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O treinamento da mente é o treinamento da não distração

Entrevista com Acharya Lhakpa Tshering, aluno antigo de Dzogchen Ponlop Rinpoche


Por
Revisão: Caroline Souza e Lia Beltrão
Transcrição: Siene Pacher e Litza Godoy
Tradução: Caroline Souza, Filippe Ximenes e Daniela Castro
Entrevista por: Lia Beltrão

Em abril deste ano, Acharya Lhakpa Tshering esteve no Brasil oferecendo uma série de ensinamentos preciosos para a nossa sanga. Butanês, ele entrou na vida monástica com doze anos de idade, primeiro em seu próprio país e depois continuando sua formação no Monastério de Rumtek, fundado por S.S. Karmapa, em Sikkim, na Índia. Em 2002 ele completou sua formação como Acharya, um título que corresponde a um mestrado em estudos budistas. Desde então tem se dedicado a projetos de Dzogchen Ponlop Rinpoche. Em Katmandu, ele trabalhou como editor do Nitartha Publications, um impressionante trabalho de preservação de textos clássicos sobre o qual ele fala nesta entrevista. Em 2006, a convite de Dzogchen Ponlop, ele se mudou para os Estados Unidos e atualmente é professor residente do Nalanda West.

A visita de Acharya Lhakpa Tshering ao Brasil faz parte dos preparativos para a vinda de Dzogchen Ponlop Rinpoche, em agosto. Durante sua estadia no CEBB Camnho do Meio (Viamão-RS), ele gentilmente recebeu a Bodisatva na casa onde esteve hospedado para um entrevista. Na conversa, Acharya falou sobre seu treinamento em monastérios do Butão e Índia, sua relação com seu professor Dzongchen Ponlop Rinpoche, as primeiras impressões que teve do Ocidente, e alguns conselhos sobre a prática em tempos difíceis. 


Revista Bodisatva: Como você conheceu Dzogchen Ponlop Rinpoche?

Acharya Lhakpa Tshering: Eu nasci e vivi no Butão. Estudei em uma universidade monástica em Rumtek, na Índia, chamada Instituto Karma Shri Nalanda, que é filiada à Universidade Sanskrit Sampurnanand de Varanasi, na Índia. Comecei meus estudos lá em 1993, e tive a oportunidade de conhecer o Rinpoche brevemente. Continuei estudando no monastério, e durante esse período trabalhei com o irmão do Rinpoche, que morava em Rumtek, criando assim uma conexão com ele.

Naquela época, Ponlop Rinpoche possuía o Instituto Nitartha, que estava digitalizando todos os textos tibetanos. Eles contratavam pessoas para digitalizar os textos e preservá-los, sendo que alguns desses textos eram usados para estudo no monastério. Naquela época, alguns textos não eram muito fáceis de ser acessados, e nós precisávamos movimentá-los para dentro e fora da biblioteca. Nós não tínhamos livros de estudos pessoais e os textos eram muito difíceis de serem achados. Dessa forma, o Rinpoche teve a visão de imprimir os livros que eram muito essenciais para o estudo monástico.

Durante meus últimos anos [no Monastério], em todas as férias de inverno e verão, eu viajava ao Nepal com os meus amigos para trabalhar lá, onde o Instituto Nitartha estava. Os textos tibetanos são muito tradicionais e são impressos em velhos blocos. Dessa forma, decidimos fazer os livros para os estudantes monásticos com a estrutura ocidental, com o conteúdo muito claro, sendo fácil achar a página e transportar o livro.

Portanto, trabalhei com essas publicações por muitos anos e foi assim que criei uma conexão com o Rinpoche. Após esse período, em 2006, eu vim para os Estados Unidos, que é onde estou até hoje.

RB: E você conheceu Dzogchen Ponlop Rinpoche nos Estados Unidos ou em Rumtek?

AT: Quando eu o conheci, já estava nos Estados Unidos. Ele veio para cá, estudou na Universidade de Columbia e durante um tempo ensinou na Universidade de Naropa. Depois, mudou-se para Seattle com seus estudantes e estabeleceu o Nalanda West, que é a sede da Nalandabodhi.

