Psicóloga especialista em trauma, Liana Netto fala sobre nossa capacidade de acompanhar o outro na dor da perspectiva do corpo
No texto de apresentação de Liana Netto em seu site, um corpo se revela nas palavras que contam experiências e histórias pessoais. Um corpo que, ainda pequeno, aprendeu a velejar e a sentir a força da natureza. Os pais de Liana eram velejadores e, aos três anos, ela já os acompanhava, criando intimidade com o desconforto, inventando-se como um “ser dançante”. Sua conexão com o próprio corpo a conduziu a um treinamento como bailarina profissional e a uma longa história com as artes marciais – ela foi uma praticante premiada de kung fu e professora certificada de tai chi chuan.
Psicóloga desde 1996, não à toa, Liana atua associando psicologia e fisiologia, no intuito de alargar os caminhos que levam aos mistérios do mundo interno. Para ela, amigar-se do desconforto e do imponderável é essencial para encontrar em si um lugar de quietude, resiliente e gentil. Um lugar de compaixão, no qual é possível fazer companhia ao outro nos momentos de dor.
Especialista do trauma, Liana explorou a relação entre estresse pós-traumático e impulsividade em sua tese de doutorado, defendida em 2015 pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente, desenvolve um diálogo entre a abordagem analítica e abordagens somáticas ao coordenar, supervisionar e ensinar na especialização lato sensu em Psicotraumatologia, promovida pelo Instituto Junguiano da Bahia, com a chancela da Escola Bahiana de Medicina. É cofundadora do projeto social Mãe Providência, que se dedica, desde 2011, a atender gratuitamente vítimas de trauma na população vulnerável de Salvador.
A entrevista com Liana acontece em um contexto no qual cada vez mais praticantes budistas, meditadores e professores do Darma têm se interessado pelo tema do trauma e entendido processos terapêuticos como, muitas vezes, complementares e potencializadores do caminho espiritual. Em 2021, o documentário Sabedoria do Trauma, que foca no trabalho do Dr. Gabor Maté e em sua visão de trauma e cura, esquentou esse tema em comunidades budistas. Por isso, é nossa alegria publicar esta conversa com Liana e mergulhar nos mistérios do nosso próprio corpo e seu potencial infinito de cura.
Desfrute de trechos da conversa:
Fisiologia da compaixão
Nós temos um conjunto de equipamentos que nos coloca em conexão com o outro. Nosso desenvolvimento contempla a ideia de que fomos feitos para coexistir no sistema nervoso uns dos outros. Entre esses equipamentos, estão os neurônios-espelho. Há dois tipos muito distintos de neurônios-espelho. Um deles é aquele que faz com que nos movamos em complementaridade à ação do outro. Por exemplo: eu vejo uma pessoa cair e, dentro de mim, represento a dor dessa experiência física e emocional e me sinto compelida a ir junto para ajudar essa pessoa a se levantar e a fazer coisas, o que é muito importante quando vivemos em bando. Como mamíferos, nós somos uma espécie de bando. Eu gosto de dizer que mamífero, pela definição, precisa de dois: aquele que mama e aquele que dá de mamar. Então, por definição, já somos animais de bando.
Mas temos um outro conjunto de neurônios-espelho que nos ajuda a representar a experiência do outro nos diferenciando dele. O primeiro conjunto, que faz uma representação da imagem, da experiência do outro em mim, me move para alguma conexão empática com o outro. Isso nós chamamos de empatia. Porém, quando sou capaz de me conectar com essa experiência e me manter com ela, diferenciada do outro, eu tenho a possibilidade – e isso eu diria que é a fisiologia da compaixão – de fazer companhia à experiência do outro sem querer retirá-lo dali.
“Somos muito pouco equipadas e treinadas para responder às dinâmicas do mundo interno. Nesse caso, a maior parte da nossa tarefa é mesmo aumentar a nossa capacidade de recepcionar aquilo que está se movendo dentro de nós, de aprender através disso, sem suprimir.”
Acompanhar o outro de forma ativa pode ser muito importante quando falamos de coisas objetivas: tem um vazamento na pia, então vou fazer alguma coisa para consertar esse vazamento e fazê-lo parar. Uma pessoa caiu e se machucou, daí vou fazer alguma coisa para levantá-la do chão e cuidar de sua dor física. Mas, quando se trata de uma dor emocional, quanto mais providências tomamos para retirar uma pessoa do contato com sua dor emocional, mais o oposto acontece. Tudo o que fazemos só aumenta mais essa dor, porque nosso mundo interno não responde da mesma forma que nosso mundo externo. A este último, na maioria das vezes, estamos equipadas e treinadas para responder. Entretanto, somos muito pouco equipadas e treinadas para responder às dinâmicas do mundo interno. Nesse caso, a maior parte da nossa tarefa é mesmo aumentar a nossa capacidade de recepcionar aquilo que está se movendo dentro de nós, de aprender através disso, sem suprimir.
