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Responsabilidade universal

S.S. Dalai Lama nos fala neste texto sobre sua preocupação em tornar nossa sociedade mais compassiva, justa e equitativa


Por
Transcrição: Lia Diskin (original) e Roberta Canziani Sabino

“Tenzin Gyatso talvez seja o último Dalai-Lama, último de uma sucessão ininterrupta desde 1391, com o nascimento de Gedun Drub, que inaugurou a linhagem. Exilado no norte da Índia desde 1960, devido à invasão do Tibet pela China 10 anos antes, sua tragédia e a de seu povo foram, paradoxalmente, a porta de acesso pela qual o Ocidente entrou em contato com uma das culturas mais ricas e genuinamente espirituais que floresceram no Oriente.

No palco dos homens insignes que passaram pela história, poucas vezes nos defrontamos com uma mente aguda aliada a um coração compassivo. Sua incansável luta não-violenta pela libertação do Tibet, luta de inspiração gandhiana e pela qual lhe foi conferido o Prêmio Nobel da Paz, vem comovendo e despertando a admiração do mundo todo”.

A abertura desta transcrição assinada por Lia Diskin inicia a publicação deste texto assinado por S. S. Dalai Lama, publicado na Revista Bodisatva nº 3. Nós republicamos no nosso tesouros do acervo online. Confira:


Quando pela manhã nos levantamos e escutamos o rádio ou lemos o jornal, nos defrontamos com as mesmas notícias tristes: violência, crime, guerras e desastres. Não lembro um só dia sem uma notícia de algo terrível em alguma parte. É evidente que mesmo atualmente nossa preciosa existência não está segura.

Nenhuma geração anterior teve que experimentar tantas más notícias como as que enfrentamos hoje em dia; este constante estado de medo e tensão faz com que qualquer pessoa sensível e compassiva questione seriamente progresso do nosso mundo moderno.

É uma ironia que os problemas mais sérios emanem das sociedades industrialmente mais avançadas. A ciência e a tecnologia têm feito maravilhas em muitos campos, porém os problemas humanos fundamentais continuam. Atualmente existe um sistema educacional sem precedente, e, no entanto, esta educação universal não parece haver fomentado a bondade senão somente o dessossego mental e o descontentamento.

Não existe dúvida alguma sobre o avanço de nosso progresso material e tecnológico, mas com isso, de alguma maneira, não é suficiente, uma vez que não alcançamos a paz e nem a felicidade, nem tampouco triunfamos sobre o sofrimento.

Podemos concluir então que deve haver algum grave erro em nosso progresso e desenvolvimento, e que se não retificarmos a tempo pode haver consequências desastrosa para o futuro da humanidade. Não estou, em absoluto, contra a ciência e a tecnologia, sua contribuição à experiência global da humanidade tem sido imensa: a nosso bem-estar e comodidade material e à melhor compreensão do mundo em que vivemos. Mas se colocarmos demasiada ênfase na ciência e na tecnologia, corremos o risco de perder contato com aqueles aspectos do conhecimento e compreensão humanos que aspiram à honestidade e ao altruísmo.

A ciência e a tecnologia, ainda que capazes de criar um bem-estar material imensurável, não podem substituir os valores espirituais e humanistas seculares que em grande parte embasam a civilização mundial, tal como a conhecemos hoje em dia, em todas suas manifestações nacionais.

Ninguém pode negar os benefícios materiais sem precedentes da ciência e da tecnologia, mas não desaparecem nossos problemas fundamentais; ainda assim enfrentamos os mesmos sofrimentos, medos e tensões, se não maiores. Portanto, é lógico tentar manter um equilíbrio entre o desenvolvimento material por um lado e o desenvolvimento de valores humanistas e espirituais pelo outro. Para efetuar esta grande correção, necessitamos reavivar nossos valores humanitários.

Estou certo de que muita gente compartilha minha preocupação pela atual crise moral do mundo, e que unir-se-ão ao apelo que faço a todos os praticantes religiosos e humanista que também sentem esta preocupação em tornar nossas sociedades mais compassivas, justas e equitativas. Não falo como budista, em sequer como tibetano.

Tampouco falo com especialista em política internacional, ainda que, inevitavelmente comente sobre estes temas. Falo simplesmente como ser humano, como defensor dos valores humanitários que são o fundamento não só do budismo Mahayana, como de todas as grandes regiões do mundo.