RB: E qual é a sua visão sobre os ensinamentos do Rinpoche? Eu acredito que ele usa uma linguagem particularmente ocidental para falar do Darma, como vemos nos exemplos usados em Buda Rebelde. Na sua perspectiva, existe uma diferença entre os professores do monastério em Rumtek, que possuem um método tradicional de ensinar o Darma, e o método do Dzogchen Ponlop?

AT: Eu sinto que há uma diferença em relação a como eu fui treinado, que foi pelo método usado no Tibete durante muitos anos e, portanto, muito tradicional. A forma com que Ponlop Rinpoche introduz o Darma para os ocidentais é muito única, pois ele passou vários anos nos Estados Unidos e entende a sua psicologia. Assim, por ter tido a visão tradicional dos ensinamentos e depois vivenciado e refletido sobre a psicologia ocidental nos Estados Unidos, seu método de introduzir o Darma é muito especial, sutil e fácil de se compreender, e, ainda assim, transmite a mensagem genuína dos ensinamentos de forma pura.

RB: Eu estudei na Biblioteca de Arquivos e Trabalhos Tibetanos (LTWA), em Dharamsala, por 10 meses. Fui do Brasil para lá com visto de estudante para estudar filosofia budista com os geshes, como você, que tiveram todo o treinamento tradicional. Quando cheguei, tive muito dificuldade. Porque, assim como Dzogchen Ponlop Rinpoche, a linguagem do Lama Samten e seus exemplos são muito conectados com a vida cotidiana. Quando eu cheguei lá e vi o jeito com que os geshes estavam acostumados a ensinar, aquilo me pareceu muito difícil de compreender, muito complicado.

Felizmente, conheci Geshe Kelsang Wangmo, que era uma monja alemã que se tornou a primeira geshe na linhagem Gelugpa, não sei se você chegou a conhecê-la. Ela estudou e se graduou no Instituto de Dialética Budista (IBD), em Dharamshala. Atualmente ela está ensinando no mesmo Instituto em que se formou. Seu objetivo é traduzir a lógica e dialética budista, como os textos do Chandrakirti, para a mente ocidental. Eu fiquei tão feliz de encontrá-la, porque aí sim eu consegui entender pelo menos um pouco.

Portanto, eu imagino o quanto as visões são diferentes e como é difícil o diálogo entre esses dois mundos. Ainda mais para ser uma comunicação genuína e pura, como você mesmo disse. Por isso, eu fico muito feliz pelo trabalho do Dzogchen Ponlop.

AT: Sim. Na Índia, existe uma tradição de mandar um professor para diferentes monastérios e templos, e um dos requisitos é o professor ser capaz de falar a linguagem local. Portanto, isso é algo muito importante. E quando vemos todo o progresso que o Ponlop Rinpoche fez na travessia do Darma para o ocidente… Seu jeito de introduzir o Darma no ocidente é muito bem preparado e progressivo.

RB: Acharya, você poderia falar um pouco da sua vida no monastério em Rumtek? Você foi para o monastério e se tornou monge aos doze anos, certo?

AT: Sim.

RB: Com a nossa mente ocidental nós sempre pensamos: e em relação à família, como foi para ele? Nós temos essa perspectiva, às vezes muito estreita. Nesse sentido, como foi pra você ir para um monastério tão jovem? Quando você foi crescendo e se tornando adulto, teve algum momento em que você se questionou se realmente tudo isso, inclusive o Darma, fazia sentido?

Eu me lembro da história do Kalu Rinpoche, que se rebelou e saiu do monastério, indo para Kathmandu para viver uma vida laica. Porém, depois se deu conta do quanto o Darma era precioso e voltou atrás.

E eu me pergunto se quando você era um jovem monge se tornando um Acharya, Geshe, Khenpo ou um Rinpoche, você se questionou se isso fazia sentido, se o Darma e os ensinamentos fazem sentido ou não. Isso já aconteceu com você?

