Bhante Buddharakkhita e sanga em ensaio do jornal The Guardian (theguardian.com)

Como construir uma ponte entre o budismo e a sabedoria africana?

O monge ugandês Bhante Buddharakkhita tem dedicado sua vida a enraizar o Darma em solo africano a partir da sabedoria que esses povos já possuem 


Por
Revisão: Gabriela Silva
Edição: Caroline Souza
Transcrição: Igor Souto
Tradução: Igor Souto

Em conversa com Lama Padma Samten e estudantes do college ligado ao CEBB Talks, o monge de Uganda Bhante Buddharakkhita respondeu perguntas e falou sobre como vem trabalhando, há alguns anos, para a construção de uma intersecção entre o budismo e as sabedorias tradicionais africanas.


Pergunta: Estou bastante curioso para saber sobre Uganda: por onde você começa quando quer ajudar as pessoas por meio do budismo? Por exemplo, eu suponho que quando você estava na Ásia, eles tinham uma abordagem padrão sobre por onde começar a praticar o budismo e como ajudar as pessoas. E nos Estados Unidos talvez o ponto de partida seja um pouco diferente. Como você vê essa perspectiva na África sobre como iniciar essa conexão com as pessoas? 


BHANTE:
Muito obrigado pela pergunta! É uma ótima questão e muito importante para mim. Eu fui treinado por oito anos nos Estados Unidos, em West Virginia, na Bhavana Society. Por falar nisso, viajei a St. Louis, fui à Califórnia meditar, visitei muitos, muitos lugares. E quando eu deixei os EUA e voltei para a África pela primeira vez, eu usava a abordagem ocidental, da maneira que meu professor me ensinou. Meu professor escreveu um livro sobre mindfulness e eu estava conduzindo retiros nos EUA, mas eu realmente não sabia como poderia abordar o povo africano para ensiná-los o Dhamma. Não fui treinado como missionário mas, ainda assim, eu fui. Contudo, eu estava só dando murro em ponta de faca. Eles não entendiam minha mensagem. Eu começava ensinando-os mindfulness e todos os ensinamentos diretamente, mas logo descobri que aquilo não ia funcionar. 

Então, eu voltei à estaca zero. Voltei a estudar. Olhando para trás, vi a abordagem que o Buda usava, e assim por diante, e pensei: “Ok, eu vou usar duas abordagens. Uma delas é mais rápida de traduzir: o que é o pensamento africano? Em outras palavras, eu estava retornando ao que os africanos pensavam antes de qualquer religião ter chegado, seja o islamismo, qualquer uma. Entendendo isso, eu sabia que isso seria um ponto de partida, porque eles têm, inclusive, a lei do kamma [“carma”, em páli], ainda que de uma forma muito rudimentar. Eles têm todos esses ensinamentos, mas eles estavam espalhados por aí, sabe? Eu os uni, de um ponto de vista acadêmico, para fazer meu bacharelado, meu mestrado em filosofia, e agora pesquiso como conectar mindfulness e a sabedoria africana para curar traumas intergeracionais. Agora estou tocando o problema, estou tocando o pulso dos africanos, porque eles estão todos traumatizados, de muitas formas. E, assim, o que eu estou fazendo? Uma intersecção entre mindfulness e a sabedoria africana. Então esse foi um ponto de partida. 

Ainda assim, houve muita pesquisa e muitas oficinas. Alguns apreciaram fazer todas essas conexões. Mas, e quanto às pessoas que não podiam sequer entender minha pesquisa? Para essas pessoas, ainda usei a mesma abordagem de como eu comecei a ensinar em Uganda, porque a maior parte do tempo eu ensinava em inglês, incluindo a minha mãe, que não entendia inglês. Eu era tímido. Quero dizer, era muito difícil traduzir isto para a minha língua. Porém, quando eu desacelerei, descobri que alguns ensinamentos incríveis podem até assustar; mas eu estava indo rápido demais. Eu tive que reduzir a velocidade, e, então, me sentar, dar uma boa olhada nos ensinamentos do Buda para codificá-los numa linguagem que pudesse ser ensinada até para a minha mãe. Desse modo, durante o lockdown do COVID-19, ensinei tanto minha mãe que cheguei a ter pena dela! Minha mãe é uma monja, ela se converteu para o budismo, mas eu não estava dando ensinamentos porque eles eram em inglês. 

