Não ter nada do que se arrepender

Dilgo Khyentse Rinpoche nos convida a confiar no próprio discernimento como critério para examinar nosso avanço no caminho


Por
Revisão: Cristiane Schardosim Martins
Edição: Lia Beltrão
Tradução: Miguel Berredo

Em 1990, o renomado mestre Dilgo Khyentse Rinpoche ofereceu uma série de ensinamentos nos jardins de La Sonnerie, no Shechen Tennyi Dargyeling, sua residência em Dordogne, naquela que seria a sua última visita à França. O ensinamento, que aconteceu cerca de um ano antes de seu falecimento no Butão e é considerado por seus alunos como um presente de despedida, consistiu em comentários do Rinpoche aos Sete Pontos do Treinamento da Mente, uma das mais poderosas e concisas instruções sobre o caminho do Bodisatva. Elas foram levadas para o Tibete no século XI pelo mestre indiano Atisha (982-1054), que recebeu instruções dos mais realizados mestres de sua época. O principal discípulo de Atisha, Dromtonpa, as transmitiu a Chekawa Yeshe Dorje, que então pela primeira vez compilou as instruções em forma escrita. A partir daí, a transmissão dos Sete Pontos do Treinamento da Mente continuou em uma linhagem ininterrupta até os dias de hoje.    

A transmissão de Dilgo Khyentse Rinpoche foi traduzida e publicada pela editora Snow Lion sob o título “Enlightened Courage” (Coragem iluminada, sem tradução para o português). O trecho abaixo refere-se ao comentário do Rinpoche a um dos versos do texto raíz que diz: “Confie na melhor entre duas testemunhas”, e integra o quinto dos sete pontos que discute os critérios de proficiência no treinamento da mente.


 

Confie na melhor entre duas testemunhas

 

Se nós obtemos sucesso em causar uma impressão suficientemente boa de nós mesmos para que outros digam, “Esta pessoa praticou Bodicita muito bem”, isto pode ser considerado um tipo de testemunho. Mas se pensarmos bem sobre isso, a menos que tais pessoas tenham a habilidade de ler nossas mentes, nossos processos mentais estão ocultos para elas; elas não são capazes de saber se nós aplicamos ou não todos os antídotos. Por essa razão nós deveríamos examinar a nós mesmos, para checar se de fato estamos menos raivosos, menos apegados ao ego, ou se temos sido capazes de praticar a troca de felicidade e sofrimento. É este o principal testemunho no qual deveríamos confiar. Deveríamos viver de modo a ter sempre uma consciência clara. 

 

Milarepa disse: “Minha religião é não ter nada do que me arrepender quando morrer”. Mas a maioria das pessoas não dá nenhuma importância a essa maneira de pensar. Fingimos ser muito calmos e controlados, cheios de palavras doces, para que as pessoas comuns — que não conhecem nossos pensamentos — digam: “Este é um verdadeiro bodisatva”. Mas é apenas nosso comportamento externo que elas veem.

 

O importante é não fazer qualquer coisa da qual possamos nos arrepender depois. Portanto, precisamos nos examinar honestamente. Infelizmente, nosso apego ao ego é tão grosseiro que, mesmo se tivermos alguma pequena qualidade, pensamos que somos maravilhosos. Por outro lado, se temos algum grande defeito, nem sequer percebemos. Há um ditado que diz: “No pico do orgulho, a água das boas qualidades não permanece”. Então, devemos ser muito meticulosos. Se, após examinarmos atentamente a nós mesmos, formos capazes de colocar as mãos no coração e honestamente pensar: “Minhas ações estão corretas”, então isso é um sinal de que estamos ganhando alguma experiência no treinamento da mente. Devemos então ficar contentes por nossa prática estar indo bem e nos determinarmos a fazer ainda melhor no futuro, assim como fizeram os bodisatvas de outros tempos. Usando todos os meios possíveis, devemos gerar cada vez mais antídotos para agirmos de modo a estarmos em paz com nós mesmos. 

 

Trecho do livro “Enlightened Courage: An Explanation of Atisha’s Seven Point Mind Training” (Coragem iluminada: uma explicação dos Sete Pontos do Treinamento da Mente de Atisha), Capítulo 5: Critérios de proficiência no treinamento da mente, do grande mestre do budismo tibetano Dilgo Khyentse Rinpoche (Tibete, 1910 – Butão, 1991). Livro publicado pela editora Snow Lion, em 1993.

O texto acima foi publicado originalmente em maio de 2014, no site antigo da Bodisatva por Miguel Berredo.

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1 Comentário

  1. fiz a tradução portuguesa. livro esgotado.

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