AT: Sim. Quando eu tinha 12 anos, quase 13, eu fui para um monastério no Butão. Essa foi a primeira vez que deixei minha casa e fui para outro lugar passar um longo tempo. Eu cresci numa área muito rural, onde nós não tínhamos o costume de dormir na casa de amigos e coisas assim, e eu fui para o monastério começar meu treinamento.

Sendo sincero, não foi uma experiência muito romântica essa de acordar cedo, rezar e começar as leituras. Quando somos pequenos, na maior parte do tempo nós memorizamos os textos. Tem a memorização e também outros treinamentos como os de rituais budistas. Portanto, desde que eu entrei no monastério, eu tive que começar a tomar conta de mim.

Naquela época, nós não tínhamos luxos como quartos e banheiros separados, nem água quente, nada disso. Eram apenas dois grandes salões onde dormíamos e comíamos. À noite, apenas colocávamos nossas camas lá e dormíamos. E durante o dia, dobrávamos as camas e colocávamos num canto.

RB: Quantos de vocês viviam lá naquela época?

AT: Naquele tempo éramos cerca de 60, entre 13 e 19 anos. E eu sobrevivi (risos). Depois de três meses, meu pai veio me visitar, e eu fiquei tão feliz. Ele me trouxe um par de sapatos e algumas coisas que eram necessárias. Assim, eu estudei lá durante sete anos, e em 1993 fui para Rumtek terminar meu ensino superior.

Durante meus estudos e minha vida de monge, é claro que existiam muitas distrações, tais como: essa é a vida que eu quero ter? Mas fui aprofundando meus estudos sob a orientação do grande mestre Gyamtso Rinpoche. Ele era um dos principais mestres, abaixo apenas do Karmapa. E ele era muito genuíno e de grande conhecimento. Ele não apenas nos dava ensinamentos, mas também conselhos. E por mais que fosse um monastério nós fôssemos acadêmicos, ele sempre misturava estudo com prática. Encontrar professores como ele realmente me fez pensar duas vezes.

No budismo, diz-se que nós já renascemos incontáveis vezes, sempre fazendo as mesmas coisas e esperando resultados diferentes. Portanto, nessa talvez eu devesse fazer coisas diferentes e esperar resultados diferentes. Desde então, eu apenas foco em praticar para ajudar de todas as formas que eu puder.

RB: Quando você veio da Índia para os Estados Unidos, quais foram suas primeiras impressões? Porque mesmo quando as pessoas não são budistas, pensam no Butão como um paraíso, porque é tudo orgânico, e o governo se preocupa com a felicidade das pessoas, e acredito que não poderia haver um ambiente mais diferente do Butão do que os Estados Unidos e o Brasil, no sentido da agricultura, da política e de todas as tecnologias e distrações que nós temos em nossas mentes. Então, gostaria de ouvir o que soou muito estranho para você em nossas culturas.

AT: Essa foi uma grande mudança para mim. Nascer em uma família muito rural, sem eletricidade e água quente, e depois ir para um mosteiro e presenciar todo o barulho sobre os países ocidentais, como as televisões, imagens.

Quando eu cheguei pela primeira vez aos Estados Unidos, fui ao centro e um amigo me levou para passear e conhecer. Eram tantas casas e elas eream tão parecidas umas com as outras. Dobramos à esquerda, à direita, seguimos reto, eu apenas andando rápido atrás dele e pensando: “eu jamais vou saber as ruas e o caminho de volta aqui nos Estados Unidos”. Eu estava realmente assustado (risos). Não era muito bom em caminhadas, mas tentava acompanhar o ritmo dele para não ficar para trás e me perder.

Contudo, depois descobri que os endereços no Ocidente são muito curtos e fáceis de encontrar. Após uma semana, comecei a frequentar uma escola para estudar inglês. Apesar de ter estudado um pouco no monastério, eu não tinha um nível de inglês suficiente para conversar com as pessoas. Primeiro, eu comecei em bibliotecas públicas, as quais ofereciam aulas gratuitas de inglês como segunda língua.

