Matthieu Ricard responde a primeira pergunta que todos fazem
Olhe honestamente para si mesmo. Onde você está na sua vida? Quais foram as suas prioridades até agora e o que você pretende fazer com o tempo que ainda lhe resta? Somos uma mistura de luz e sombra, de boas qualidades e defeitos. Somos realmente o melhor que podemos ser? Devemos permanecer como somos agora? Se não, o que podemos fazer para nos aprimorar? É importante fazermos essas perguntas, particularmente se tivermos chegado à conclusão de que a mudança é tanto desejável quanto possível.
No nosso mundo moderno, somos consumidos da manhã até a noite pela atividade incessante. Nós não temos muito tempo ou energia restantes para refletir sobre as causas básicas de nossa felicidade ou sofrimento. Nós imaginamos, mais ou menos conscientemente, que se realizarmos mais atividades, teremos experiências mais intensas e, assim, nossa sensação de insatisfação irá desaparecer. Porém, a verdade é que muitos de nós continuam a se sentir desapontados e frustrados com o nosso estilo de vida contemporâneo.
O objetivo da meditação é transformar a mente. Ela não precisa ser associada a nenhuma religião específica. Cada um de nós tem uma mente e todos nós podemos trabalhar com ela.
A verdadeira questão não é se a mudança é desejável, mas se é possível mudar. Algumas pessoas podem pensar que não podem mudar porque suas emoções aflitivas estão tão intimamente associadas a suas mentes que é impossível livrar-se delas sem destruir uma parte de si mesmas.
É verdade que, em geral, a personalidade de uma pessoa não muda muito ao longo de sua vida. Se pudéssemos estudar o mesmo grupo de pessoas em intervalos de alguns anos, nós raramente veríamos que pessoas raivosas se tornaram pacientes, que pessoas desequilibradas encontraram a paz interior ou que pessoas pretensiosas aprenderam a ser humildes. Mas por mais raras que essas mudanças possam ser, algumas pessoas mudam, o que demonstra que a mudança é possível. A questão é que os nossos traços de personalidade negativos tendem a persistir se não fizermos absolutamente nada para mudar o status quo. Nenhuma mudança ocorre se nós simplesmente deixarmos que nossas tendências habituais e padrões automáticos de pensamento se perpetuem ou até mesmo se reforcem, pensamento após pensamento, dia após dia, ano após ano. Mas essas tendências e padrões podem ser questionados.
Agressividade, ganância, inveja e outros venenos mentais são inquestionavelmente parte de nós, mas seriam eles uma parte intrínseca e inalienável? Não necessariamente. Por exemplo, um copo d’água pode conter cianeto, que poderia nos matar instantaneamente. Mas a mesma água poderia, ao invés disso, ser misturada com um medicamento restaurador. Em ambos os casos, H₂O, a fórmula química da própria água, permanece inalterada; em si mesma, ela nunca foi nem venenosa, nem medicinal. Os diferentes estados da água são temporários e dependem de circunstâncias mutáveis. De forma similar, nossas emoções, humores, e traços de personalidade negativos são apenas elementos temporários e circunstanciais da nossa natureza.
Essa qualidade temporária e circunstancial fica clara para nós quando percebemos que a qualidade primária da consciência é de simplesmente conhecer. Como a água no exemplo acima, o saber, ou a consciência, não é nem bom nem mau em si mesmo. Se olharmos por detrás do fluxo turbulento de pensamentos e emoções transitórios que atravessam nossas mentes dia e noite, esse aspecto fundamental da consciência está sempre ali. A consciência faz com que seja possível perceber fenômenos de todos os tipos. O budismo descreve a qualidade cognitiva básica da mente como luminosa porque ela ilumina tanto o mundo externo, através das percepções, quanto o mundo interno de sensações, emoções, deliberações, memórias, esperanças e medos.
