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O momento da verdade

Como nos preparamos para a experiência do bardo neste exato instante?


Por
Revisão: Dirlene Ribeiro Martins
Tradução: Marcelo Nick

 

Sempre que embarcamos em uma longa viagem, há uma sensação de morte e renascimento. As experiências pelas quais passamos têm uma qualidade transitória. No momento em que colocamos o pé fora de casa e fechamos a porta, começamos a deixar nossa vida para trás. Despedimo-nos da família e dos amigos, e dos ambientes e rotinas familiares que habitamos. Podemos sentir arrependimento misturado com excitação ao entrarmos no táxi que nos levará ao aeroporto. À medida que a visão de casa recua, estamos tristemente separados e alegremente livres de tudo o que nos define. Quanto mais longe do lar ficamos, mais nos concentramos no nosso próximo destino. Pensamos menos na casa e mais sobre aonde estamos indo. Começamos a examinar um novo mapa, passamos a pensar onde vamos pousar, sobre novas pessoas, novos costumes e novos cenários — os novos conjuntos de experiências que virão.

Até chegarmos ao nosso destino, estamos em trânsito — no meio de dois pontos. Um mundo se dissolveu, como o sonho da noite passada, e o próximo ainda não surgiu. Nesse espaço, há uma sensação de total liberdade: estamos livres de sermos nossos eus comuns, não estamos presos à rotina diária e às suas demandas. Há uma sensação de frescor e apreciação do momento presente. Ao mesmo tempo, em alguns momentos podemos nos sentir temerosos e sem apoio porque entramos em um território desconhecido. Não sabemos com certeza o que virá no momento seguinte ou aonde isso nos levará. No instante em que relaxamos, no entanto, nossa insegurança se dissolve e o ambiente se torna amigável e positivo. Estamos à vontade em nosso mundo uma vez mais e podemos avançar naturalmente e com confiança.

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Ainda assim, as viagens nem sempre saem de acordo com o plano. Se estamos viajando pelo ar, o voo pode atrasar ou ser cancelado. Se estamos em um trem, as condições climáticas podem nos atrasar. Se estamos na estrada, em um momento, um pneu pode estourar no tráfego intenso, levando-nos da estrada principal para a oficina de uma cidade pequena. É sensato, portanto, se preparar cuidadosamente para o que possa surgir. Devemos nos lembrar de levar tudo o que possamos precisar. Devemos conhecer o itinerário, as paradas e os serviços ao longo do caminho, e os costumes locais. Então podemos simplesmente relaxar e estar onde estamos, que é a experiência de estar no momento presente.

Deixar esta vida é muito parecido com embarcar em uma longa viagem. Nesse caso, a viagem que fazemos é uma jornada da mente. Deixamos para trás este corpo, nossos entes queridos, nossas posses e todas as nossas experiências nesta vida, e seguimos para a próxima. Estamos em trânsito, no meio de dois pontos. Deixamos nosso lar, mas ainda não chegamos ao próximo destino. Não estamos no passado nem no futuro. Estamos imprensados entre o ontem e o amanhã. Onde estamos agora é o presente, que é o único lugar onde podemos estar.

Essa experiência do momento presente é conhecida como bardo no budismo tibetano. Bardo, em um sentido literal, significa “intervalo”, mas também pode ser traduzido como um estado “intermediário” ou “no meio”. Assim, podemos dizer que, sempre que estamos entre dois momentos, estamos em um estado de bardo. O momento passado cessou; o momento futuro ainda não surgiu. Há um intervalo, uma sensação de agora, de pura abertura, antes do surgimento da próxima coisa, seja ela nosso próximo pensamento ou nossa próxima vida. É igual quando viajamos. Estamos em transição — mesmo quando voltamos do trabalho para casa ou quando mudamos para outro estado. Se prestarmos atenção a essas transições, se pudermos permanecer conscientes do nosso ambiente a todo momento, então estaremos muito mais propensos a ter consciência do nosso ambiente durante os bardos que vão além desta vida — que compõem a passagem através dos bardos do morrer e da morte. Estaremos mais no controle da nossa jornada e poderemos encontrar experiências novas ou desafiadoras com uma mente clara e estável.

Quando pudermos estar completamente presentes com elas, as experiências que encontramos pelos bardos da morte se tornam simples e naturais. Podemos realmente nos dar ao luxo de relaxar e soltar a esperança e o medo. Podemos ter curiosidade por nossas novas experiências. Também podemos aprender algo sobre nós mesmos — que, em última instância, quem somos no sentido mais genuíno transcende nossa noção limitada de eu. Nesse ponto de transição, temos uma oportunidade de transcender essa percepção e transformar a aparência da morte em uma experiência de despertar ao reconhecermos a verdadeira natureza da mente.

Dessa maneira, assim como deveríamos nos preparar para uma viagem — separando roupas e assim por diante —, é altamente recomendável fazer bons preparativos para nossa próxima grande viagem: nossa passagem desta vida para a seguinte.


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