Depois, eu frequentei a faculdade por um ano e meio. E fiquei um pouco chocado no início. Fui criado no contexto de um relacionamento professor-aluno muito tradicional, com respeito, formas adequadas de falar com os mais velhos. Mas, quando cheguei na faculdade, vi estudantes sentando-se sobre as mesas, saindo e entrando toda vez que queriam usar o banheiro, sem pedir permissão. Tudo isso era muito ultrajante para mim.

Mas depois de seis meses, eu me vi nessa mesma situação, fazendo exatamente as coisas que me chocaram no início (risos). E foi uma experiência maravilhosa, embora tenha sido por pouco tempo. Mas a relação entre professor e aluno, a abertura das discussões… No Oriente, sempre temos certa relutância em fazer perguntas ao professor. Mas, quando cheguei no Ocidente, vivenciei discussões muito abertas. Foi maravilhoso.

E outra coisa da qual gostei muito foram as aulas de redação. Nós não temos aulas de redação na universidade monástica. Então, frequentei algumas aulas e, apesar de minha escrita ser muito ruim, deu para ter alguma experiência de como eles ensinam no Ocidente.

RB: Não é possível escrever seus próprios textos no treinamento monástico?

AT: Durante os exames precisávamos escrever, mas apenas compunhamos nosso próprio conhecimento, sem a base de nenhum treinamento. Por exemplo, nós temos disciplinas de inglês. É uma exigência na universidade monástica. E temos que escrever um ensaio sobre a escola, nossa casa, coisas assim. E o que fazemos é comprar um livro de ensaios na livraria, com diferentes tipos de ensaios, muito curtos, de três ou quatro páginas, e depois memorizá-los. E, então, apenas mudamos suas palavras aqui e ali. Quando penso nessas coisas, percebo como perdemos muito tempo e energia. Se tivéssemos algum treinamento de escrita, a experiência provavelmente seria diferente.

RB: Mais criativa..

AT: Sim, mais criativa.

RB: Este ano, no Brasil, estamos tendo a visita de muitos professores. Somos muito afortunados.
Apesar de termos esse novo presidente, de esse ser o primeiro ano de um governo de extrema direita e de as coisas estarem muito ruins politicamente por aqui… Em compensação, estamos recebendo a visita de muitos professores. Por exemplo, Dzogchen Ponlop Rinpoche, Elizabeth Mattis Namgyel, Kalu Rinpoche. E eu acredito que Mingyur Rinpoche também, que já veio ao Brasil algumas vezes, além de Alan Wallace, que vem todo ano e oferece retiros de sete ou dez dias.

Então, somos muito afortunados. Mas a minha pergunta seria: qual é o seu conselho para realmente aproveitarmos ao máximo esses professores? E qual postura de mente deveríamos cultivar ao ouvir esses ensinamentos?

AT: Isso é maravilhoso! Eu acho que a situação cármica, a situação ambiental, os desastres naturais e coisas assim, esse tipo de coisa aconteceu no passado e depois acabou. Está acontecendo no momento e também vai ocorrer no futuro. Torcemos pelo melhor, mas sempre haverá altos e baixos. E em termos de professores, é maravilhoso que tantos estejam vindo e apresentando a mensagem do Buda Shakyamuni.

Aproveitar ao máximo esses professores é muito importante. Eles vêm e nossas perguntas são respondidas. É como um convite de despertar aos brasileiros. Mas isto é somente a parte da inspiração, algo a curto prazo. Para de fato estabelecer o Darma genuíno no Brasil a longo prazo, é necessário ir mais fundo. É preciso, por exemplo, estudar os sutras, os textos que foram escritos pelos acadêmicos indianos e tibetanos. Isso permitirá estabelecer as bases do Darma, para realizá-lo. E, a longo prazo, é muito importante passar o Darma para a próxima geração.

Mas, é claro que ter os professores aqui, conversar com eles, ter nossa perguntas respondidas é como um convite para despertar. Isto aponta o potencial ou a capacidade dos “recipientes” brasileiros.