Contudo, eu desacelerei tanto, durante minha pesquisa, porque eu tinha que buscar a intersecção entre mindfulness, que é budismo, e a sabedoria africana. Então, essa é uma abordagem: traduzir para algo que eles realmente entendam, algo que precede a vinda de religiões, e assim pude estabelecer uma conexão com o Dhamma. 

A outra abordagem é exatamente sobre o que você falou. Os africanos não estão interessados em kamma, nesse tipo de coisa. O que eu fiz foi ver quais eram os problemas deles, e descobri que a maior parte dos seus problemas eram econômicos. Então abordei  isso desde vários ângulos, e isso me levou a tentar essa outra abordagem em uma escola: esta escola é chamada de “A Escola das Bordoadas” (The School of Hard Knocks). Tive que aprender a fazer esses programas por meio da experiência. 

Bhante Buddharakkhita, Lama Padma Samten e estudantes e organizadores do college ligado ao CEBB Talks

O primeiro programa, na verdade, foi começar pela educação, o que quer dizer que eu fiz uma escola e acolhi suas crianças. As crianças são muito jovens, há crianças muçulmanas, cristãs, tudo isso, e eu fornecia uma educação gratuita. Assim, eu comecei a ensiná-las meditação. Nesta interação, elas sabem que são crianças na escola, a Buddhist Center Peace School (Escola Budista da Paz em Uganda). E eu digo aos pais e mães o que estou ensinando, e eles aceitam, pois querem que suas crianças sejam pacíficas. Também comecei a ensinar professores. Agora, nós temos cerca de 24 crianças. Depois disso, fundarei uma escola primária. E assim iremos até a universidade. Até que eu crie a primeira universidade budista na África. Porque eu sei, é educação, educação e educação para transformar. Vocês devem estar se perguntando por que eu repeti “educação” três vezes, mas isso é outra história.

A próxima questão foi a seguinte: notei que o problema da sociedade aqui, na África, era que as mulheres não estavam empoderadas. Então, eu criei alguns projetos de empoderamento das mulheres, por meio do qual as mulheres poderiam costurar uniformes para as suas crianças. Portanto, está tudo conectado. Asseguramos que elas tenham um meio de subsistência com suas habilidades manuais, produzindo artesanato, roupas e vendendo. E eu sei que era o que elas precisavam, porque seus maridos negligenciavam-nas. Então eu criei outro programa para a juventude, voltado para o estudo da carpintaria. Mas não parei aí. Fiz o que se chama “Cultural Dance” (dança cultural). Agora, com as escolas fechadas, temos cerca de 15 mulheres que vêm e dançam. Vocês sabem, a dança pode reerguer o espírito africano ritmicamente. Eles vêm para meus ensinamentos aos domingos, porque todo domingo eu ensino. Mas para a apresentação de tambores eles vêm todos os dias, principalmente as mulheres, elas amam! Agora eles têm vindo continuamente. Isso se enquadraria nos nossos programas culturais.

Por último, mas não menos importante, estão os nossos Projetos de Água, porque eu sabia que o problema aqui era falta de água limpa. Temos cerca de 94 poços perfurados na área, três dos quais fornecem para as escolas, e até o fim de junho teremos mais 15 poços. O que significa isso, realmente? Vou espalhar a mensagem do Buda. A partir de agora, em todos os poços artesianos que já fizemos, vou colocar um trecho do Dhammapada. Sobre todo poço que oferecemos para a comunidade haverá uma mensagem do Buda. A cada vez que puxarem água do poço, a mensagem estará lá (risos). Então, meu primeiro trabalho é espalhar esta mensagem, e ela está lá: compaixão na ação

É isso, é este o paradigma que eu uso. Paradigmas como esse introduzem o budismo na comunidade. Você tem que fazer algo que eles possam ver com os próprios olhos, especialmente em lugares onde nunca houve budistas. Se você não fizer algo que eles possam ver com os próprios olhos, algo muito tangível, pode esquecer! E depois dos olhos, em segundo lugar, há os ouvidos. Do que eles podem ver com os olhos você tem que achar algo compatível com os seus ouvidos, com o que eles podem ouvir, de modo que eles abram seus ouvidos para você. Por último, o coração. De nada adianta começar com o coração, ou com os ensinamentos do Buda sobre originação dependente, e carma, e isso, e aquilo: quando você começa com o coração-mente as pessoas não entendem. Você vai do coração para o ouvido e às vezes nem vai para os olhos. 

