Da terceira geração de yogis da linhagem Drukpa, Sua Eminência Kunga Rinpoche esteve no Brasil e durante retiro em Recife (PE) conversou com a Bodisatva
A experiência de ouvir o Darma em tibetano é equivalente a despertar num sonho. Ao acordar na presença de um mestre de pura alegria, experienciamos o coração aquecido por um tempo. Foi com os olhos alegres e o coração transbordando que entrevistei Sua Eminência Kunga Rinpoche. Com voz firme, ele conversou com a Bodisatva sobre a importância do encontro com um mestre genuíno, o caminho dos retiros, a prática na vida cotidiana e sobre como a iluminação é possível para todos os seres.
Treinado no Butão, Sua Eminência Kunga Rinpoche é o renascimento de um grande yogi da região de Lahaul (Garsha), nos Himalaias Indianos, que foi discípulo direto de Drubwang Shakya Shri, mestre da Linhagem Drukpa do budismo tibetano fortemente reconhecido no último século.
Conversar com o Rinpoche não foi algo comum e simples porque, afinal, quem de nós se lembra da vida intrauterina? Particularmente, não me lembro sequer os nomes de pessoas que conheci há um mês. Mas para Kunga Rinpoche, seu treinamento espiritual começou em outras vidas.
“Que eu me lembre foi no útero da minha mãe, uma praticante sincera do Darma. No desenvolvimento intrauterino, me recordo de ouvir os ensinamentos e de fazer as práticas que ela fazia. Desde lá, o Darma esteve presente. Isso se revela através da predisposição positiva de outras vidas para que a espiritualidade se desenvolvesse e eu pudesse praticá-la” — fala, como poesia.
Aos 14 anos, Sua Eminência se tornou monge, permanecendo no monastério por três anos cumprindo os rituais e as práticas formais. Passado esse período, estudou filosofia em uma universidade monástica e se dedicou ao retiro tradicional de três anos, três meses e três dias. Após o retiro, o Rinpoche se dedica a oferecer os ensinamentos do Darma.
“Sem a relação com um mestre espiritual é difícil estabelecermos um caminho genuinamente positivo. Algumas pessoas têm a predisposição de comprar livros sobre o Darma, ler e achar que entenderam os ensinamentos e que estão aptas a repassá-los. De fato, elas podem entender alguma coisa, mas são só palavras.
A experiência do Darma é transmitida por aqueles que acessaram os ensinamentos e realizaram a experiência. Tradicionalmente, chamamos isso de linhagem de bênçãos, que é transmitida de mestre para discípulo desde o Buda. A bênção da realização espiritual não tem como ser transmitida pelos livros, mas por mestres de realização.
Podemos desenvolver uma mente que conhece muitas palavras e muitas coisas e a riqueza de conhecimento teórico gera orgulho. A partir da sensação de profundo saber, quando a pessoa ensina sem que, de fato, tenha experiência, pode causar prejuízos”.
“O Buda ensinou o Darma de maneira adaptável aos mais variados estilos de vida, que se refere aos renunciantes. Esses se manifestam em três veículos que denominamos ouvintes, budas auto surgidos e bodisatvas, guerreiros espirituais. O Buda usou inúmeras abordagens, de acordo com a capacidade e aspirações de cada um.
Por outro lado, podemos ver praticantes vivendo em montanhas isoladas e isso não significa que estejam fazendo uma boa prática ou atingindo a iluminação. Depende da posição de mente deles, das emoções que estão sendo cultivadas, mesmo em isolamento. Eles podem estar lá, apenas, com o corpo; se distraem, descem e sobem a montanha e fazem práticas. Esse tipo de retiro não gera muito benefício.
Em contrapartida, há relatos sobre praticantes que atingiram a realização perfeita, que chamamos de corpo de arco-íris, praticando o Darma em meio ao mundo. Então depende da capacidade, das aspirações que se tem durante a prática, independentemente de ser em família ou em isolamento. Tudo depende da mente e de como a prática acontece internamente, o que se está cultivando e treinando no campo de consciência”.
“Tornar-se um buda, em benefícios dos seres, para conseguir alcançá-los de modo eficiente a partir das características e capacidades de cada um. Devíamos entrar em retiro para ampliarmos os meios hábeis. Uma vez em retiro, essa motivação é a base. Mas somente a motivação não nos conduz à iluminação. É preciso energia constante e perseverança, uma energia jubilosa funcionando como motor. Construímos a base a partir da motivação de gerar benefício e temos a energia jubilosa funcionando como motor.
Através dessa energia jubilosa, você vai praticar um bom coração. Todas as atividades cotidianas devem ser impulsionadas por essa energia jubilosa. Sem isso, você pode fazer retiro, mas perder tempo, fazendo as coisas de forma distraída e aleatória. O motor da perseverança e da energia jubilosa é muito importante. Com esse motor você adiciona o tempero do bom coração.
