Antenor Vaz com indígenas Enaw Ene Nawê (Contato Inicial) no MT. Foto: Cleacir Alencar Sá, 2016

Povos indígenas em situação de isolamento, quem se interessa?

A Bodisatva conversa com o consultor sobre indígenas isolados e de recente contato, Antenor Vaz, que coordena pesquisa na Land is Life


Por
Revisão: Bruna Crespo

Os povos indígenas em situação de isolamento e contato inicial, os chamados Piaci, chegam a 150 registros em sete países da América do Sul. No Brasil, segundo a Funai, são 114 registros dos quais 28 são confirmados oficialmente. Esses povos vivem, hoje, um cenário de ameaças sem que os Estados nacionais, com suas políticas desenvolvimentistas, implementem políticas efetivas de proteção.

O risco de genocídio a que os Piaci estão submetidos, tais como os impactos dos megaprojetos e as ações ilícitas sobre seus territórios, vêm mobilizando organizações indígenas e multilaterais, ONGs como a organização Land is Life, que está reunindo organizações indígenas e especialistas de sete países da América do Sul para elaborar um diagnóstico sobre a situação de territórios dos Piaci.  O resultado desse trabalho ajudará os países a pensarem num sistema de proteção regional.

A Bodisatva conversou com o físico Antenor Vaz, consultor internacional independente em Políticas e Metodologias de Sistemas de Proteção para Povos Indígenas em Situação de Isolamento e Contato Inicial na Pan Amazônia e Grande Chaco.

Ele é coordenador regional desta pesquisa na Land is Life e explicou quais são os principais problemas vividos pelos Piaci na América do Sul e no Brasil.


Quem são os povos indígenas em situação de isolamento?

São povos indígenas que, por razões diversas, decidiram não estabelecer contato com a sociedade majoritária e populações indígenas do entorno com histórias de contato.  Na sua maioria, vivem em regiões de floresta de difícil acesso ou em fragmentos de mata ilhados por empreendimentos. Esses povos sobrevivem exclusivamente dos recursos da floresta. Na sua maioria, desconhecemos a língua, costumes e tradições da maioria destes povos.

Na década de 1990, durante seis anos, participei da implementação de um sistema de proteção para um grupo isolado, em Rondônia, região de fronteira com a Bolívia, onde conseguimos realizar um levantamento sobre a cultura material e o território deste povo sem promover contato, o que contribuiu para a definição da terra indígena Massaco.

Como foi este trabalho na prática?

Trabalhava na Funai, nesta época, e tínhamos informações da existência de um povo isolado no interior da Reserva Biológica Guaporé. Coordenei a Frente de Proteção e nas primeiras expedições confirmamos a existência deste povo isolado. Encontramos caminhos utilizados pelos indígenas, acampamentos, resíduos alimentares, artefatos manufaturados por eles e, ao longo desses seis anos, sistematizamos um conjunto de informações que nos leva a crer que se trata de um grupo indígena Sirionó,  também existente na Bolívia.

Foi uma experiência fantástica porque, a partir de cada expedição, conseguíamos informações para montar o quebra-cabeça sobre quem era esse povo, como viviam, os perigos a que estavam expostos, do que se alimentavam, como construíam suas malocas, o tipo de material utilizado, como ocupavam o território, qual matéria-prima usavam para produzir os utensílios e quais estratégias utilizavam para se defender de grileiros, garimpeiros e madeireiros. A dificuldade era realizar esse levantamento sem ser mais um agressor e, ao mesmo tempo, não contatá-los.

Desenvolvemos uma metodologia de proteção sem estimular o contato, pois até então o Estado brasileiro tinha desenvolvido metodologias que levavam ao contato. Vivíamos sob muita tensão, pois estávamos entre os indígenas em situação de isolamento – que poderiam nos atacar – e os invasores de seu território que ameaçavam nos eliminar, com interesse na terra e nos recursos naturais existentes nela.

Qual é o panorama geral destes povos na América do Sul?

Pesquisas georeferenciadas, que venho desenvolvendo desde 2006, mostram a existência de mais de 150 registros de Piaci em Pan Amazônia e Grande Chaco.  Apesar de, nas últimas duas décadas, a maioria dos países da América do Sul, com presença de Piaci, ter reconhecido sua existência – com exceção da Venezuela – e formulado marcos jurídicos de proteção, na prática as leis estão mortas e a política de proteção não vem sendo implementada por falta de vontade política dos governos.

