

Os teólogos muçulmanos ensinam que este coração é como um recipiente que fica cheio com aquilo que nós colocamos dentro. Enchemos nosso coração com tudo que escutamos e observamos.

Passamos a falar e a agir a partir daquilo que transborda de dentro do nosso coração. Tudo isto aqui não foi em vão, nós não existimos em vão. O que acontece conosco, seja considerado bom ou ruim, são apenas conceitos relativos. Essa é a nossa meditação.
Islam

Criança em momento de oração. Foto: Chidioc

Os muçulmanos do mundo inteiro rezam as cinco orações diárias em direção à Meca na Arábia Saudita. O senhor poderia nos explicar o sentido dessa prática?

Para fazer a oração, paramos os nossos afazeres. Começamos o ritual nos lavando, fazemos uma purificação com água, depois tiramos os sapatos para entrar no recinto sagrado, que é a mesquita, só assim podemos nos voltar para o nosso Criador. A oração é feita em fileira seguindo um guia, embora cada um faça a sua oração individualmente. Fazemos movimentos com o corpo e botamos a testa e o nariz no chão simbolizando o cheiro da Terra e de como nós precisamos dela. É também o momento em que a pessoa está mais submissa.

A prostração nos lembra de onde nós viemos. No nosso dia-a-dia paramos assim para nos reconectar com Deus. Vamos retornar à nossa origem. É um sinal de humildade, de conexão com a criação de Deus na Terra, para entendermos que a nossa identidade é uma criação ilusória. Esse é o momento máximo da oração.

Salat, em árabe, quer dizer oração e também religar. As cinco rezas são os momentos mais felizes do nosso dia, porque é o momento que a pessoa está mais próxima de Deus. No retiro de um mês de jejum, no mês do Ramadan, nós passamos dez dias e dez noites na Mesquita orando. Isso fará a pessoa ver o que está fazendo. E nas alturas, há somente o Criador.

Para o Islam, existe a noção de transitoriedade, de impermanência de todas as coisas?

O Islam trata a alternância inevitável que a pessoa vive na palavra em árabe: coração ou QalbQalb significa mudar os sentimentos que não são fixos, que podem mudar consciente e inconscientemente. Hoje, nós somos fiéis, mas por algum motivo externo amanhã não seremos mais. O pecado ou essa alternância existe na vida do fiel, por isso no Alcorão se diz: Nos mantenha na senda reta. Na questão da fé o ser humano é inconstante.

Um teólogo do século XVIII classifica os pecados como momentos ou fases da alma. A luxúria ou a inveja é um momento em que a pessoa se perde; ela deixa de prestar o objetivo para o qual existe e comete o pecado ou, como conhecemos, a origem dos males. Ler o Alcorão e botar a testa no chão, para um momento de reflexão solitário, é essa a prática diária que o fiel deve fazer.

Para o senhor, como a grande imprensa vem tratando a questão do Islam?

A cultura muçulmana existe há mil e quatrocentos anos. E a imprensa: existe há quantos? Um fenômeno geopolítico que se acentuou a partir de interesses políticos e econômicos, criando um tipo de xenofobia e de ideias equivocadas sobre a cultura islâmica. Nós temos uma imprensa que não separa a religião — enquanto dogma — de uma crença que rege conflitos.

Quando Saddam Hussein e Bashar al-Assad cometem atrocidades, os jornais mencionam a religião deles. E eles não têm religião. Esse estereótipo foi criado e se perpetua no imaginário das pessoas. Posso ter até uma cara de islâmico, de Bin Laden (risos), mas as pessoas não sabem o que eu penso, elas não perguntam aos muçulmanos e acabam associando os acontecimentos do Oriente Médio com o terrorismo.

Infelizmente, uma grande parte da mídia é financiada para fazer esse papel. Somos totalmente contra essa violência. Deveriam ser veículos de utilidade pública e não divulgarem notícias falsas que acentuam ainda mais os estereótipos. Damos graças a Deus por um trabalho como o de vocês, por publicarem um contraponto sobre o que nós muçulmanos achamos.

