Imagem de São Paulo. Foto: Kaique Rocha

Quatro dias em Retiro pelas ruas de São Paulo

Monge Koho Mello nos conta de sua experiência como retirante dormindo, comendo e praticando o Darma pelas ruas de São Paulo



Conhecida por fundir a prática espiritual com engajamento social e político, a ordem budista norte-americana Zen Peacemakers concebeu e promove há décadas os chamados Retiros de Rua. Nesta prática, os retirantes são basicamente expostos às mesmas questões que definem o dia-a-dia de um morador de rua: o que e quando vou comer, onde e como vou dormir. Mas a prática interna, a lida com a própria mente, esta sim é que é o desafio.

Neste texto, o Monge Koho, brasileiro reconhecido por Genro Roshi do Zen Peacemakers como líder autorizado a promover esses retiros, conta à Bodisatva de sua experiência e seu aprendizado nas ruas de São Paulo.

Em novembro de 2011, participei de um Retiro de Rua, em São Paulo, o primeiro a ocorrer na América Latina. Para mim, foi a segunda experiência desse tipo, pois já havia participado em um Retiro assim dois anos atrás, em Zurich, cidade onde resido atualmente. Entre outras diferenças, dessa vez eu estava no meu país natal, convivendo com pessoas que falavam minha língua materna, e em um ambiente social bem mais desafiador do que o da Suíça. Assim, desde o princípio me preparei para uma vivência bastante intensa, e isso se confirmou.

Ficamos por quatro dias e três noites perambulando pelas ruas do centro de São Paulo. Como líder do Retiro estava Genro Roshi, um Professor do Zen Peacemakers, grupo budista norte-americano caracterizado pelo engajamento social, no qual foi concebido esse tipo de Retiro. Como recurso mais importante, tivemos os ensinamentos das ruas de uma grande cidade, através de seus moradores de fato, que conhecem bem a ética e a lógica desse ambiente. Como apoio prático, a ajuda humanitária de várias Instituições que prestam auxílio a pessoas em situação de risco social.

Num Retiro de Rua, desde o primeiro momento a Prática espiritual assume um caráter muito pragmático, pois estar com a mente atenta e relaxada é um recurso essencial para nossa integridade e para uma imersão razoável nessa dura realidade, o que inclui confiar na incerteza de cada momento.

A rotina proposta para o Retiro é bem simples: duas sessões de meditação sentada por dia — onde e quando fosse possível, com um círculo de partilha após (o Conselho), uma cerimônia budista uma vez ao dia, e caminhar bastante o restante do tempo, sempre no grupo ou pelo menos em duplas, com o olhar atento na busca do mínimo que precisávamos para nos nutrir, e de um lugar relativamente seguro e minimamente confortável para dormir.

Éramos sete homens e duas mulheres, e muito rápido nos tornamos bem próximos, irmanados na riqueza de cada momento vivido lado a lado, nas circunstâncias incomuns de deixarmos de ser quem normalmente éramos. Nossos títulos e papéis usuais cediam lugar a seres humanos mais reais, ocupados em cultivar confiança, humildade e serenidade diante de aspectos usualmente negligenciados nas comodidades do cotidiano.

Num contexto assim, a inteireza de um ser humano pode manifestar-se em totalidade. Contatamos com o mais nobre e com o mais desafiador da nossa natureza. Cada situação, cada pessoa que se nos apresenta é um professor e uma lição.

Para mim, o ponto de maior importância foi observar o quão rápido minha mente se deslocava numa sucessão de visões condicionadas. Ainda que tendo realizado na semana anterior a preparação recomendada para o Retiro — não tomar banho nem fazer a barba ou raspar a cabeça, portar só a roupa do corpo e um documento, sem nada de dinheiro ou elementos de contato com a minha “vida normal” -, mesmo assim comecei mais uma vez o Retiro investido do meu papel de pessoa com vida estruturada, um monge ordenado no Zen com ritmos de vida definidos e hábitos saudáveis.

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Imagem de São Paulo. Foto: Kaique Rocha

Gradualmente, percebi que minha identidade se deslocava desse “clube” – do Nós, que temos referências de casa, família e hábitos estruturados – para outro clube, o d’Eles, os que tem cheiro desagradável, são desprovidos de perspectivas e não respeitam os códigos e hábitos de gente “normal” e educada.