RB: Relacionado a isso, há uma questão sobre devoção. O budismo veio para o Ocidente, onde ele era primordialmente associado à meditação, à filosofia e psicologia budistas, ao estudo da mente. Mas minha pergunta é sobre o lugar da devoção em nossa prática. Considerando que temos a aspiração de sermos praticantes genuínos, qual o papel que a devoção deveria ter para que o nosso caminho realmente vá direto à iluminação? Sinto que temos a tendência de desprezar a devoção, bem como a prostração e a conexão real com as divindades, a prática a partir do coração, ou praticá-la sem envolver o aspecto cognitivo. Gostaria de ouvir sua visão sobre isso.

AT: A devoção é muito profunda, difícil de ser discutida. Para começar, devemos estudar o Darma. Por exemplo, devemos ouvir o Darma e entender sobre interdependência. Quando você entende que não há fenômenos únicos, ou objeto único que seja intrinsecamente independente, percebe que todas as coisas dependem umas das outras. Assim, nós construímos um tipo de fé, um tipo de confiança de que isso é verdadeiro.

E, lentamente, você progride no caminho e compreende amor, bondade e compaixão. Você vem aos ensinamentos Vajrayana e se fala sobre devoção. Mas a mensagem aqui é a mesma, do começo ao fim. O propósito é o mesmo: entender a natureza da mente, a natureza dos fenômenos. Contudo, isso é apresentado de formas diferentes, correspondentes ao ponto em que estamos no caminho.

Entretanto, quando se trata de devoção, as pessoas ficam um pouco reticentes: “será que devo aceitar ou não? E uma vez que o faça, ficarei preso numa caixinha e não conseguirei sair”. Coisas assim. Mas devoção, do ponto de vista do ensinamento, é ter um olhar sagrado em relação ao outro ser.

Por exemplo, nos ensinamentos Vajrayana, é ter esse olhar em relação ao seu professor, focando nas suas qualidades iluminadas. Não é que você não tenha essas qualidades, que deseje que os professores as transfiram para você para que você subitamente se ilumine. Não é assim. Nós todos já temos todas as qualidades da iluminação desde o começo. O que precisamos é reconhecê-las, reconhecer aquilo que já temos.

Então, ver as qualidades dos professores nos ajuda porque elas refletem as nossas próprias qualidades iluminadas. E, aqui, ver essas qualidades nos professores e gerar devoção não significa que ficamos sob o controle deles, que nos tornamos sujeitos a eles ou perdemos nossos direitos. Nada disso. Ter devoção é treinar a nossa mente para ver as outras pessoas, para ver o mundo de maneira diferente.

No fim, não se trata do professor. Trata-se de nós mesmos, de como mudamos nossa perspectiva sobre o mundo exterior. Se entendermos isso, o significado da devoção não é se render ou se tornar sujeito a alguém, mas é, sobretudo, você encontrar suas qualidades dentro de si mesmo, se identificar. Espero que não tenha sido muito complicado.

RB: É compreensível, sim. A dificuldade é realmente gerar essa visão e sustentá-la, certo? O professor tem essas qualidades que nós estamos aspirando ter. Isto não está separado de nós e, como você disse, a maior dificuldade é, sobretudo, ver o mundo inteiro como sagrado. É compreensível, mas praticar e sustentar a prática é um pouco difícil.

Numa edição anterior da nossa revista, saiu um ensaio todo sobre professoras budistas mulheres e as histórias das primeiras mulheres budistas, como Mahapajapati, a madrasta do Buda. E nós temos uma professora do Zen [Monja Coen] que traduziu para o português alguns dos poemas do Therigatha, escritos pelas primeiras monjas. Assim, nós tivemos a chance de publicar alguns desses poemas na nossa revista, também falando sobre o encontro dessas mulheres com o Buda, com quem elas conversaram diretamente. Os poemas relatam como suas mentes mudaram e como elas decidiram, nesse ponto, tornar-se monjas e alcançar realizações.