Embora essa faculdade cognitiva seja subjacente a todos os eventos mentais, ela mesma não é afetada por nenhum deles. Um raio de luz pode brilhar sobre uma face desfigurada pelo ódio ou sobre uma face sorridente; ele pode brilhar sobre uma joia ou sobre uma pilha de lixo; mas a luz, em si mesma, não é nem maldosa, nem amável, nem suja, nem limpa. Compreender que a natureza essencial da consciência é neutra nos mostra que é possível modificar o nosso universo mental. Podemos transformar o conteúdo de nossos pensamentos e experiências. O pano de fundo neutro e luminoso da nossa consciência nos fornece o espaço de que precisamos para observar os eventos mentais, ao invés de estar à sua mercê. Nós também teremos, então, o espaço de que precisamos para criar as condições necessárias para transformar esses eventos mentais.
Nós não temos escolha em relação àquilo que já somos, mas podemos desejar mudar a nós mesmos. Tal aspiração dá à mente um senso de direção. Mas apenas querer não basta. Temos que encontrar uma forma de colocar esse desejo em ação.
Nós não vemos nada de estranho em passar anos aprendendo a andar, a ler e escrever, ou adquirindo habilidades profissionais. Passamos horas fazendo exercícios físicos para manter nossos corpos em forma. Às vezes, nós gastamos uma energia tremenda pedalando em uma bicicleta parada. Dar continuidade a tais tarefas requer um mínimo de interesse e entusiasmo. Esse interesse vem da crença de que esses esforços vão nos beneficiar a longo prazo.
O trabalho com a mente segue a mesma lógica. Como ela poderia estar sujeita a mudanças sem o menor esforço, apenas pelo desejo? Isso não faz mais sentido do que ter a expectativa de aprender a tocar uma sonata de Mozart apenas brincando ocasionalmente com as teclas do piano.
Fazemos um grande esforço para aprimorar as condições externas de nossas vidas, mas, no fim, é sempre a mente que cria a nossa experiência do mundo e que traduz essa experiência em bem-estar ou sofrimento.
Se transformarmos nosso modo de perceber as coisas, nós transformamos a qualidade de nossas vidas. É esse tipo de transformação que é provocado pela forma de treinamento mental conhecida como meditação.
A meditação é uma prática que torna possível cultivar e desenvolver certas qualidades humanas positivas básicas, da mesma forma que outras formas de treinamento fazem com que seja possível tocar um instrumento musical ou adquirir qualquer outra habilidade.
Entre as diversas palavras asiáticas traduzidas como “meditação” estão bhavana, do sânscrito, que significa “familiarização”, e seu equivalente tibetano, gom, que significa “familiarizar-se”. A meditação nos ajuda a nos familiarizarmos com um modo claro e preciso de ver as coisas e a cultivar qualidades saudáveis que permanecem dormentes em nós se não fizermos um esforço para trazê-las à tona.
Então vamos começar nos perguntando: “O que eu realmente quero da vida? Estou satisfeito em apenas continuar improvisando um dia após o outro? Eu vou ignorar a sensação vaga de insatisfação que sempre sinto lá no fundo enquanto, ao mesmo tempo, anseio por bem-estar e satisfação?” Nós nos acostumamos a pensar que nossos infortúnios são inevitáveis e que temos que lidar com os contratempos que eles nos trouxeram ao longo de nossas vidas. Tomamos nossos aspectos disfuncionais como dados, e não nos damos conta de que é possível romper o ciclo vicioso de padrões de comportamento exaustivos.
Do ponto de vista budista, os textos tradicionais dizem que todos os seres têm o potencial de atingir a iluminação, tão certamente quanto toda semente de gergelim contém óleo. A despeito disso, utilizando outra comparação tradicional, nós perambulamos num estado de confusão, como um mendigo que é simultaneamente rico e pobre, porque não sabe que possui um tesouro enterrado sob o chão de sua barraca. O objetivo do caminho budista é tomar posse dessa riqueza ignorada, que pode imbuir nossas vidas do mais profundo significado.
