Moriyama Roshi. Ilustração de Íris Lopes.

Mondo com Moriyama Roshi

Confira a transcrição do diálogo de uma sessão de meditação conduzida por um dos maiores mestres do Zen da contemporaneidade


Por
Transcrição: Wimerson Gomes

Patriarca do Zen, Moriyama Roshi é um dos maiores mestres do Zen da contemporaneidade. Ensinou e formou monges e discípulos leigos por mais de 30 anos, em diversos países.

Em Tokyo, fundou o templo Zuigakuin em uma região montanhosa do Japão, onde viveu e ensinou por duas décadas. Teve sob sua orientação grupos e comunidade Zen, assim como templos, espalhados por diversas partes do mundo. Morou no Rio Grande do Sul, próximo a Viamão.

Em 18 de fevereiro de 2011, após ter pernoitado em um Templo de um amigo em Tóquio, foi visto pela última vez ao tomar um taxi até uma estação de trem. Seus discípulos passaram a procurá-lo, mas encontraram muitas dificuldades em suas buscas após 11 de março, quando ocorreu um Tsunami no Japão, deixando todo o país em estado de emergência. Em julho de 2011 é dado como desaparecido pelo governo do Japão.

Sem ninguém saber seu paradeiro, em julho de 2011 é dado como desaparecido pelo governo do Japão.


Nós resgatamos a publicação feita pela Bodistava na edição nº 12  de um mondo com Moriyama Roshi. No budismo zen, mondo é um diálogo entre mestre e discípulo, destinado a transformar os processos habituais de pensamento e conceituação em intuição direta da natureza da mente.

A transcrição do diálogo foi durante uma sessão de meditação conduzida por Moriyama Roshi, que aconteceu em 12 de fevereiro de 2005, no encerramento da semana de retiro (seshin) de carnaval do Via Zen, no centro de retiro do CEBB do Caminho do Meio, em Viamão (RS).


Depois de recitar os versos dos Três Refúgios, o Mestre Zen Daigyo Moriyama Roshi, respondeu 17 perguntas de seus discípulos:

Pergunta – O “Sutra do Coração” diz que o Bodisatva Avalokitesvara, praticando profundamente o Prajnaparamita, viu o vazio de todas as coisas. O que é praticar profundamente Prajnaparamita?

Moryama Roshi – … (longo silêncio). Prajnaparamita é a prática da iluminação e Prajnaparamita é a iluminação. Logo, a prática de prajnaparamita é o objetivo do budismo e o caminho para alcançá-la é a prática de zazen (meditação).

P – Como e quando foi a sua primeira experiência profunda do Darma através do zazen?

MR – Minha primeira experiência com o zazen foi na época da faculdade. Como para qualquer principiante, zazen era só dor. Dor na perna, no joelho, no cotovelo, nos ombros, nas costas, em tudo. Quando encontrei meu mestre, minha prática mudou completamente e com ele encontrei o espírito do Darma.

P – O senhor começou a apreciar o zazen antes ou depois de atingir estabilidade mental durante a prática?

MR – Para mim o zazen começou a ser prazeroso depois de três anos de prática. Antes disso não conseguia me concentrar direito.

P – Por que o mestre que conheceu muitos lugares do mundo escolheu ficar no Brasil e como veio parar no Rio Grande do Sul?

MR – Por causa do convite de um discípulo de mente buscadora do caminho, com grande energia de prática. Quando vim para o Brasil, fui ser abade do templo Bushinji, em São Paulo. Minhas duas tarefas eram construir o templo e ensinar meditação aos brasileiros. Naquela época uma integrante da diretoria do Via Zen visitou Bushinji e me convidou para conhecer um grupo de meditação em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.

