Nietzsche, Buda e a compaixão

Se a crueldade ou a malícia são o oposto da compaixão, sentir-se triste por nós mesmos é seu inimigo mais próximo


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Revisão: Cristiane Schardosim Martins

Alfons C. Salellas Bosch, doutor em filosofia pela UFRGS, participou de alguns encontros e retiros com o Lama Padma Samten em Rio Grande, Pelotas, Viamão (RS) e Araras (RJ). Como acadêmico lhe chamou a atenção o mau uso que se faz da palavra compaixão na literatura científica. Neste texto percorremos com ele os pontos de vista de Nietzsche sobre a compaixão.


Quando o significado distorcido de uma palavra se torna parte do uso habitual de uma sociedade, é muito difícil desfazer o mal-entendido, o que pode levar muitos anos ou nunca ser alcançado. Se a palavra em questão é particularmente importante para nós, é bom dedicar algum tempo a ela. Estou pensando na palavra compaixão, que tantas vezes é confundida, e igualada grosseira e injustamente, com pena e piedade, quando não com uma atitude arrogante que olha de cima para baixo quase que poupando a vida dos outros.

Nietzsche diferenciava uma compaixão dos fracos e outra dos fortes, mas pelo fato de ele ter escrito muito menos sobre essa última, permaneceu a ideia de que em sua filosofia só existiria a primeira, que, segundo ele, não passaria de um sentimentalismo imaturo, um afeto doloroso e uma simples paixão útil para quem, desprovido de razão, precisa da emoção para ser empurrado a ajudar os outros. 

A verdade é ainda mais gritante, pois Nietzsche alega que o que normalmente definimos como ação compassiva é na verdade algo muito egocêntrico, egoísta e nada sincero em favor do outro, e tudo feito visando a libertação de nosso próprio sofrimento. Portanto, segundo esse filósofo, aparentemente a compaixão se reduziria a uma questão de mau gosto, falta de educação e hipocrisia de quem dirige sua vontade contra a vida. Em O Anticristo (1895) ele conclui que “a compaixão é a prática do niilismo”.

É sabido que a crítica de Nietzsche à compaixão dos fracos é dirigida contra a religião e a moral cristãs, mas, mesmo que seja por causa de uma questão cultural, é habitualmente ignorado o fato de que ele também dirigiu sua crítica, de forma primordial, contra o budismo. Assim sendo, já no prefácio da Genealogia da Moral (1887), ele escreveu: 

“No fundo interessava-me algo bem mais importante do que resolver hipóteses, minhas ou alheias, acerca da origem da moral […]. Tratava-se, em especial, do valor do ‘não-egoísmo’, dos instintos de compaixão, abnegação, sacrifício, que precisamente Schopenhauer havia dourado, divinizado, idealizado, por tão longo tempo que afinal eles lhe ficaram como ‘valores em si’, com base nos quais ele disse não à vida e a si mesmo. Mas, precisamente contra esses instintos manifestava-se em mim uma desconfiança cada vez mais radical, um ceticismo cada vez mais profundo? Precisamente nisso enxerguei o grande perigo para a humanidade, sua mais sublime sedução e tentação – a quê? ao nada? […]. Eu compreendi a moral da compaixão cada vez mais se alastrando, capturando e tornando doentes até mesmo os filósofos, como o mais inquietante sintoma dessa nossa inquietante cultura europeia; como o seu caminho sinuoso em direção a um novo budismo? A um budismo europeu? A um – niilismo?…”

É óbvio, no entanto, que Nietzsche, tendo abordado o budismo pelo prisma invertido de Schopenhauer, só poderia entendê-lo equivocadamente como uma força que nega a vida. Pelo contrário, sabemos que junto com a boa vontade, a alegria simpática e a equanimidade, o cultivo da compaixão infinita ou ilimitada é a grande virtude budista de uma mente saudável. A compaixão se liberta progressivamente dos laços sentimentais comuns e, em seu estágio mais elevado, fica livre da dor. Para alcançá-lo, é bom começar desenvolvendo compaixão pela família e pelos amigos para, gradativamente, expandir o foco aos desconhecidos, eventualmente atingindo aqueles que percebemos como antagonistas ou inimigos.