O objeto da meditação é a mente. Por ora, ela está simultaneamente confusa, agitada, rebelde e sujeita a incontáveis padrões condicionados e automáticos. O objetivo da meditação não é desligar a mente ou anestesiá-la, mas torná-la livre, lúcida e equilibrada.
De acordo com o budismo, a mente não é uma entidade, mas, na verdade, um fluxo dinâmico de experiências, uma sucessão de momentos de consciência. Essas experiências são frequentemente marcadas pela confusão e pelo sofrimento, mas nós também podemos vivenciá-las em um estado espaçoso de lucidez e liberdade interna.
Todos sabemos bem que, como o mestre tibetano Jigme Khyentse Rinpoche nos lembra, “nós não precisamos treinar nossas mentes para aprimorar nossa habilidade de sentir irritação ou inveja. Nós não precisamos de um acelerador de raiva ou de um amplificador de orgulho.” Em contraste, treinar a mente é crucial se quisermos refinar e aguçar nossa atenção; desenvolver o equilíbrio emocional, a paz interior e a sabedoria; e cultivar a dedicação ao bem-estar dos outros. Possuímos, em nós, o potencial de desenvolver essas qualidades, mas elas não irão se desenvolver por conta própria ou apenas porque queremos que isso aconteça. Elas exigem treinamento. E, como eu já disse, todo treinamento requer perseverança e entusiasmo. Nós não vamos aprender a esquiar praticando um ou dois minutos por mês.
Galileu descobriu os anéis de Saturno após desenvolver um telescópio suficientemente claro e poderoso e colocá-lo sobre um suporte estável. Sua descoberta não teria sido possível se seu instrumento fosse inadequado ou se ele o manuseasse com mãos trêmulas. De forma similar, se quisermos observar os mecanismos mais sutis do nosso funcionamento mental e causar um efeito sobre eles, nós devemos, absolutamente, refinar nossos poderes de introspecção. Para fazer isso, nossa atenção deve ser altamente aguçada, para que ela se torne estável e lúcida. Nós seremos, então, capazes de observar como a mente opera e percebe o mundo, e conseguiremos compreender como os pensamentos se multiplicam por associação. Por fim, poderemos continuar a refinar a percepção da mente até o ponto em que seremos capazes de ver o estado mais fundamental da nossa consciência, um estado perfeitamente lúcido e desperto que está sempre presente, mesmo na ausência da cadeia de pensamentos comum.
Às vezes, os praticantes de meditação são acusados de estarem muito concentrados em si mesmos, de se deleitar na introspecção egocêntrica e de deixarem de se preocupar com os outros. Mas não podemos considerar como egoísta um processo cujo objetivo é cortar pela raiz a obsessão com o eu e cultivar o altruísmo. Isso seria como culpar um aspirante a médico por passar anos estudando medicina antes de começar a praticar.
Há um número considerável de clichês sobre a meditação em circulação. Permitam-me apontar de saída que a meditação não é uma tentativa de criar uma mente vazia pelo bloqueio de pensamentos — o que é impossível, de todo modo. Também não se trata de engajar a mente numa cogitação infinita, numa tentativa de analisar o passado ou antecipar o futuro. Nem é, tampouco, um simples processo de relaxamento no qual os conflitos internos são temporariamente suspensos em um estado vago e amorfo de consciência. Não há muito sentido em repousar em um estado de embotamento interno. Há, de fato, um componente de relaxamento na meditação, mas ele está ligado ao alívio proveniente do abandono de esperanças e medos, dos apegos e caprichos do ego que alimentam incessantemente os nossos conflitos internos.