Eu estava muito ocupado na reconstrução do templo, não estava trabalhando como um mestre Zen. Então eu disse: “O quê? Rio Grande do Sul? Porto Alegre? Nunca ouvi falar. Não tenho tempo para visitar Porto Alegre.” Naqueles três anos, trabalhando na reconstrução, viajei ao Japão vinte vezes a fim de pedir doações para o templo. Porém, ela insistiu, insistiu, insistiu e finalmente eu lhe disse: “Estou ocupado. Por que você não volta para Porto Alegre?” Mas ela insistiu outra vez: “Por favor, venha nos visitar em Porto Alegre!” Respondi: “Não”. De repente me veio um sentimento muito forte. Muitas pessoas que estão realmente buscando o caminho vivem em Porto Alegre, pensei.

Naquele momento minha mente mudou. Refleti novamente: essa é a minha missão, preciso ir. E disse: “Ok, eu vou. Mas, como não sei falar português, mandarei primeiro minha assistente, a monja francesa Joshin Sensei, que fala e entende português, no meu lugar. O primeiro passo será a visita dela em vez da minha”. E na segunda vez, como havia combinado, fui junto com a minha assistente. Assim aconteceu minha primeira visita a Porto Alegre. 

P – Sua prática meditativa ficou mais intensa depois de encontrar seu mestre? Gostaria que falasse a esse respeito, porque ouvi certa vez que o discípulo não escolhe o mestre, mas o mestre encontra o discípulo. Como isso funciona?

MR – Não se pode dizer que um encontra o outro, a energia, de onde brota o espírito do Darma, vem tanto do mestre quanto do discípulo.

P – Quer dizer que sem um mestre não podemos ir longe no caminho do Darma?

MR – Não, não acredito que seja assim, mas na nossa tradição Zen japonesa a transmissão do Darma se dá de mestre para discípulo. Outras correntes budistas procedem de maneira diferente. Porém, para o Zen, esse vínculo entre mestre e discípulo é muito importante.

P – Poderia falar sobre seu processo de iluminação e sobre as pessoas iluminadas que conheceu?

MR – Quanto ao primeiro tópico, aconteceu no final de um dia de seshin intenso com meu mestre. Expliquei minha experiência e ela foi aceita como genuína. O mesmo aconteceu com mestre Dogen, quando ele esteve na China e encontrou mestre Tendo Nyojô Zenji. Certo dia de prática, Dogen teve uma experiência e descreveu-a ao seu mestre como Shin Jin Datsu Raku, que em japonês significa “abandonar o corpo e a mente”, e Tendo Nyojô aceitou-a como genuína. O que eu quero dizer com esses dois relatos é que, em nossa tradição Zen japonesa, não cabe ao discípulo se julgar iluminado. Apenas o seu mestre pode certificar isto.

Por exemplo, um ano antes daquela minha experiência, meditando profundamente, vi aparecerem flores bonitas e misteriosas na parede para a qual eu estava virado. Pensei que aquilo era a iluminação e fui ao quarto de meu mestre. “Mestre, mestre, alcancei a iluminação”. Curioso, perguntei: “Então, o que é?” E ele gritou: “Ilusão! Engano! Devaneio! Você precisa de mais meditação!” Fiquei com muita vergonha. Quanto às pessoas iluminadas que conheci, são alguns mestres Zen que viveram no Japão – meus dois mestres do Darma e mais uns dois ou três que já faleceram. É uma pena, pois todos os grandes mestres japoneses já morreram.

P – Quais foram as mudanças em sua vida após esta experiência? Depois dela, sua meditação ainda sofre interferência de pensamentos?

MR – As mudanças ocorreram no âmbito espiritual e não no físico. Falando de uma maneira genérica, encontrei o sentido da vida e descobri minha missão, que é ensinar o Darma aos meus discípulos e dar a transmissão àqueles que seguirem o caminho monástico. Com relação à segunda questão, os pensamentos não mais perturbam a minha meditação.

P – Costuma-se dizer que Deus está onde você o deixa entrar. Evocar Deus só é válido para a religião católica ou é também para outras religiões, como o próprio budismo?