Se a crueldade ou a malícia são o oposto da compaixão, sentir-se triste por nós mesmos é seu inimigo mais próximo, o afeto com o qual pode ser facilmente confundido. Assim como a compaixão do mestre budista é desvinculada do afeto sentimental ou da tristeza, seu objetivo relacionado, a compreensão, é desprovido de pensamentos como “eu” ou “meu”. A implicação é que há uma conexão íntima entre a percepção libertadora da ausência de um eu fixo, que é a assinatura do pensamento budista, e a compaixão, que é a rubrica de sua ética. A compaixão como é entendida pelo budismo também tem caráter pedagógico, pois o sofrimento implícito nela, em seus estágios menos desenvolvidos, nos prepara para a felicidade da alegria simpática e solidária, que é a virtude de sentir-se feliz por tudo de bom que acontece aos outros. Assim, o cultivo da compaixão é característico dos espíritos superiores e saudáveis e nada tem a ver com a piedade, a tristeza ou a angústia que acompanha a compreensão vulgar deste conceito.

Como indicado, Nietzsche também escreveu sobre um tipo de compaixão diametralmente oposto àquela que tanto criticava, mas à qual, infelizmente, dedicou menos esforço. Lemos em seus Fragmentos póstumos que a bondade, o amor e a compaixão foram historicamente mal interpretados a partir de uma ascese de abnegação, mas que, ao contrário, a riqueza da personalidade, a plenitude e a generosidade são a base de grandes sacrifícios e a fonte de um grande amor. Por isso, o tipo nietzschiano forte não se entristece com o sofrimento que presencia, visto que o objeto de sua atenção não é ele mesmo, mas o outro. A saúde superior nietzschiana implica uma autoafirmação e autoconfiança instintivas, requisitos básicos para escapar do egocentrismo.

É possível que a ação compassiva do forte seja pensada e direcionada especialmente para aqueles de sua própria condição, mas há espaço em sua filosofia para acreditar que Nietzsche está mais preocupado com costumes e motivos e não tanto com fatos e que, portanto, o tipo saudável pode ser tão compreensivo, benevolente e compassivo quanto qualquer outra pessoa. Nesse sentido, é instrutivo olhar para o escritor francês François de La Rochefoucauld (1613-1680), um dos heróis de Nietzsche, que afirmou que sempre fez tudo o que estava ao seu alcance para ajudar os outros, mas nunca baseado em um sentimento de piedade. Isso torna mais fácil entender o grito de Nietzsche em “Além do bem e do mal” (1886): “compaixão contra compaixão!”

A compaixão que o budismo explica e defende e a saudável compaixão nietzschiana são muito semelhantes. A crítica do filósofo foi baseada em um mal-entendido. A compaixão budista não só se distingue nitidamente da compaixão dos fracos, mas também compartilha os quatro atributos essenciais da compaixão dos fortes. Expressa força e poder, confiança na capacidade de intervenção, no autocontrole e na autoestima afirmativa. A estrutura motivacional de suas ações é de genuína consideração pelo outro e pelo sofrimento do outro, não egocêntrica. Embora a psicologia budista não empregue as dicotomias nietzschianas de reativo/passivo versus ativo/criativo, ela tem características análogas às da compaixão pela força. De fato, o cultivo da compaixão preconizado pelo Buda, exige que a emoção negativa criticada por Nietzsche seja superada. O sofrimento que possa estar implícito nela é para ser superado e tomado como estímulo e preâmbulo da felicidade incluída na alegria simpática, uma vez que tanto compaixão como simpatia significam principalmente um sentir com o outro.

A atitude compassiva é o inverso do cinismo corrosivo que a sociedade normalizou. Arrogante, o cínico zomba dela e a faz passar por piedade e lástima. Entre o budismo e Nietzsche podem-se encontrar mais semelhanças e também muitas diferenças. Aqui, inspirados no livro de Antoine Panaïoti, “Nietzsche e a filosofia budista”, concentramos nossos esforços na tentativa de desfazer o mal-entendido sobre a compaixão para tentar oxigenar o uso que se costuma fazer dessa palavra, pois como tantos escreveram e muitos não cansaram de repetir, mudar a forma como falamos é essencial para transformar a realidade em que vivemos.

 

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1 Comentário

  1. 123 disse:

    Incrível a capacidade de adaptar qualquer argumento em direção a qualquer visão. Com sua narrativa sobre o “ubermen” esmagando os fracos, Nietsche é a base filosófica de praticamente todos os movimentos fascistas, além do egoísmo como um valor supremo.

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