Meu paradigma é diferente e é essa a abordagem que eu venho usando na África. Uma vez que você usa os ensinamentos budistas sobre compaixão…você vê os poços artesianos e eles estão conseguindo água limpa, bem ali, é visível aos olhos. Os poços estão localizados nas duas estradas que levam ao templo, para que as pessoas não percam a mensagem.  Se você vem ao templo, mesmo sem a intenção, você vê o ensinamento logo ali: compaixão na ação. Um poço do lado esquerdo, outro do lado direito. Gratuitamente, livre de cobranças! Então os olhos estão ali. 

Então, quando quero colocar alguma comida do Dhamma em seus corpos e mentes, eu coloco Dana, ou generosidade. Cozinhamos comida e os convidamos. E eles comem. E antes de eles irem embora eu peço que, por favor, venham ao tempo, pois tenho uma mensagem importante para compartilhar. E eles abrem seus ouvidos. Depois que eles abriram seus olhos e seus ouvidos, naturalmente abrem a mente e o coração. Este é o meu paradigma. Muito obrigado pela sua pergunta. Espero que ajude!

Há diferentes paradigmas, não podemos usar o mesmo em todos os lugares. Quando eu for ao Brasil, sei exatamente o que fazer. Acho que essa abordagem pode funcionar bem no Brasil, na verdade. Como eu disse, isso não foi algo que eu li no Tripitaka. Foi durante a experiência na Escola das Bordoadas tomadas durante a vida (School of Hard Knocks). Tentativa e erro. Um projeto em andamento, ainda em construção. 


Pergunta: Você fala sobre traduzir a essência de uma cultura, ou o que você chamou de porções de sabedoria, e disse que podemos traduzir como “ensinamentos do Darma” para as outras culturas, dentro de seu próprio contexto. Você pensa que é possível ensinar todos os aspectos do Darma desse modo? Você encontrou, em sua experiência, algum ensinamento budista que tenha sido difícil de traduzir para a sabedoria africana?


BHANTE:
Muito obrigado pela pergunta! E, sim, definitivamente, há algumas coisas que você não consegue traduzir diretamente para outras culturas. Essa é a má notícia. Mas a boa notícia é que, quando você capta a essência, ao menos você pode explicar, se relacionar, contar histórias e usar outros métodos, mesmo que você não tenha as palavras específicas. Pelo menos você pode, por meio da experiência, sentir que as outras pessoas entendem. Como o estalar de dedos, por exemplo [Bhante estala seus dedos]: é algo que você não consegue explicar com palavras, mas, ao ser vivenciado na prática, é compreendido. É simplesmente experienciado. Há tantas outras coisas que não conseguimos colocar em palavras exatas, mas, ao perder as palavras, partimos direto para a experiência, e as pessoas entendem. Para mim, isso é maravilhoso. 

Uma vez eu estava viajando no Tibete, em 1996, e não tinha comigo um tradutor neste local particular onde fui. Lá, eu encontrei uma pessoa tibetana que não falava uma única palavra em inglês, e nós circulamos bastante, caminhamos… Ele me mostrou um funeral nos céus [sky burial], e várias outras coisas… É simplesmente incrível: algumas vezes nossa experiência vai além das palavras. E é maravilhoso como conseguimos nos comunicar diretamente com os corações das pessoas.

A linguagem do amor e da bondade, por exemplo, vai além de conceitos. Muitas vezes, as palavras podem se tornar obstáculos para a nossa experiência direta. Eu vi isso acontecer em 1996, após completar a viagem inteira com um cara que não falava uma única palavra de inglês. Mas nós estávamos muito conectados e, assim, podíamos entender um ao outro. 