Chronos e Kairós
Aquilo que está se movendo dentro de nós está conectado com um lugar de sabedoria profunda, em um tempo muito diferente desse tempo manufaturável com o qual estamos acostumadas. Eu brinco que esse tempo manufaturável é aquele de Chronos, do relógio, cronológico, que nos diz assim: “Tá bom de sentir dor, né? Vamos mudar de filme? Tá bom de ficar lamentando, vamos virar a página?”. Mas o tempo da nossa dor, o tempo das experiências internas, não é cronológico. É outro o senhor do tempo. Aqui entra Kairós, brincando com os deuses gregos. Chronos, de cronológico, e Kairós, que é o tempo da meditação, que nos ancora neste instante fugaz, presente, que faz com que esse estalo [estala os dedos] já seja uma coisa do passado. Essa qualidade de me ancorar na impermanência do tempo me permite aprender com o movimento, com a própria impermanência e com a coemergência dos fenômenos, que são singulares.
Também é Kairós aquele instante que nos conecta com o presente e o passado de uma maneira não linear. Quando eu sinto as experiências que podem ser mais dissociativas, vindas de um trauma, ou que podem ser de expansão de consciência, indo para além das fronteiras do ego, frequentemente eu percebo essa qualidade como se todas as eras existissem em mim, como se não houvesse fronteiras entre passado, presente e futuro, nem fronteiras de espaço. Essa é a qualidade de Kairós, da nossa experiência subjetiva, e é com ela que eu preciso entrar em contato para não estar na urgência de me mover em direção ao outro e retirá-lo da sua dor, nem na urgência de me mover nos meus processos internos para me retirar da minha dor. Dessa maneira, eu encontro um lugar mais pacífico e gentil para entender que a dor também é informação em processo e que eu vou aprender não “a despeito dela”, mas “através dela”, fazendo essa travessia. Nesse sentido, a compaixão surge de forma mais científica. Ela não é apenas o que me move com empatia para complementar o que aconteceu com o outro, mas sim aquilo que pode criar espaço dentro de mim para estar com o outro.
Sistema Ventral
Stephen Porges*, na neurociência, diz o seguinte: quando tenho neurônios-espelho que me movem para complementar, eu preciso de energia, de carga nervosa para realizar essa ação no mundo. Então, a empatia desperta a função do sistema simpático, que é o sistema especializado para lidar com as coisas do mundo externo: defesa ativa, resposta dinâmica de adaptação, movimento dos membros em direção às coisas para alcançar ou empurrar. O sistema simpático é o sistema de mobilização, e, se eu sempre estou acompanhando a dor de uma pessoa a partir desse sistema de mobilização, duas coisas acontecem como consequência.
Em primeiro lugar, a pessoa pode compreender, até mesmo no nível pré-consciente, que é melhor não compartilhar isso com o outro porque vai fazê-lo sofrer. Alguns de nós temos pessoas muito confiáveis por perto, mas nós dizemos assim: essa coisa dolorosa em mim, eu não vou compartilhar com essas pessoas, porque sei que vou afetá-las tanto, nesse lugar empático, que eu vou precisar sair do meu lugar de dor para cuidar da dor causada nelas. Porque a empatia é esse sentir dentro. Nela, eu preciso representar a dor do outro dentro de mim para que, a partir dessa afetação, dessa mistura, eu possa agir pelo outro. Nesse sentido, pode ser que eu escolha pausar minha ação em relação a você se acho que vou lhe provocar uma dor empática, e isso me traz um lugar de mais solidão.
Por outro lado, às vezes, quando alguém compartilha a dor com você, e você começa a fazer muitas coisas para tirá-la da dor, é como se algo nessa pessoa deixasse de confiar na capacidade que ela mesma tem de estar com essa dor. Acaba sendo, em alguns aspectos, uma forma de expropriar o outro do direito de atravessar sua dor.
Então, a fisiologia da compaixão, dentro da linguagem de Porges, é uma fisiologia que nos centra no sistema ventral – sistema exclusivamente mamífero, que nos faz coordenar emoções, expressões faciais, mas sem que estejamos acionando impulsos motores para fazer alguma coisa. No sistema ventral, eu posso estar em um lugar de aquietação, em um lugar de quietude. Esta é a fisiologia da compaixão: um lugar de confiança, no qual somos capazes de fazer companhia aos outros nas suas dores e, por meio disso, a experiência, no seu tempo (nesse tempo de Kairós), vai encontrando o caminho de resolução; normalmente, esse é um caminho muito mais amplo do que aquele relacionado à decisão tomada pelo ego. Porque o ego – com seu horizonte de reconhecimento do que são as relações de causa e efeito, com sua forma linear de leitura de mundo – consegue perceber muito pouco. Assim, o que ele vai decidir, na maioria das vezes, diz respeito a rapidamente se retirar do desconforto, em vez de encontrar um caminho de solução mais plena.
Resiliência
Para mim, a grande palavra de resolução do trauma é compaixão. Compaixão pelas nossas próprias dificuldades, por aqueles que lidaram conosco, principalmente nossos familiares, que, na maioria das vezes, estavam fazendo o melhor que podiam com o pouco que tinham. Compaixão pelo que nós fizemos, pela história que tivemos, pelo que nós fomos capazes de construir também com o pouco que tivemos. Esse lugar de compaixão nos faz parar de reagir. Reagir significa não responder adaptativamente a cada situação na forma específica em que ela se apresenta.