E aqueles que antes eram Eles, tornavam-se agora, para mim, rapidamente mais aceitáveis, mais confortavelmente agradáveis de conviver, até mesmo familiares, porque transmutavam-se de uma representação de ameaça para uma fonte real de apoio, informação e camaradagem, sem impor quaisquer exigências ou críticas.

Por outro lado, à medida que o tempo naquelas condições produzia na minha aparência e postura os efeitos que me ajudavam a assumir mais e mais o papel de morador de rua, aqueles que antes eu colocava na categoria do “Nós” iam se distanciando no horizonte do familiar, e até começavam a ocupar um lugar de relativa aversão, nutrida pela indiferença e pelas demonstrações de condicionamentos provenientes do medo do diferente, do desagradável.

Assim, sempre que realizávamos a cerimônia dos “Portais do Doce Néctar”, em que dedicamos nossa Prática à saciedade de todos os espíritos famintos, eu me conectava com essa minha fome individual, a de ser dotado de maior aceitação, de uma compaixão mais real e profunda, do cultivo de uma mente mais vasta que vá para além das brumas do ilusório, e que me permita conectar com cada ser em uma motivação de autêntica inteireza.

Nesse sentido, o Retiro foi muito generoso para comigo. Todos os dias, em cada situação, novos e surpreendentes aprendizados. Um dos nossos primeiros interlocutores e sábio professor na arte de viver nas ruas de São Paulo, o Seu Bezerra, me acessou um nível de acolhimento e compreensão da dor e da tristeza que poucas vezes vi em um ser humano.

No nosso primeiro encontro, nas escadas da Catedral da Sé, ele estava um pouco bêbado, e recostado num degrau à nossa frente, perguntou o que queríamos ali, na rua. Explicamos resumidamente nossos propósitos – já que não há no Retiro o objetivo de fingir sermos moradores de rua autênticos – e Seu Bezerra declarou que já nos observava desde que ali chegáramos, e que sabia não sermos “de verdade”. Mas que iria nos ajudar no que precisássemos. E assim foi. Nas vezes em que o encontramos, como também com outras pessoas das ruas, fomos acolhidos, bem informados e até protegidos.

No desjejum da última manhã em que passamos na rua, servido por uma comunidade franciscana na Praça da Sé, mais uma vez seu Bezerra veio nos saudar, dar dicas, informar que podíamos optar entre café com leite e chocolate quente. Como soube que eu gostava de escrever e que mantinha um blog, com palavras gentis que poderiam servir de exemplo a muitas pessoas bem educadas, Seu Bezerra pediu que eu relatasse o que havia vivenciado, e que, se possível, citasse o nome dele, para que os seus dois filhos adotivos, recolhidos por ele das ruas, sentissem orgulho do pai.

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Imagem de São Paulo. Foto: Kaique Rocha

Outro momento intenso teve a ver com Cláudio, homem mulato relativamente jovem, com pouquíssimos dentes e visíveis sequelas de um atropelamento, que também encontramos já no primeiro dia. No dia seguinte, ele estava ajudando como voluntário em um Centro de Acolhimento sob um viaduto, e nos recebeu de braços abertos, todo orgulhoso de seu crachá feito de papelão, com uma saudação efusiva de “minha família”!

Quando nos sentamos para almoçar, Cláudio pediu que eu traduzisse algo que ele precisava dizer para Genro Roshi. Sentei ao lado deles, e ele se calou e começou a chorar, como uma criança. Procurei acolher a tristeza dele, ficando mais próximo, e esperei por minutos que me pareceram horas, sentindo ressonar em mim toda a solidão e desamparo daquele ser humano franzino.

Cláudio acalmou-se e nos disse que, até ter nos encontrado no dia anterior e ser tratado como alguém que merecia atenção e respeito, sua impressão era de que jamais voltaria a ter a alegria de sentir alguém como amigo.