Você cresceu no Butão e em Rumtek (Índia), e eu sei que nessas regiões há muitas histórias de praticantes que estão escondidos em montanhas fazendo práticas secretas, ou de professores que vêm e contam essas histórias. E gostaria de perguntar se você tem alguma história para nós sobre praticantes ou professoras mulheres, para que o nosso imaginário de mulheres iluminadas ou realizadas possa crescer.

AT: Quando eu penso nessa questão das mulheres, sempre vem à minha mente Arya Tara, a Buda iluminada feminina. Lendo sua história, descobrimos que ela tinha uma rebeldia, pois abandonou toda a sua cumplicidade à realeza e, posteriormente, atingiu a iluminação na forma de uma mulher, como ela aspirou.

Além disso, há muitas professoras iluminadas na tradição budista, na Índia e no Tibete. Se você ler sobre os grandes Mahasiddhas da Índia, verá nas suas histórias que muitos deles tiveram instrutoras mulheres ou consortes mulheres, que foram as pessoas chaves para que eles atingissem a realização.

Por exemplo, há um grande Mahasiddha na Índia – não estou lembrando o seu nome agora – que um dia estava meditando e pediu à sua consorte, sua companheira, que ela fizesse uma sopa de rabanete. Depois disso, ele retornou à meditação. E não acordou da meditação por doze anos. Ele apenas ficou sentado lá. Ela esperou por doze anos. E depois que ele acordou, a primeira coisa que perguntou foi onde estava a sopa. “Você pediu essa sopa há doze anos”, ela respondeu. “E, mesmo tendo meditado todo esse tempo, não é capaz de deixar para lá uma sopa de rabanete. Você ainda precisa meditar mais, ir para uma montanha”. Nesse ponto, ele atingiu a realização.

Há muitas, muitas histórias. Sobre a própria iluminação do Buda, por exemplo. Ele estava meditando há seis anos, praticando o caminho do asceta e se mantendo com pouquíssima comida. Ele já tinha virado apenas osso e pele, e ainda assim continuava praticando.

Então, uma mulher chamada Sujata trouxe pudim de arroz (arroz e leite cozinhados juntos) e ofereceu a ele, perguntando: “quem é você e o que está fazendo aqui?”. É uma longa história, mas vou resumir. O Buda respondeu: “eu sou um príncipe e estou em busca da iluminação, praticando aqui por todos esses anos sem me alimentar, apenas concentrando na prática.”

Sujata, entretanto, falou-lhe: “Digamos que você realmente se ilumine no final. Mas, se seu corpo não estiver lá para ver a iluminação, para sustentá-la, qual é o propósito de atingi-la?” E, nesse momento, o Buda subitamente percebeu que ele estava caindo no extremo do caminho ascético.

Qualquer que seja o extremo ao qual sucumbamos, o resultado não será bom. Não importa se é bom ou ruim. Naquela hora, o Buda percebeu que atingir a iluminação não se tratava de torturar o corpo. Portanto, ele aceitou a comida e, de acordo com a história, foi assim que ele recuperou a sua energia. O pudim de arroz foi uma injeção de energia, e por isso ele foi capaz de caminhar até Bodhgaya. Ficava em torno de dois quilômetros de onde ele estava meditando. Enfim, ele foi até lá e atingiu a iluminação.

RB: Dizem que se Sujata não tivesse dado esses ensinamentos…

AT: Sim, se o Buda não tivesse encontrado Sujata, não teria disparado esse gatilho na sua mente. Então, podemos ver as contribuições das mulheres até mesmo para o Buda e os grandes Mahasiddhas. Nesse sentido, sempre penso que não há uma dominação masculina. Trata-se de um trabalho em conjunto, na verdade. E, se você ler as histórias da linhagem Dzogchen, encontrará muitas mulheres ioguines realizadas.

RB: Eu já lhe falei sobre a situação política do Brasil, e talvez você tenha ouvido no Rio ou em Volta Redonda que, há mais ou menos dois anos, o Brasil se tornou um lugar cuja atmosfera política está carregada de raiva por causa das diferentes visões políticas. E, no último processo eleitoral, que culminou com a eleição de Jair Bolsonaro para presidente em outubro, muitas famílias e amigos romperam os laços, e ainda persistem brigando.