A política desenvolvimentista implantada por todos os Estados dos países da América do Sul e por iniciativas privadas impactam os territórios desses povos. Por exemplo, o extrativismo predador, as mineradoras, as empresas petroleiras, o agronegócio e a ação proselitista de missionários avançam sobre os territórios, impelindo os Piaci a migrações forçadas que chegam a conflitos e mortes. No Brasil e no Peru, alguns grupos em situação de isolamento, a partir de 2013, viram-se forçados a procurar o contato como única forma de sobrevivência. Em todos eles, indígenas apresentam marcas de bala no corpo.

Piaci na América do Sul – Bacia Amazônica – Fonte: Antenor Vaz/ RAISG – 2017

Como você avalia a situação no Brasil?

Depois de mais de duas décadas de trabalho na Funai, apesar dos avanços na proteção dos Piaci, a situação é de retrocesso. Temos fechamento de bases de proteção, redução de pessoas trabalhando em campo e um corte drástico de recursos financeiros. Desde 2013 venho alertando sobre um colapso no sistema de proteção oficial para estes povos.

Temos atualmente 86 registros de povos indígenas em situação de isolamento sem que a Funai desenvolva algum tipo de trabalho. Ou seja, esses povos podem desaparecer sem que saibamos. É uma situação dramática. Fora isso, temos uma conjuntura política e econômica desfavorável. As bancadas evangélica e do agronegócio, em conjunto com setores anti-indígenas, fazem lobbies para retroceder conquistas promulgadas constitucionalmente em 1988, principalmente sobre os direitos territoriais dos indígenas.

Que conjuntura é essa?

É uma situação complexa, pois envolve os setores legislativo, executivo e judiciário, setores privados e corporações econômicas transnacionais. Existe um avanço de empreendimentos, desmatamentos, mineração, estradas, agronegócio e extração de petróleo e gás, etc., próximos, ou mesmo em regiões com presença de Piaci.

Como exemplo, cito o caso das empresas chinesas, que possuem mais que a metade das grandes hidrelétricas do mundo, inserindo-se inclusive na Amazônia. As empresas chinesas construíram barragens em troca de petróleo e acesso a recursos minerais e alimentares. Os negócios são pouco transparentes, as empresas não respondem por seus atos e as autoridades com frequência criam brechas na legislação a fim de permitir que os responsáveis pela operação das hidrelétricas contornem os dispositivos destinados a proteger os peixes, a fauna, a flora, as comunidades indígenas e ribeirinhas, assim como a qualidade da água.

É necessário alertarmos para as conseqüências em que tudo isso pode acarretar – e já acarretam – diretamente sobre os Piaci e seus territórios. É impossível falar sobre a proteção desses povos indígenas sem se levar em consideração os efeitos diretos e indiretos que, por exemplo, uma estrada causa sobre eles. É impossível definir políticas de proteção sem se levar em consideração esse avanço de grandes empreendimentos e de ações ilícitas sobre seus territórios.

Você poderia falar mais sobre a pesquisa da Land is Life? Enxerga alguma saída para os povos em situação de isolamento?

Fui contratado pela Land is Life para coordenar esta pesquisa. Ela está na fase inicial e será realizada de forma compartilhada com Organizações Indígenas dos sete países da América do Sul com presença de Piaci – Bolívia, Brasil, Equador, Colômbia, Peru, Paraguai e Venezuela. Acabamos de definir as organizações indígenas e indigenistas, além dos especialistas de sete países que elaborarão um Informe Local sobre a situação dos Territórios dos Piaci em cada país, cabendo a mim elaborar a análise regional. Pretendemos apresentá-lo no Fórum Permanente sobre Questões Indígenas da ONU, em abril de 2019.

As perspectivas para os Piaci não são animadoras. Vivemos uma onda de retrocesso dos direitos indígenas em toda América Latina. O movimento indígena está atento e busca integração e apoio regional. A defesa dos Piaci depende da sociedade civil organizada, uma vez que esses povos não se representam. Sua condição de isolamento já é uma maneira de representação e protesto contra esse modelo de sociedade consumista que desrespeita, na essência, o princípio da autodeterminação dos povos.

Diante desse contexto, considero o modelo desenvolvimentista como o principal fator de risco para os Piaci. Esse desenvolvimentismo implementado força os Piaci ao contato, contrariando o modelo de proteção de respeito à autodeterminação desses povos defendido pelos povos indígenas e pela maioria dos Estados e organizações multilaterais. A perspectiva positiva é que surge uma agenda regional em apoio ao isolamento como forma de fortalecer a autodeterminação dos Piaci, o reconhecimento e a intangibilidade de seus territórios.

Qual é a contribuição das sociedades indígenas para uma mudança de realidade global?

As sociedades indígenas conseguem sobreviver diferentemente do modo consumista imposto pelo sistema capitalista atual. É evidente que toda sociedade tem seus problemas internos, no entanto, as cosmovisões – maneiras de entender a si e o mundo – dos povos indígenas não isolam o ser humano dos demais seres existentes na natureza. Estabelecem uma relação indissolúvel de reciprocidade e “parentesco” com seus territórios – ecossistemas – e todos os seres viventes do seu entorno.

Nós, ocidentais, geralmente olhamos para os povos indígenas de maneira exótica e romântica, idealizando-os. Desconhecemos seus modos de vida. A busca pela compreensão dos povos indígenas nos possibilitará  ver uma sociedade mais humana em que sermos diferentes sem nos auto-destruirmos é possível.

Zo’é – Foto Mário Vilela arquivo FUNAI

Para ilustrar as  diferenças de concepções entre o pensamento ocidental e o dos povos indígenas, transcrevo o texto extraído do vídeo “Kawsak Sacha” (Selva Vivente), narrado por Cesar Santi, indígena Kichwa de Sarayaku da selva amazônica equatoriana:

O Kawsak Sacha é o espaço vital de todos os seres que habitam a selva, dos seres mais infinitesimais ao maior e supremo, incluindo os mundos, nimal, vegetal, mineral e cósmico. É uma área territorial transcendental destinada a revitalizar as facetas emocionais, psicológicas, físicas e espirituais para restaurar a energia, a vida e o equilíbrio dos povos originários. É o domínio de cachoeiras, lagoas, pântanos, montanhas, rios e árvores, lugares povoados onde os seres supremos, Amos e Sacha Kawsak ,protetores, vivem e desenvolvem a sua vida como seres humanos.

O Kawsak Sacha é também o local de transmissão de Yachay, o conhecimento onde  intuímos no mundo a sabedoria dos mestres, dos lugares de vida e visão de mundo sublime para o aprendizado metódico. Este universo, o equilíbrio natural e harmonia de vida, perpetuidade cultural, a existência de seres vivos e a continuidade da Kawsak Sacha dependem da permanência e as potências de transmissão dos protetores seres supremos Kawsak Sacha com o yachak, bem como a correlação e respeito entre os seres humanos e os seres da selva.

Em nossa Amazônia, em Sarayaku, existem semelhantes a nós, como o Amazanga, que podemos ver e ouvir. É por isso que não queremos que eles extraiam petróleo em nosso território. Se esses recursos forem extraídos, todos os seres e espíritos da selva desaparecerão. Os Mestres e os animais da selva serão extintos. Sem eles, nossa terra ficará órfã. É por isso que defendemos e conservamos nossa floresta viva.


Confira o  vídeo:


 

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4 Comentários

  1. Bruno Braga disse:

    Excelente trabalho desde grande indigenista que como poucos outros que tive a enorme satisfação de conhecer. Abdicam de suas vidas pessoais em prol de um idéia humanitário. Esses são para mim o verdadeiro significado de heróis. Que obtenha muito Sucesso meu querido amigo Antenor que competência você tem de sobra.

  2. Cícero Martins Vilanova Neto disse:

    Os equívocos sobre os povos originárias foram disseminados das mais variadas formas, iniciativa como essa serve para esclarecer o real valor de se proteger todas as formas de cultura existente. Parabéns ao Autor!

  3. Ormando disse:

    “As sociedades indígenas conseguem sobreviver diferentemente do modo consumista imposto pelo sistema capitalista atual. É evidente que toda sociedade tem seus problemas internos, no entanto, as cosmovisões – maneiras de entender a si e o mundo – dos povos indígenas não isolam o ser humano dos demais seres existentes na natureza. Estabelecem uma relação indissolúvel de reciprocidade e “parentesco” com seus territórios – ecossistemas – e todos os seres viventes do seu entorno.”

    Esta forma de estar vivo e ligado à vida é muito inspiradora! Temos muito a aprender com eles ^^

  4. gizele Silva de Almeida Medeiros disse:

    Somos um só, as minhas ações impacta na vida de outros seres.

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