Genro Roshi o abraçou como a um filho,consolando e acolhendo, e logo fomos os três tratar de questões bem mundanas, como entrar na longa fila do almoço, no qual me alegrei com um belo prato plástico cheio de arroz, feijão, salada e um hambúrguer apetitoso – logo eu, que pratico o vegetarianismo há mais de trinta anos… Que importa, afinal, se “comemos para praticar o bem, para evitar o mal, para seguir o caminho do Buda”

Ao longo daqueles dias, sempre havia o refúgio seguro e sereno da prática silenciosa do Zazen. Sentados em círculo, partilhávamos o tesouro das nossas presenças.

Em muitos momentos, nutrido pela experiência de me sentir tão vivo e presente, me surpreendia apreciando em profunda alegria algumas coisas banais, que em outras ocasiões me passariam desapercebidas.

Desde o sabor confortador das sopas que gentilmente os trabalhadores sociais nos davam ao cair da noite, o cantar dos pássaros nas praças que nos tirava do sono em nossos colchões de papelão, até a diversão inesperada de lidar com as enormes ratazanas que numa noite quase atropelaram minha cabeça e de outros dois praticantes. Tudo foi parte da Prática, todos despertaram em mim algum aspecto de lucidez e presença atenta.

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Imagem de São Paulo. Foto: Kaique Rocha

Ao final da experiência, nos sentíamos de algum modo tão serenos que algo parecia ter ido para o seu devido lugar, em cada um de nós. Para mim, a percepção era de uma pertinência ampla e não localizada, como se sentisse em cada canto daquela cidade imensa, em cada rua, praça, árvore ou viaduto, uma parte da minha casa; da mesma forma, no olhar da cada ser que encontrava, estava a alegria terna de rever um familiar que havia de alguma forma negligenciado em minhas lembranças e preces.

Como monge, lembrei das palavras de Coen Roshi, minha Mestra no Darma Budista, quando ela diz que “ receber a Ordenação é adentrar a grande família iluminada, é tornar-se uma criança Buda na casa de Buda.” Assim é.

Após meros quatro dias sem nada possuir, abraçando a incerteza de muitas vezes me sentir perdido e com frio nas ruas da imensa São Paulo, voltei um pouco mais para minha casa que está em toda parte e para minha família que é feita dos incontáveis seres. E, de algum modo, pude repousar todo o tempo, com leveza e alegria, me sentindo uma criança na palma das mãos de Buda.

Gratidão a todos que de algum modo colaboraram para que esse Retiro de Rua fosse possível. Que os méritos da nossa Prática se estendam a todos os seres, e que possamos todos e todas nos tornar o Caminho Iluminado.


Koho Mello nasceu em Itaqui (RS) em 1962. Recebeu os preceitos leigos de Moriyama Roshi em 2003 e Ordenação monástica de Coen Roshi em 2008. Praticante no Via Zen desde o início de sua prática formal, atualmente reside na Suíça, onde coordena o Via Zen Zürich. Profissionalmente, atua como Educador e Terapeuta.


Para saber mais

Monge Koho segue com a prática dos Retiros de Rua. Depois do retiro em São Paulo descrito para nós, participou de mais dois em Zürich, Suíça; co-liderou um outro retiro em São Paulo com Genro Roshi; e liderou um outro retiro em Nüremberg, Alemanha.

Se você tem interesse em participar, entre em contato com uma das pessoas formalmente autorizadas a liderar os Retiros, ou diretamente com a Zen Peacemaker Order, que indicará onde e quando ocorrerá um evento.


Apoiadores

7 Comentários

  1. Ana camargo disse:

    Não sei se conseguiria
    Tenho medo!

  2. Jess disse:

    É realmente fascinante! Isto mostra a nossa limitação enquanto não vencermos os estigmas impostos prematuramente pelo samsara!

  3. Jéssica Sojo disse:

    Que grande ensinamento! Parabéns.

    Gratidão pela partilha.

  4. Gilmar De Sá Rodrigues disse:

    Fascinante! Koho manteve a mesma motivação e atitude engajada mesmo que não fosse num hotel ou resort…

  5. Lama Padma Samten disse:

    Muito especial!

  6. José Maxsuel de Moura disse:

    Que texto lindo! Obrigado pela partilha. <3

  7. José Maxsuel de Moura disse:

    Muito profundo!

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