A partir dessa perspectiva, compartilho com vocês minha visão pessoal de que:

– O humanitarismo universal é essencial para a solução dos problemas globais;

– A compaixão é o sustentáculo da paz mundial;

– Todas as religiões do mundo já estão a favor da paz mundial através destes meios, assim como o estão todos os humanistas de qualquer ideologia;

– Todo indivíduo tem a responsabilidade universal de modelar as instituições, colocando-as a serviço das necessidades do homem.

A Necessidade da Transformação das Atitudes Humanas

Dos muitos problemas que enfrentamos hoje em dia, alguns são calamidades naturais que devem ser aceitas e enfrentadas com equanimidade. Outros, no entanto, são os resultados de nossa própria ação, criados por desavenças que podem ser corrigidas. A este último pertence aquele que surge do conflito ideológico, político ou religioso, quando se luta com fins mesquinhos, perdendo de vista a humanidade fundamental que nos une a todos numa só família.

Devemos recortar que as diferentes religiões, ideologias e sistemas políticos do mundo têm por objetivo ajudar o homem a alcançar a felicidade. Não podemos perder de vista este objetivo fundamental, e por nenhum motivo devemos colocar os meios acima dos fins; a supremacia do humanitarismo sobre a matéria e a ideologia deve conservar-se sempre.

Todos os seres, pertençam eles a espécies mais evoluídas, como os seres humanos, ou a espécies mais simples, como os animais, buscam primordialmente a paz, o bem-estar e a segurança. A vida é tão preciosa para o silencioso animal como para qualquer homem; mesmo o mais simples inseto busca proteção dos perigos que ameaçam sua vida. Assim como cada um de nós quer viver e não deseja morrer, assim sucede também com todas as demais criaturas do universo, ainda que a existência ou não de poder para tal seja uma questão à parte.

Em termos gerais, podemos dizer que existem dois tipos de felicidade e de sofrimento, o mental e o físico, e dos dois creio que o sofrimento e a felicidade mentais são os mais agudos. É por isso que sublinho, enfatizo a importância da educação da mente para desenvolver a capacidade de suportar o sofrimento e alcançar uma felicidade mais duradoura.

Sobre esta, tenho uma ideia bem concreta: vejo-a como uma combinação de paz interior, desenvolvimento econômico e, sobretudo, de paz mundial. Para atingir estes objetivos, sinto que é necessário desenvolver um senso de responsabilidade universal, um profundo interesse por todos, independente de credo, cor, sexo ou nacionalidade.

O princípio que rege esta ideia de responsabilidade universal é o simples fato de que, em termos gerais, os desejos do outro são os mesmos que os meus. Todos os seres desejam a felicidade e não o sofrimento.

Se nós, como seres humanos inteligentes, não aceitarmos este fato, cada vez haverá mais sofrimento neste planeta. Se adotamos uma perspectiva egocêntrica da vida e continuamente usamos os outros para nosso benefício, pode ser que obtenhamos benefícios temporários, mas a longo prazo não conseguiremos nem sequer nossa felicidade pessoal, e então a paz mundial estará totalmente fora de nosso alcance.

Em busca da felicidade, os homens têm feito uso de diferentes métodos que com demasiada frequência são cruéis e repulsivos. Comportam-se de forma totalmente indigna à sua condição humana, e, para seu próprio benefício, infligem sofrimentos a seus semelhantes e a outras criaturas. A longo prazo, estes atos de miopia trazem sofrimento a si mesmos e aso outros.

Nascer como um ser humano é, em si mesmo, um privilégio extraordinário, e é sábio usar esta oportunidade o mais efetiva e habilmente que nos seja possível. Para que a felicidade ou prestígio de uma pessoa ou grupo não se busque às custas de outros, devemos manter a perspectiva correta – a perspectiva da vida no Universo.

Tudo isso requer um novo enfoque aos problemas globais. O mundo, como resultado dos rápidos avanços tecnológicos e do mercado internacional, assim como das crescentes atividades transnacionais, é cada dia menor e mais interdependente; há atualmente uma grande dependência mútua. Na antiguidade os problemas eram, em sua maioria, de escala familiar e eram abordados naturalmente nesse mesmo nível, mas a situação mudou.

Hoje em dia somos tão interdependentes, estamos interconectados tão estreitamente, que sem um sentido de responsabilidade universal, sem um sentimento de fraternidade universal e sem a compreensão e a convicção de que realmente somos parte de uma grande família humana, não podemos esperar transcender os perigos que ameaçam a nossa existência e muito menos alcançar a paz e a felicidade.