Um dos parâmetros de saúde que nós temos é a resiliência. O que é resiliência? Um conceito da física que se refere ao nível de plasticidade, de flexibilidade que um corpo possui. Quanto maior sua flexibilidade, sua plasticidade, mais esse corpo consegue recepcionar a pressão, envergar, ceder diante dela, mas, quando a pressão cessa, ele pode restaurar suas propriedades naturais. Nesse sentido, o plástico é mais resiliente do que o vidro, porque, se o vidro recebe pressão, ele quebra, enquanto o plástico amassa, mas pode depois, a depender do nível de resiliência, se restaurar. Então, o que é resiliência em um sentido mais amplo? Flexibilidade, plasticidade, maleabilidade.
Qual o conceito de resiliência na teoria polivagal**? Variabilidade cardíaca. Quanto maior a variabilidade cardíaca, mais seu coração, que é o regente interno, tem a capacidade de oferecer a carga específica necessária a cada situação que vem ao seu encontro. Se uma situação desafia você com nível um, você aciona o nível um. Se uma situação desafia você com nível dez, você vai para o dez. Se ela desafia com cinco e meio, você vai para cinco e meio. Assim, a variabilidade cardíaca é um sinônimo de saúde e de resiliência.
Intimidade com o desconforto
Reagir significa que eu estou respondendo a uma situação do presente olhando apenas para a minha base de dados [olha para trás]. Não estou dando resposta especificamente ao que está aqui, estou dando resposta ao que esteve ali [aponta para trás]. Mas, quando eu posso lidar com flexibilidade e variabilidade, sou capaz de oferecer uma resposta muito singular a cada situação única que se apresenta para mim. Nesse sentido, o trabalho com trauma para mim, na condição de especialista, é lidar o tempo inteiro com o imprevisto. Trauma é uma experiência muito mais cotidiana do que extraordinária na vida e é uma experiência absolutamente imprevisível e imponderável. Então, aprender a lidar com o trauma é aprender a lidar com o imponderável. A resposta de saída ao trauma é restaurar essa variabilidade, essa capacidade de estar presentificada, percebendo as nuances do que vem ao meu encontro, com a confiança de que a resposta vai emergir momento a momento, em vez de ficar fixada em uma resposta do passado.
“Se há um caminho para desenvolver a resiliência (e nesse sentido a meditação é genial), esse caminho é aprender a criar intimidade com o que muda continuamente, ou seja, com o imprevisível, gerando também intimidade com o desconforto – um lugar de confiança e comodidade no desconforto. Quando aprendemos a fazer isso, aprendemos a ter muito mais gentileza.”
O contrário do que seria a compaixão é uma resposta fixa, não presentificada, uma resposta que não consegue trazer um olhar central ao que a situação demanda, e por isso, muitas vezes, não encontra uma resolução mais ampla – o que acaba nos aprisionando na aversão de não ser capaz de tolerar o desconforto. Se há um caminho para desenvolver a resiliência (e nesse sentido a meditação é genial), esse caminho é aprender a criar intimidade com o que muda continuamente, ou seja, com o imprevisível, gerando também intimidade com o desconforto – um lugar de confiança e comodidade no desconforto. Quando aprendemos a fazer isso, aprendemos a ter muito mais gentileza. Para mim, esse é o caminho que vai realmente deter a violência e aumentar o senso de compaixão, porque nele eu não preciso estar urgida, impelida pelas respostas reflexas. As respostas que não são reflexivas, decididas, sentidas, processadas, são só uma forma de aversão, de se retirar do desconforto.
* Psiquiatra e neurocientista americano que propôs a teoria polivagal. Diretor do Kinsey Institute Traumatic Stress Research Consortium, que estuda o trauma na Indiana University Bloomington.
** https://www.stephenporges.com/
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6 Comentários
Excelente artigo!
Parabéns Lia Beltrão pela entrevista e também pela escolha da entrevistada.
Liana Netto é incrivelmente maravilhosa, exala conhecimento, empatia e compaixão.
Gratidão à todos que possibilitaram esta entrevista, publicação e divulgação.
Deise Barros
A leitura deste artigo é de grande riqueza dentro da teoria da Esperiencia Somática.
A compaixão concebida dentro da neuorociência, com o envolvimento do vago ventral nos assegura que essa teoria é profunda e ao mesmo tempo simples.
Finalmente, alguém que pensa profundamente!
Muito profundo. Uma reflexão de milhões. O trauma e suas consequências na vida cotidiana pode ir longe se não nos dermos conta e agirmos (e não apenas reagirmos) a eles com sabedoria para caminharmos na direção da compaixão tão preciosa, especialmente em tempos de tanta violência física e emocional em que vivemos. A plasticidade requerida para cada situação não é fácil em um mundo de respostas prontas, automatizadas, mas vale a pena o trajeto até ela. Gratidão! Muito esclarecedoras suas palavras, Liana.
Um caminho de autoconhecimento profundo.
Muito bom, obrigada.