Como vemos nas notícias, há um discurso dominado pela raiva, por parte do governo, das pessoas, e também dos jornalistas. Enquanto praticantes, quando estamos numa atmosfera dominada pela raiva na fala e na mente, qual é a melhor prática que podemos fazer?

AT: Este é um bom objeto de prática!

RB: E todo mundo tem alguém em sua família que votou nesse discurso explicitamente perigoso, segundo o qual “comunistas deveriam ser expulsos do país”, e “pessoas negras não importam”, “pessoas pobres não importam”. Os salários estão diminuindo, os direitos de aposentadoria estão sendo atacados, e tudo isso de forma muito aberta.

Há dois anos, já se pensava nessas coisas, mas as pessoas tinham vergonha de falar sobre isso abertamente. E, agora, parece que se abriu a porta da mente selvagem brasileira. Este é o cenário atual do Brasil. Então, meu pedido é um conselho sobre como praticar e manter nossas mentes no presente e sem julgamento diante de parentes e amigos cujas ideias nos parecem perigosas.

AT: Penso que, desde o ponto de vista do praticante, a prática nos ensina a superar qualquer tipo de esperança e medo. Se você é capaz de superá-los, isto é considerado a fruição do caminho.

Nós sempre temos a esperança de colocar alguém acima de nós, para que possamos depender dele ou dela para fazer todo o trabalho, enquanto ficamos em paz. Mas, toda vez, o resultado é diferente, e a experiência também. Acho que esse tipo de situação não vai se resolver da noite para o dia ou em um período curto. Isso leva tempo.

Mas do ponto de vista do praticante, refletimos sobre os ensinamentos, sobre o Darma, sobre a impermanência. A situação não é permanente. Não é que ela não vá mudar nunca. Tudo isso só vai durar por um breve momento. Se pensamos assim, somos capazes de ver o conjunto todo. Reconhecendo a impermanência, somos capazes de reconhecer o frescor do momento, não estamos estagnados ou presos àquilo o tempo todo. Não sei como responder… Mas, enquanto praticantes, não deveríamos ser muito arrastados por essas coisas.

É claro que, se há qualquer coisa que possamos fazer para ajudar esses seres – nada muito grande, mas ainda que seja uma pessoa -, isto é sempre uma boa conquista. Mas o ponto principal de ser um praticante é, justamente, não ser carregado pela distração externa. Meditamos para não nos distrairmos e não seguirmos o mesmo padrão que temos seguido desde o tempo sem princípio.

Nessas situações, deveríamos refletir sobre essas distrações, sobre não sermos carregados por elas. Acho que esse momento do Brasil é ótimo para praticantes! É a hora de avaliarmos nossas mentes e o alcance da nossa prática. Acho que deve ter uma razão para isso tudo (risos).

RB: Você está gostando desse seu período no Brasil? Qual é a sua impressão do país?

AT: Está sendo excelente! Esta é a minha segunda vez aqui. As pessoas são muito receptivas. De certa forma, elas são naturalmente espiritualizadas, independentemente do que acreditam. Como ser humano, posso sentir o calor, a receptividade, a humildade. Nos Estados Unidos, as pessoas são um pouco tensas, na minha opinião. Na língua butanesa ou tibetana, nós dizemos claustrofóbicas. Quando venho para cá, as pessoas não têm medo de sorrir ou de conversar.

Acharya Lhakpa Tshering

Da esquerda para a direita: Lilian Tavares, Acharya Lhakpa Tshering e Lia Beltrão, ao final da entrevista, no CEBB Caminho do Meio.


De 23 a 25 de agosto de 2019, no CEBB Caminho do Meio (Viamão/RS), Dzogchen Ponlop Rinpoche dará ensinamentos sobre o texto Atingindo a Essência em Três Palavras (Tsik Sum Né Dek). Saiba mais e se inscreva aqui.

 


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2 Comentários

  1. Ormando :) disse:

    Viva a Sujata! ^.^

  2. Monike disse:

    Obrigada por todos estes ensinamentos!

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