Todas as atividades durante o retiro devem ser imantadas pela prática da bondade. O preparo e o consumo dos alimentos, assim como toda a rotina, devem ser praticados com a motivação positiva e o bom coração. É necessário que se estabeleça a motivação plena para entrar em retiro e atingir a iluminação”.
“Permanecer no mundo no contexto usual pode gerar muitas fontes de apego. Deste modo, para pacificar as emoções, sugere-se o recolhimento nas montanhas. A partir do afastamento dos objetos de fixação, é possível praticar o Darma de forma mais tranquila e plena.
Há pessoas que não se relacionam de forma apegada com as coisas. Elas praticam o Darma sem que o contexto mundano seja um grande obstáculo. Para elas, não há necessidade do recolhimento em retiro. Então, a prática em meio ao mundo ou no retiro isolado irá depender do nível de fixação do praticante com as coisas. Em alguns casos, o retiro fechado pode ser desnecessário mas em outros ele pode ser benéfico.
Os que vivem fora dos espaços de retiro podem gerar méritos preservando as atividades ou contribuindo para que os monges possam se dedicar aos retiros e se desenvolver. A contribuição pode acontecer por meio do suporte voluntário ou do apoio financeiro. Às pessoas que oferecem suporte voluntário, Milarepa dizia que o mérito é igual ao de quem está em retiro e as pessoas que apoiam financeiramente abrem um canal de interdependência com a espiritualidade, de modo que ambos atingem a iluminação juntos”.
“Agir no mundo é como andar por uma floresta de espinhos. Pode ser muito doloroso caminhar sem as ferramentas corretas. Sendo assim, para atravessar ou até mesmo modificar a floresta de espinhos, é necessário que você use luvas, sapatos apropriados, proteja os olhos e o rosto. Somente com a proteção correta é possível seguir sem se ferir ou, ao menos, sem se ferir tão gravemente. Se o praticante aspira entrar na batalha por justiça social, antes de tudo, precisa vestir a roupa do Darma, não pode desprezar essa preparação”.
“Vivemos um estado de desgaste e de insatisfatoriedade. Com a iluminação, o sofrimento se dissipa. Ele surge a partir das causas provocadas pelas emoções perturbadoras — orgulho, inveja, raiva, apego, ignorância — de modo que elas nos queimam internamente. O cessar das emoções aflitivas seria um dos aspectos da iluminação. Para que elas cessem, é preciso atravessar a cegueira com relação à nossa própria natureza.
Nós não reconhecemos o que somos, nosso estado natural de ser. Quando a cegueira é removida, o véu que obscurece a visão é retirado. A mente irradia e amplia, de forma vasta e profunda, naturalmente. Este é o estado desperto de abertura da consciência. O estado de iluminação é imutável e permanece em essência. É a natureza acordada e desperta”.
Existe a história sobre um local sagrado onde havia um grande relicário (stupa sagrada) e alguns cachorros que estavam deitados por lá foram colocados para fora. O cachorro correu e começou a fazer uma circumambulação¹ no local. Se diz que devido ao movimento de energia gerado por ele no ambiente sagrado, um carma positivo germinou e amadureceu para que ele renascesse em corpo humano e se tornasse um praticante do Darma”.
“Que todos os seres possam desenvolver um estilo de vida positivo. Na tradição budista, existem 10 virtudes que devem ser praticadas. Elas fazem parte de uma ética universal que todas as pessoas entendem: evitar matar ou cultivar agressividade e desconsideração pelos outros seres; evitar roubar, ou seja, pegar o que não nos foi dado (quem rouba tem medo de ser preso); evitar uma conduta sexual inadequada (quando a pessoa é casada e trai, por exemplo, cria complicações. Quando há o envolvimento com uma pessoa casada, isso gera muito sofrimento); evitar mentir e falar agressivamente (essas práticas promovem divisão e dificultam a união entre as pessoas); evitar tomar o tempo dos outros com fofoca e ganância ou ter uma mente equivocada que não reconhece a causalidade e a interdependência das coisas.
Então, evitar causar sofrimento, promover o bem-estar e a saúde para si e para os outros e entender que todas as ações estão conectadas é o caminho. Todos os seres são beneficiados pelo surgimento interdependente uns dos outros. Esse é o conselho que abrange valores humanos universais. Isso eu gostaria de passar para todas as pessoas não-budistas e não-religiosas que fazem parte da família humana”.
¹prática hinduísta e budista de circular caminhando ao redor de locais e objetos sagrados.
Agradecimentos: Lama Jigme Lhawang e Drukpa Brasil.
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