Hoje, o Islam é a segunda maior religião do mundo. Como é a sua presença no Brasil?

O interessante é que hoje as pessoas podem optar por seguir uma determinada religião. Como resultado de uma construção da nossa sociedade, o Islam aqui passou por uma transformação. Acredito que a religião hoje seja mais necessária do que antes.

Antigamente, a religiosidade era uma consequência sociocultural. Sou um Sheikh brasileiro e acredito que faça parte do ser humano procurar a sua religiosidade: eu quero ser budista, eu quero ser hindu, eu quero ser muçulmano, quero seguir as religiões orientais. Isso é bom! Ainda bem que estamos nos descobrindo, porque não somos uma mercadoria, um título de eleitor ou um CPF. Qualquer religião nos mostra que existe um Deus, uma crença, uma evolução, e que você não é somente números.

Quanto mais as pessoas compreenderem a si mesmas, mais elas vão seguir as suas religiões da melhor forma. As pessoas mal resolvidas com elas mesmas, mancham o nome e a fama das religiões. A religião tem esse princípio: organizar a pessoa, deixá-la suave, tranquila e em paz.

E, se dentro de uma religião que segue, a pessoa não está desse jeito, ela está tomando o remédio da forma errada. Imagina esse nosso mundo louco e sem religiões para as pessoas se encontrarem…como seria?! Os muçulmanos não são tão diferentes das demais pessoas. Nós acreditamos, como os budistas e os kardecistas, que o ser humano existe antes da religião, antes mesmo das normas religiosas. E pessoas aqui no Brasil deveriam enxergar o Islam de uma forma diferente.

Antes da religião, o muçulmano é um ser humano, independente da sua religião. Deve-se respeitar tanto quanto você gostaria de ser respeitado. Se a pessoa for boa e seguir bem na vida, só irá fazer bem para ela, independente da religião. E o julgamento final não pertence a nós — pertence a Deus. E Deus sabe mais!  Assalamu Alaikum (que a paz de Deus esteja convosco), conclui Sheikh Rodrigo Rodrigues.

Wa Alaikum Assalam que a paz também esteja com vocês.
É o que nós da Revista Bodisatva desejamos.


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7 Comentários

  1. Sandra disse:

    Ótimo artigo. Parabéns à Revista Bodisatva, por abrir espaço para o diálogo com outras religiões/filosofias. Fiquei com uma dúvida sobre o conteúdo do artigo, não sei se é pertinente num comentário daqui…. Qual seria o papel das mulheres na religião? Pois, no meu senso comum sobre ela, vejo apenas os homens serem os sujeitos ativos, e as mulheres acabam sendo excluídas das práticas e encaradas como seres submissas. E pensando em mulheres, pensamos em 51% da população do mundo. Me parece um pouco “injusto” e contraditório com a ideia de ética. Enfim… uma pena o entrevistado não citar esse ponto, eu gostaria de ouvi-lo.

  2. José Maxsuel disse:

    Olá revista Bodisatva. Fico muito feliz quando conheço a perspectiva de tradições religiosas diferentes. Obrigado por trazê-las. Me sinto abrir a cabeça e ampliar o que vejo. É de um bem. Abraço. Paz.

  3. Maravilha. Participo pelo CEBB Curitiba da ASSINTEC associação inter-religiosa de educação (https://assintec.org/) onde participam representantes do Islã, Judaímos, Igrejas Cristãs, Matriz Africana, Povos da Terra, Fe’Bahai, Orientais e Espíritas. Hoje tivemos um café da manhã oferecido na Sinagoga de Curitiba com a presença das tradições religiosas, Prefeitura Curitiba e Pinhais e do Secretário de Eduação do PR. Estou compartilhando este texto com todos eles. Grato

  4. APARECIDA ELISABETE PONTES disse:

    Achei o artigo muito bom e esclarecedor, no entanto concordo com a leitora Sandra quando o assunto são as mulheres,

  5. Maria Helena Zamora disse:

    Ótima matéria, linda foto e palavras de paz.

  6. Eduardo disse:

    O diálogo esclarecedor entre religiões torna a humanidade melhor.

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