A forma como lidamos com os pensamentos na meditação não é bloqueá-los ou alimentá-los indefinidamente, mas deixar que eles surjam e se dissolvam por conta própria no campo da atenção. Dessa forma, eles não dominam nossas mentes. Além disso, a meditação consiste no cultivo de uma forma de existir que não está sujeita aos padrões habituais de pensamento. Ela frequentemente se inicia com a análise, e então segue para a contemplação e a transformação interna. Ser livre é ser senhor de si mesmo. Não se trata de fazer qualquer coisa que surja em nossas cabeças, mas de nos libertarmos dos grilhões e aflições que dominam e obscurecem nossas mentes. Trata-se de assumir o controle sobre nossas vidas, ao invés de deixá-las à mercê das tendências criadas pelo hábito e pela confusão mental. Ao invés de soltar o timão e simplesmente deixar que o barco siga à deriva em qualquer direção que o vento sopre, liberdade significa traçar um caminho para um destino escolhido — o destino que sabemos ser o melhor para nós mesmos e para os outros.
A meditação não é, como algumas pessoas pensam, um meio de escapar da realidade. Pelo contrário, seu objetivo é fazer com que vejamos a realidade como ela é, em meio à nossa experiência, para desmascarar as causas profundas do nosso sofrimento e dissipar a confusão mental. Desenvolvemos um tipo de compreensão que vem de uma visão mais clara da realidade. Para atingir essa compreensão, nós meditamos, por exemplo, sobre a interdependência de todos os fenômenos, sobre sua natureza transitória, e sobre a inexistência do ego percebido como uma entidade sólida e independente.
As meditações sobre esses temas são baseadas na experiência de gerações de meditadores que devotaram suas vidas a observar os padrões automáticos e mecânicos do pensamento e a natureza da consciência. Eles ensinaram, então, métodos empíricos para desenvolver a lucidez mental, a atenção, a liberdade interna, o amor altruísta e a compaixão. No entanto, não podemos contar meramente com suas palavras para nos libertarmos do sofrimento. Devemos descobrir por conta própria o valor dos métodos que essas pessoas sábias ensinaram, e confirmar por conta própria as conclusões a que elas chegaram. Isso não é puramente um processo intelectual. É necessário um longo estudo de nossa própria experiência para redescobrir suas respostas e integrá-las em nós num nível profundo. Esse processo requer determinação, entusiasmo e perseverança. Ele requer o que Shantideva chama de “alegria nos caminhos virtuosos”.
Assim, começamos pela observação e compreensão de como os pensamentos se multiplicam por associação entre si e criam todo um mundo de emoções, de alegria e sofrimento. Então, penetramos a tela dos pensamentos e vislumbramos o componente fundamental da consciência: a faculdade cognitiva primordial da qual surgem todos os pensamentos.
Para realizar essa tarefa, devemos começar pela tranquilização da nossa mente turbulenta. Nossa mente se comporta como um macaco capturado que, em sua agitação, se enrola cada vez mais em suas amarras.
Do turbilhão dos nossos pensamentos, surgem primeiramente as emoções, e então os humores e comportamentos, e, por fim, os hábitos e traços de personalidade. Aquilo que surge espontaneamente não produz necessariamente bons resultados, assim como arremessar sementes ao vento não produz boas colheitas. Assim, devemos nos comportar como bons fazendeiros que preparam seus campos antes de plantar suas sementes. Para nós, isso significa que a tarefa mais importante é obter a liberdade por meio do domínio de nossas mentes.
Se considerarmos que o benefício em potencial da meditação é dar-nos uma nova experiência do mundo a cada momento de nossas vidas, então não parece excessivo passar ao menos vinte minutos por dia conhecendo melhor nossas mentes e treinando-as para esse tipo de abertura. A fruição da meditação poderia ser descrita como um modo aperfeiçoado de existir, ou como felicidade genuína. Essa felicidade verdadeira e duradoura é uma sensação profunda de ter compreendido o potencial mais elevado de sabedoria e realização que temos em nós. Trabalhar para atingir esse tipo de realização é uma aventura em que vale a pena embarcar.
Adaptado de Why Meditate? Working with Thoughts and Emotions [Por que Meditar? Trabalhando com Pensamentos e Emoções], de Matthieu Ricard, com a permissão da editora Hay House.
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