MR– Antes de responder esta pergunta é preciso definir claramente a que nos referimos, pois os conceitos de Deus variam conforme a religião – cristianismo, judaísmo, religiões primitivas, o próprio budismo, etc. Por exemplo, em alguns textos budistas encontram-se as palavras “Deus” e “deidade”, mas elas não correspondem à noção católica de divindade e sim à hinduísta.

Podemos ver outro exemplo nas estátuas que enfeitam este altar. Elas representam deidades que são frutos da fusão da cultura xamânica que existia no Tibete com a budista. Porém, mesmo que as noções católica e budista de Deus sejam completamente diferentes, um dos ideais de Buda é aceitar outras formas de ver essa questão.

Digo isso porque alguns religiosos consideram sua religião superior às outras e porque espero que vocês, como budistas, desenvolvam uma mente aberta e não tenham um pensamento estreito. O fato de confiar somente nos ensinamentos do Buda não nos impede de aceitar outras expressões religiosas. Discutir sobre a melhor religião equivale a dizer a quem goste mais de maçãs do que de bananas: “Como você é estúpido! Banana é muito melhor do que maçã!

P – No Budismo Tibetano, assim como em outras religiões, trabalha-se com a ideia de reencarnação, que é muito confortadora. Porém, quando leio o comentário do Sutra do Coração feito por Thich Nhat Hanh, entendo que o autor nos fala da vida após a morte de uma forma diferente, como um desdobramento de nossa energia vital em outras formas de vida – as plantas, por exemplo – a menos que atinjamos o nirvana.

Gostaria de saber se estou compreendendo bem o texto do Tich Nhat Hanh e, também, qual a posição do Soto Zen quanto a essa questão, pois sei que o autor pertence a outra linhagem. Tenho esta dúvida porque o senhor, numa cerimônia que fez após o falecimento do meu pai, disse que havia vida após a morte, mas sem mencionar a reencarnação em outro corpo humano.

MR – O ponto mais importante do budismo é a realidade da vida aqui e agora. O que você era antes do nascimento e o que será após a morte não tem importância neste momento (longa pausa). O momento mais importante para você está aqui, agora. Depois da morte e antes do nascimento são apenas ideias abstratas, você não precisa delas. Este é o ensinamento do Buda.

P – Pode-se dizer que o budismo Zen conservou os ensinamentos do Buda em sua forma mais pura?

MR – Essa questão de uma linhagem de ensinamentos ser mais pura e genuína é muito genérica e difícil de se verificar no âmbito espiritual. Portanto, eu só posso falar de minha experiência pessoal. Quando conheci meu mestre, tive uma forte intuição espiritual: “Ah, esses ensinamentos, tanto os de Dogen quanto os de Shakiamuni, são puros, fortes, diretos”. E é nisso que acredito. Nesse sentido, não posso dizer que outros caminhos não são puros, fortes e diretos. Para mim o caminho é o Zen. Para outras pessoas, pode ser outro caminho.

P – Os apegos, incluindo o apego à vida, desaparecem depois da experiência da iluminação? O senhor ainda conserva algum apego (risos)?

MR – A resposta da primeira questão é sim, eles desaparecem. E isso não vale só para mim. Se alguém encontra o sentido da vida – que é o ensinamento espiritual mais valioso – todo o resto perde o sentido. “Perder o sentido” significa perder importância, desapegar-se. Sobre a segunda pergunta, é importante saber que o apego presente em nossa mente possui dois lados, um positivo e outro negativo. Mas o apego em si não é negativo. Podemos, portanto, transformá-lo em energia de esforço, que é o que acontece, por exemplo, com o desejo. Assim como vocês, eu tenho desejos. No entanto, consigo canalizar para o Darma a energia que surge dos desejos. É o que acontece com a minha energia vital, eu a coloco integralmente na prática do Zen.