Então, quando eu não consigo colocar algo em palavras, eu faço uso da experiência: parto para a prática, e aí as pessoas conseguem entender. É claro que há algumas palavras que nunca serão traduzidas, como nibbana [páli para “nirvana”]. Palavras como essa, a gente deixa assim mesmo! Mas, de novo, ela está nos apontando a direção da felicidade e da paz. Nós não usamos a palavra nibbana como sinônimo de “paz completa” ou “felicidade última” porque há um paradigma diferente aqui. 

O conhecimento foi sobre a melhoria da comunidade, e não para a realização última do nibbana, como os ensinamentos do Buda se fundamentam. Muito especiais!  De todos os ensinamentos que temos, os ensinamentos do Buda são muito especiais, e está tudo bem eles serem especiais assim. Mas o que buscamos prometer aos africanos não é o nibbana derradeiro. Quando ensinamos, o nosso objetivo é sobre como viver em harmonia, focamos em como superar a cobiça, a raiva e a delusão. Uma vez que você alcança isso, você deixa as pessoas sentirem a experiência diretamente. 

Falando nisso, o que os ensinamentos fazem é apontar o caminho. O Buda não pode te levar ao nibbana. Leia os ensinamentos dele e você mesmo pode. Em outras palavras, se eu aponto o caminho – as pessoas de diferentes culturas, da cultura africana, da cultura brasileira – deixe-as andarem, para além das palavras.

A segunda experiência foi quando um amigo meu da Inglaterra me visitou aqui. Minha mãe fala Luganda. Minha tia era fluente em inglês. Este senhor inglês e minha tia conversaram infinitamente. Minha mãe me disse para perguntar a este cara o que ele pensava de nós.  Quando eles se encontravam, eles apenas sorriam um para o outro, não falavam absolutamente nada. Quando ele partiu para a Inglaterra, ele disse que gostou bastante da minha mãe. Perguntei: “Por que você gostou dela? Ela não trocou uma única palavra com você!” E ele disse: “Ela é muito, muito bondosa.” É por isso que estou falando que, mesmo que algumas palavras do budismo nunca sejam traduzidas para os idiomas africanos, as pessoas aspiram a uma experiência livre do sofrimento. Elas querem eliminar as causas do sofrimento. Elas querem a cessação do sofrimento. 

Agora, o caminho: atenção plena, mindfulness e todas essas coisas. Ao longo dos anos, há tantas coisas que as pessoas inventaram que apontam nessa direção que o Buda já apontava.  O Buda, evidentemente, disse que há dois caminhos: um leva ao samsara e o outro leva ao nibbana, ou seja, um leva ao aprisionamento e o outro à liberação. Era para isso que ele apontava. Talvez os africanos que estejam no caminho da liberação não conheçam a palavra nibbana, mas eles estão caminhando nessa direção e deixemos que eles caminhem, deixemos que eles se conheçam e eventualmente descubram, por eles mesmos, como chegar a essa paz. Essa é a minha resposta. 

Estou fazendo uma pesquisa de doutorado nessa área, então o trabalho continua. Estou sempre descobrindo coisas novas, sempre me surpreendendo com os saberes que a África já tem! Como o renascimento. Recentemente, descobri que a África tem renascimento – renascimento e carma. É dito que toda criança vem ao mundo por causa de seus ancestrais. Bem, o que é isso? Isso é renascimento. Se toda criança africana nasce devido aos seus ancestrais, isso significa que sempre veio uma pessoa antes. Eles não vão usar a palavra “reencarnação”, “renascimento”, punabbhava, em páli. Mas isso é apenas linguagem apontando para a realidade, como palavras que apontam para a lua, mas as palavras não são a lua. Então, as palavras que usamos no Dhamma estão apontando para a sua experiência. Elas não são a experiência per se. Portanto, não vou pelejar com palavras, com a linguagem, com tudo isso, mas dou o meu melhor para ver se as palavras causam a experiência. Muito obrigado pela pergunta! 


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→ Leia uma fala de Bhante Buddharakkhita sobre como se livrar das crises e ajudar o mundo.

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