Uma nação já não pode resolver seus problemas satisfatoriamente por si só; muito depende do interesse, da atitude e da cooperação das demais. Uma abordagem universalmente humanitária aos problemas do mundo parece ser a única base sólida para a paz mundial.

Que significa isso? Partimos do reconhecimento já mencionado de que todos os seres buscam a felicidade e não desejam o sofrimento. Resulta, então, num erro moral e numa ignorante insensatez pragmática, o perseguir exclusivamente nossa própria felicidade, indiferentes ao sentimento e aspirações de todos aqueles que nos rodeiam como membros da mesma família humana.

A atitude mais sábia é pensar também nos demais quando buscamos nossa felicidade. Isso nos conduzirá ao que eu chamo um “inteligente interesse pessoal” que, com sorte, pode-se transformar em um “interesse pessoal comprometido” ou, ainda melhor, em um “interesse mútuo”.

Ainda que se possa esperar que a crescente interdependência entre as nações gere uma maior cooperação, é difícil atingir um espírito de autêntica colaboração enquanto as pessoas continuarem indiferentes ao sentimento e à felicidade dos demais.

responsabilidade universal

Foto: Pixabay

Quando as pessoas são motivadas, em grande parte, pela cobiça e inveja, não se pode viver em harmonia. Pode ser que uma abordagem espiritual não resolva todos os problemas políticos que existem devido ao atual enforque egocêntrico, mas a longo prazo, levará à superação da própria base dos obstáculos com que nos defrontamos.

Nós nascemos e renascemos incontáveis vezes, e é concebível que cada ser haja sido, em algum momento, nosso pai ou mãe. Desta maneira, todos os seres no universo compartilham uma relação familiar.

Por outro lado, se a humanidade continua abordando seus problemas considerando exclusivamente sua conveniência imediata, as gerações futuras terão que enfrentar terríveis dificuldades.

A população global aumenta e nossos recursos se esgotam rapidamente. Tomemos as árvores como exemplo. Ninguém sabe com exatidão que efeitos desfavoráveis produzirá no clima, no solo e na ecologia global o desmatamento em grande escala. Nos defrontamos com problemas que são consequência de ações baseadas excessivamente em interesses egoístas e de curto prazo, que não levam em consideração toda a família humana.

As pessoas não se preocupam nem pela Terra, nem pelos efeitos que a longo prazo seu comportamento terá sobre a vida universal como um todo. Se nossa geração não se preocupa agora com estes problemas, pode ser que as gerações futuras já não consigam fazer-lhes frente.

A Compaixão como Pilar

De acordo com a filosofia budista, a maioria de nossos problemas se deve ao desejo e apego pelas coisas que erroneamente interpretamos como entidades perenes. A perseguição dos objetos de nosso desejo e apego traz o uso da agressão e da competição como supostas ferramentas eficazes.

Estes processos mentais facilmente se traduzem em atos que obviamente engendram a violência. Atos este que têm ocupado espaço na mente do homem desde tempos imemoriais, mas cuja execução se tornou mais eficaz nas condições atuais. O que podemos fazer para controlar e regular estes “venenos” – o engano, a cobiça e a agressão? Pois são eles que estão por trás de quase todos os problemas do mundo.

Como alguém educado na tradição do Budismo Mahayana, sinto que o amor e a compaixão constituem a estrutura moral para a paz mundial. Antes de mais nada, definirei a que me refiro quando falo de compaixão. Quando se sente pena ou compaixão por uma pessoa muito pobre, está se demonstrando simpatia porque ele ou ela é pobre; esta compaixão está baseada no altruísmo.

Por outro lado, o amor pela esposa, pelo esposo, pelos filhos ou por um amigo querido está geralmente baseado no apego. Quando a relação se altera, nosso sentimento de amor pode se modificar e até mesmo desaparecer. Este não é o verdadeiro amor.

O amor autêntico não se baseia no apego e sim no altruísmo. Neste caso, a compaixão continuará mesmo enquanto houver sofrimento na relação.

Este tipo de compaixão é o que devemos esforçar-nos por cultivar em nós mesmos, e devemos levá-la do limitado ao ilimitado. Uma compaixão indiscriminada, espontânea e ilimitada por todos os seres vivos não é obviamente, o tipo de amor que geralmente se sente pelos amigos ou pela família, amor contaminado pela ignorância, desejo e apego. A espécie de amor que devemos defender é este amor mais amplo que se pode sentir mesmo por alguém que nos tenha causado dano: nosso inimigo.