P – Tive uma experiência extracorpórea extremamente marcante que, justamente, me fez procurar o Zen e na qual não posso deixar de acreditar. Creio que ela foi importante e válida. Será necessário, ou mesmo possível, desapegar-me dela?

MR – Como já expliquei, o ensinamento Zen sobre o desapego – o “cortar fora”, o “abandonar” – diz respeito às energias negativas de experiência, porque as energias negativas sempre perturbam a busca pelo caminho. Isso significa que, se abandonar as energias negativas das experiências ou das ideias, você gerará mais energias positivas.

P – Como para outros seres vivos, alimentação, sono e sexo são necessidades primordiais para nós, humanos. Como uma pessoa que escolheu o caminho espiritual pode lidar com a energia sexual? Como os monges que optam pelo celibato lidam com essa energia?

MR – Este é um ponto que eu sempre enfatizo: se você encontra o verdadeiro sentido da sua vida, a energia sexual – bem como a da fome e a do sono – pode ser facilmente dirigida. Se não o encontra, essa energia pode perturbá-lo. No budismo não se diz que dormir, comer ou manter atividade sexual é ruim, a não ser quando se perde o controle sobre essas coisas. Você poderá utilizá-las de maneira positiva se encontrar o sentido de sua vida, canalizando a energia dessas atividades para seu bem-estar como ser humano.

P – Mestre Dogen, em um de seus textos, diz que o universo inteiro nas dez direções é o verdadeiro corpo do homem. Como se explica isso?

MR – Creio que Dogen quis nos dizer que cada coisa existente no universo inteiro é a verdade em si mesma e que todos os fenômenos a expressam.

P – O que significa deixar cair corpo e mente?

MR – Boa pergunta. Mestre Dogen sempre usava expressões poéticas e não racionais para expressar suas experiências espirituais de meditação profunda. Shinjin significa literalmente “corpo-e-mente” ou também “desejo” – representa a nossa dimensão não iluminada; datsu significa “libertação”. Quando encontro a verdade, esse desejo é modificado completamente: meu corpo-e-mente se transforma no Darma. Isso é o que Dogen quis dizer com “deixar cair” corpo e mente.

P – No Shinjinmei está escrito, buscar a mente com a mente dual é o maior de todos os erros. Assim, com qual mente devemos buscar a mente búdica?

MR – Oh! Que perguntas difíceis! Com qual mente? Não use a mente (risos). É a mente humana que cria os conceitos de mente búdica e mente dual. Na natureza essas distinções não existem. Isso está relacionado a algo sobre o que sempre falo: a relação tempo-espaço. Um dia, para nós, humanos, é percebido como 24 horas. No entanto, na natureza não há 24 horas, existe apenas o sol nascendo e o sol se pondo. Os seres humanos é que criaram essa numeração. Se vocês se aprofundarem na meditação, o tempo pode até voltar (risos). Num nível mais profundo, não mais verão números gravados em seus relógios – há apenas ponteiros que se movem. Mais profundamente ainda, nem os ponteiros são necessários, pois o tempo desaparece. Como é relaxante saber que não existe o tempo.

P – Ontem eu virei a noite em meditação. A estranha sensação que tenho agora é de que não preciso dormir só descansar. O senhor ainda dorme (risos)?

MR – O Buda disse que isso é despertar, parabéns (muitos risos)! Você não precisa dormir! Você é realmente ‘O desperto’ (mais risos). Vamos fazer uma festa para comemorar. Vou fazer um curry que o manterá desperto, pois ele é bem picante.

A sessão terminou com a recitação dos versos dos Três Refúgios.


O texto acima foi publicado originalmente na Revista Bodisatva nº 12, em 2005. 

Apoiadores

3 Comentários

  1. João Marcelo disse:

    Que preciosa entrevista e que ilustrações lindas!! Parabéns Bodisatva!João

  2. Gabriel Sousa de Lima disse:

    Gratidão!!

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *