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Quando o cume da montanha derreter

Chögyam Trungpa conta como seu professor preparou-os para a invasão dos chineses


Por
Revisão: Dirlene Ribeiro Martins
Edição: Caroline Souza
Tradução: Caroline Souza

Chögyam Trungpa Rinpoche. Foto: The Chronicles of Chogyam Trungpa Rinpoche

Chögyam Trungpa Rinpoche, artista e um dos maiores mestres budistas do século XX, foi reconhecido tulku — a reencarnação de um mestre iluminado — aos treze anos de idade e, então, iniciou um intensivo treinamento em meditação, filosofia e artes. Em 1958, aos dezoito anos, recebeu a ordenação monástica completa. No ano seguinte, seu país foi invadido pelos chineses. Como inúmeros outros tibetanos, ele iniciou uma jornada de fuga em direção à Índia, a pé, que se estendeu por meses a fio.

Neste trecho de seu livro de memórias, Born in Tibet [Nascido no Tibete], Trungpa narra o período imediatamente anterior à chegada dos chineses, vivenciado por ele ao lado de seu professor, Khenpo Gangshar. Depois de subir ao topo do monte Doti Gangkar e testemunhar o derretimento da neve, que anunciava a chegada da terceira era, Khenpo retornou ao monastério e de pronto deu início aos preparativos.

A comovente narrativa de Trungpa nos permite acompanhar os movimentos de um grande mestre, seu professor, diante dos tempos sombrios que se aproximavam. Seu exemplo aquece nossos corações, tão aflitos atualmente, ao nos apontar uma via de lucidez e bondade em meio à crise.


Visto que Khenpo Gangshar já não se sentia bem há algum tempo e precisava de uma mudança, acompanhei-o até o sagrado monte Doti Gangkar, em cujas cavernas Guru Padmasambava costumava meditar e onde lamas de Surmang com frequência faziam retiro. Trata-se de uma montanha muito alta, com dois lindos lagos ao seu pé: um deles tem a água verde; no outro, as águas são negras. Seu topo é coberto de neve. De acordo com a lenda, na Era Dourada essa neve brilharia como um diamante e nunca derreteria. Na era seguinte, ela seria como um ônix no qual luz e escuridão se mesclam. Na terceira era, entretanto, viria a se transformar em algo similar ao ferro: a escuridão se alastraria por todas as partes e nosso tempo no Tibete chegaria ao fim. Ao alcançarmos o topo da montanha, descobrimos que os campos de neve estavam derretendo e que vastas áreas de rocha escura já se faziam ver.

Tudo isso causou profunda impressão em Khenpo Gangshar. A lenda das três eras parecia tê-lo alertado sobre a urgência de nos prepararmos para o período sombrio que se aproximava. Havia tanto a ser ensinado em um período tão curto de tempo. Rapidamente, ele recobrou a saúde e sentiu-se ainda mais inspirado a continuar seus ensinamentos em Surmang.

Ao retornarmos, ficamos sabendo que os chineses haviam deixado minha residência. Khenpo Gangshar então decidiu que não deveríamos mais restringir os ensinamentos aos monges que frequentavam o seminário: a necessidade mais imediata era ensinar todas as pessoas. No outono, ele convocou um grande encontro no nosso salão principal. Nessa ocasião, falou ao longo de todo o dia, das sete da manhã às seis da tarde, com um intervalo de apenas duas horas. Explicou, em termos simples, o quão necessário era que entendêssemos o tempo que estávamos vivendo. Talvez não mais pudéssemos realizar nossos rituais, mas isso não destruiria o ensinamento fundamental que o Buda nos tinha dado ou a integridade do povo tibetano. Ele citou: “deixem de fazer o mal, façam o bem e purifiquem suas mentes”, tal é o ensinamento do Buda.

Devemos agir da forma correta e nos mantermos conscientes de nós mesmos. Precisamos construir nossos templos dentro de nós mesmos. Todos os ensinamentos do Buda, desde o primeiro – sobre a verdade do sofrimento – até o último – sobre a Iluminação –, devem ser integrados e unificados na prática.

Então, Khenpo Gangshar falou-lhes sobre como praticar atenção plena e compaixão. Encorajou todos a tomar o voto de não matar ou causar dano e, a fim de poder manter esta intenção, encorajou-os também a aprender a controlar a si próprios antes de agir.

Depois disso, Khenpo Gangshar convocou um segundo encontro, desta vez com todos os monges. Disse a eles que deveriam prover ainda mais apoio às pessoas leigas que não tiveram a oportunidade de estudar. As divisões entre as diferentes escolas precisavam ser abandonadas. Deveriam oferecer o treinamento fundamental sobre como tomar refúgio no Buda, no Darma e na Sanga e sobre as quatro incomensuráveis, nomeadamente: bondade amorosa, alegria espiritual, compaixão e equanimidade.

A respeito da equanimidade, enfatizou que os direitos humanos e a não-violência eram especialmente importantes nesses tempos ansiosos pelos quais estávamos passando. Considerava que os monges deveriam seguir o sistema dos Kadampas, cujo ensinamento se debruça especialmente sobre os meios de desenvolver bondade amorosa (maitri). A doutrina da bondade amorosa deveria ser combinada com o Mahamudra e a Atiyana, que correspondem ao método de meditação no ensinamento último do Buda.

Khenpo Gangshar visitou muitos dos nossos eremitas que haviam tomado o voto de viver em isolamento e disse-lhes que precisariam experienciar o choque de retornar ao mundo, aprendendo a permanecer em retiro internamente. Trouxe-os de volta a Düdtsi-til. Alguns dos monges em Namgyal-tse não aprovaram essa atitude e solicitaram debater o assunto diretamente com ele. Ele alegremente acolheu seus pedidos. Os monges embasaram seu argumento citando as Escrituras. No entanto, Khenpo Gangshar falou-lhes que as teorias são insuficientes sem a prática, e pediu que ficassem e ajudassem as muitas pessoas que estavam no monastério.

Futuramente, um desses lamas veio a se tornar seu discípulo devoto. Pessoas de todas as partes do distrito vieram ouvir o Khenpo. Ele fez com que os lamas mais experientes e os tulkus se misturassem com a comunidade e ensinou que ninguém deveria se considerar superior a qualquer outra pessoa. Ele próprio acompanhou e deu instruções práticas àqueles que lhe pediam ajuda. Entretanto, logo o público se tornou tão grande que uma única pessoa já não conseguia dar conta. Assim, ele dividiu todos em grupos e organizou para que alguns de nós conduzíssemos falas, as quais ele supervisionava. Foi um ótimo treinamento para nós, e especialmente instrutivo para mim.

Embora eu ainda estivesse consideravelmente fraco nos estudos médicos e nas matemáticas das cosmologias, que incluem calcular o calendário, havia completado meus estudos gerais e chegara o momento de eu receber meu grau de kyörpon (tutor). Assim, afastei-me de todas as outras atividades por três meses e dediquei-me a revisar meus estudos com a ajuda de Khenpo Gangshar, que às vezes me visitava durante as tardes para responder às dúvidas que eu eventualmente tivesse.

Meu exame e de outros dois monges ocorreu em um dia auspicioso, no pátio do lado de fora do monastério, que havia sido cercado para as palestras públicas. Compareceram khenpos, kyörpons e lamas seniores vizinhos. Um trono central foi colocado ao fundo do pátio para Khenpo Gangshar, com quatro kyörpons sentados junto a ele, lado a lado. Duas fileiras de assentos se estendiam perpendiculares a eles, com os candidatos posicionados à frente, de modo a estarem prontos, quando sua vez chegasse, para colocarem-se diante de Khenpo Gangshar.

Nas fileiras restantes, sentavam-se monges acadêmicos e kyörpons. Estes participaram ativamente do exame, que se deu na forma de uma discussão dialética: primeiramente, o candidato era solicitado a responder a qualquer questão que os monges lançassem a ele; em seguida, em um contra-ataque, ele jogava sua própria pergunta aos acadêmicos.

Fui informado de que práticas similares prevaleciam em monastérios cristãos durante a Idade Média. O exame durou três dias, e o primeiro foi o mais difícil de todos. Comida e chá eram oferecidos diariamente aos participantes. Recebi o grau de kyörpon – equivalente a um diploma de doutorado na Inglaterra – e, visto que havia sido especialmente treinado em oratória e ensino, também recebi o título de khenpo (mestre de estudos).


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1 Comentário

  1. Ormando disse:

    Tradução de “The Spontaneous Song of Entering Into the Blessings and Profound Samaya of the Only Father Guru” de Chogyam Trungpa Rinpoche

    “A Canção Espontânea de Entrar Dentro das Bênçãos e Profundo Samaya do Único Pai Guru”

    “Shri​ ​Heruka,​ ​the​ ​unchanging​ ​vajra​ ​mind,
    Shri​ ​Heruka,​ ​a​ ​imutável​ ​mente​ ​vajra,

    The​ ​primordial​ ​buddha,​ ​all-pervading,​ ​the​ ​protector​ ​of​ ​all,
    O​ ​Buda​ ​primordial,​ ​todo​ ​pervasivo,​ ​o​ ​protetor​ ​de​ ​tudo,

    Padma​ ​Trime,​ ​you​ ​are​ ​the​ ​lord,​ ​the​ ​embodiment​ ​of​ ​all​ ​the victorious​ ​ones.
    Padma​ ​Trime,​ ​você​ ​é​ ​o​ ​senhor,​ ​a​ ​corporificação​ ​de​ ​todos​ ​os vitoriosos.

    You​ ​are​ ​always​ ​reflected​ ​in​ ​the​ ​clear​ ​mirror​ ​of​ ​my​ ​mind.
    Você​ ​está​ ​sempre​ ​refletido​ ​no​ ​espelho​ ​claro​ ​da minha​ ​mente.

    In​ ​the​ ​space​ ​of​ ​innate​ ​ground​ ​mahamudra,
    No​ ​espaço​ ​do inato​ ​solo​ ​mahamudra,

    The​ ​dance​ ​of​ ​the​ ​self-luminous​ ​vajra​ ​queen​ ​takes​ ​place,
    A​ ​dança​ ​da​ ​auto-luminosa​ ​rainha​ ​vajra​ ​toma​ ​lugar,

    And​ ​passion​ ​and​ ​aggression,​ ​the​ ​movements​ ​of​ ​the​ ​mind, become​ ​the​ ​wheel​ ​of​ ​wisdom;
    E paixão e agressão, os movimentos da mente, se tornam a roda da sabedoria;

    What joy it is to see the great ultimate mandala!
    Que alegria é ver a grande mandala suprema!

    The confidence of the unflinching youthful warrior flourishes,
    A confiança do inabalável jovem guerreiro floresce,

    Cutting the aortas of the degraded three lords of materialism
    Cortando as aortas dos três degradados senhores do materialismo

    And dancing the sword dance of penetrating insight;
    E dançando a dança de espada do insight penetrante;

    This is the blessing of my only father guru.
    Esta é a bênção do meu único pai guru.
    Inviting the rays of the waxing moon, Vajra Avalokiteshvara,

    Convidando os raios da lua crescente, Vajra Avalokiteshvara,
    The tide of the ocean of compassion swells,
    A maré do oceano de compaixão ondula,

    Your only son, Chokyi Gyatso, blossoms as a white lotus;
    Seu único filho, Chokyi Gyatso, desabrocha como uma lótus branca;

    This is due to the limitless buddha activity of my guru.
    Isto é devido à ilimitada atividade búdica de meu guru.

    In the vast space of mahashunyata, devoid of all expression,
    No vasto espaço de mahashunyata (grande vacuidade), desprovido de toda expressão,

    The wings of simplicity and luminosity spread
    As asas da simplicidade e luminosidade abrem-se

    As the snake-knot of conceptual mind uncoils in space;
    Conforme o nó-de-cobra da mente conceitual se desenrola no espaço;

    Only father guru, I can never repay your kindness.
    Único pai guru, eu nunca poderei retribuir sua bondade.

    Alone, following the example of the youthful son of the victorious ones,
    Sozinho, seguindo o exemplo do jovem filho dos vitoriosos,

    Riding the chariot of the limitless six paramitas,
    Conduzindo a carruagem dos seis paramitas (perfeições) sem limites,

    Inviting infinite sentient beings as passengers,
    Convidando os infinitos seres sencientes como passageiros,

    Raising the banner of the magnificent bodhisattvas,
    Elevando a bandeira dos magníficos bodisatvas,

    I continue as your heir, my only father guru.
    Eu continuo como seu herdeiro, meu único pai guru.

    Like a mountain, without the complexities of movement,
    Como uma montanha, sem as complexidades do movimento,

    I meditate in the nature of the seven vajras,
    Eu medito na natureza dos sete vajras,

    Subjugating Rudra with the hundred rays of deva, mantra, and mudra,
    Subjugando Rudra com os cem raios de deva, mantra e mudra,

    Beating the victory drum of the great secret vajrayana,
    Batendo o tambor da vitória do grande vajrayana secreto,

    I fulfill the wishes of my only father, the authentic guru.
    Eu realizo os desejos do meu único pai, o autêntico guru.

    In the sky of dharmadhatu, which exhausts the conventions of the nine yanas,
    No céu do dharmadhatu, que esgota as convenções dos nove yanas (veículos),

    Gathering rainclouds thick with the blessings of the ultimate lineage,
    Reúnem-se nuvens de chuva espessas com as bênçãos da linhagem final,

    Roaring the thunder of relentless crazy wisdom,
    Rugindo o trovão da implacável louca sabedoria,

    Bringing down the rain that cools the hot anguish of the dark age,
    Derrubando a chuva que esfria a quente angústia da época sombria,

    As I transform existence into a heavenly wheel of dharma,
    Enquanto eu transformo a existência em uma celestial roda do dharma,

    Please, my only father, authentic guru, come as my guest.
    Por favor, meu único pai, autêntico guru, venha como meu convidado.”

    Chogyam Trungpa Rinpoche

    Texto em inglês extraído de “First Thought, Best Thought: 108 poems by Chogyam Trungpa”

    Traduzido com alegria e destemor por Lagarto Manco no 16º dia do 5º mês do ano da Garuda de Fogo (10 de julho de 2017)

    Leia sobre Vidyadhara Chögyam Trungpa Rinpoche em https://shambhala-brasil.org/sobre-shambhala/mestres/vidyadhara-chogyam-trungpa-rinpoche/

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