O princípio da compaixão é que todos e cada um de nós quer evitar o sofrimento e alcançar a felicidade. Isto, por sua vez, está baseado no sentimento válido do “eu”, que determina o desejo universal pela felicidade. Na verdade, todos os seres nascem com desejos similares, e todos devem ter o mesmo direito a realizá-los. Se eu me comparo com os outros, que são inumeráveis, sinto que eles são mais importantes, porque eu sou somente um, enquanto que os demais são muitos.

E ainda mais, a tradição budista tibetana nos ensina a ver a todos os seres como a nossas mães amadas e a demonstrar nossa gratidão amando-os a todos. Pois, segundo a teoria budista, nós nascemos e renascemos incontáveis vezes, e é concebível que cada um dos seres haja sido, em algum momento, nosso pai ou mãe.

Desta maneira, todos nós, seres no universo, compartilhamos uma relação familiar. Havendo crença em religião ou não, não há ninguém que não valorize o amor e a compaixão. Desde o momento de nosso nascimento, estamos sob o cuidado e a bondade de nossos pais; mais tarde, ao enfrentar-nos com o surgimento da doença e da velhice, voltamos a depender da bondade dos outros.

Se ao princípio e ao fim de nossa vida dependemos da benevolência dos demais, por que então, durante a vida não agimos com a mesma bondade com os demais?

O desenvolvimento de um coração bondoso, de um sentimento de proximidade com todos os seres, não implica o tipo de religiosidade que normalmente associamos com uma prática religiosa convencional. Este objetivo não se aplica somente às pessoas religiosas, mas a todos, sem importar raça, religião ou filiação política.

É para todo aquele que se considera, acima de tudo, membro da família humana e vê as coisas desta perspectiva superior. Este é um poderoso sentimento que devemos desenvolver e por em prática; mas em vez disso o ignoramos, particularmente nos anos de nossa juventude, quando experimentamos uma falsa segurança.

Quando levamos em consideração esta perspectiva mais ampla, o fato de que todos buscamos a felicidade e desejamos evitar o sofrimento, e quando conseguimos manter presente nossa relativa pouca importância em reação aos outros eres, inumeráveis que são, podemos concluir que vale a pena compartilhar com eles nossas posses.

Ao pôr em prática esta visão, torna-se então possível um sentimento de autêntica compaixão, de autêntico amor e respeito pelos demais. A felicidade individual deixa de ser um esforço egoísta consciente para converter-se em uma consequência natural e superior de todo o processo de amar e servir os demais.

Outra consequência do desenvolvimento espiritual, que muito proveitosa para a vida cotidiana, é uma grande calma e estabilidade de ânimo. Nossas vidas estão em um constante fluxo, o que nos ocasiona muitas dificuldades. Quando as enfrentamos com mente clara e serena, os problemas podem ser resolvidos com êxito.

Mas quando, pelo contrário, o ódio, o egoísmo, a inveja e a ira nos fazem perder o controle de nossa mente, perdemos também nossa capacidade de clareza mental. A mente fica cega, e nesses momentos de loucura pode acontecer qualquer coisa, inclusive a guerra.

Portanto, a prática da compaixão e da sabedoria é de grande utilidade para todos, especialmente para aqueles que são os responsáveis pelos assuntos nacionais, em cujas mãos está o poder e a oportunidade de criar a estrutura para a paz mundial.

Dalai Lama

Dalai Lama, 2005. Foto: Chuck Close

Escrevo estas linhas
Para expressar meu sentimento constante.
Cada vez que conheço alguém, tenho sempre o mesmo sentimento:
“Estou conhecendo outro membro da família humana”.
Esta atitude tem aprofundado
Meu afeto e respeito por todas as criaturas.
Oxalá este anseio natural seja
Minha pequena contribuição à paz mundial.
Rezo por uma família humana mais benevolente,
Mais cuidadosa e compreensiva
Sobre este planeta.
A todos os que desejam o sofrimento,
Aos que apreciam a felicidade duradoura
A estes envio este apelo sincero.


O texto acima foi publicado originalmente na Revista Bodisatva nº 03, em 1991. Este exemplar está esgotado, mas outras edições da revista podem ser adquiridos pela loja virtual do CEBB.


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1 Comentário

  1. Ormando disse:

    Lindo texto!
    Preciosa fonte de inspiração e sabedoria nestes tempos caóticos de materialismo e confusão…

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