Os caminhos para cuidar com lucidez das relações e dos seres

Como se abrir e também acolher os outros para tratar os traumas, sob o olhar do Lama Gelek, psicoterapeuta budista


Por
Revisão: João Bertolini
Edição: Carol Franchi
Transcrição: Ieda Estergilda e Rosana Folz

Lama Gelek Dirk de Aachen estuda budismo desde 1994. Passou pela Alemanha, Índia, Nepal e França, onde realizou por duas vezes o clássico retiro de três anos. Formado em terapia de trauma — Experiência Somática e na Psicologia Somática Integral —, também ensina a psicoterapia budista. Atualmente residindo no Brasil, compartilhou um pouco de sua experiência com a psicoterapia e o Darma, em um dos encontros da 23ª edição do 108 Horas de Paz 2022-2023, no contexto do cuidado emocional. 


Quero compartilhar alguns elementos que acho importantes. O encontro que tive com meu mestre me marcou, a relação me marca até hoje. Quando o encontrei, estava de joelhos na frente dele, que estava abençoando meu mala. Tentei olhá-lo em segredo, achando que não ia me ver e eu poderia vê-lo como ele é. Mas quando tentei olhá-lo, ele me olhou. Vi isso e foi muito difícil para meu coração, ele não cabia em si mesmo porque havia muita pressão, uma autocobrança. Achava-me muito longe do mestre, muito diferente, muito tenso, inadequado. 

Meu mestre me olhou profundamente e parece que viu tudo, todas as partes de mim, tanto as fraquezas quanto as qualidades — e me pareceu que ele não tinha nenhum problema de amar o que viu —, mas não consegui me amar nem um pouco. 

Quando me olhei, hoje mesmo, pensei “a minha imagem é tão grande”. Olhando-a, vejo que ainda tenho falhas na comunicação comigo; minha relação comigo continua limitada, mas meu mestre não teve essa limitação, me olhava completamente aberto. Isso me marcou, virou a inspiração e o motor para minha prática espiritual. 

Logo em seguida entrei em retiro, por quase sete anos, quando houve muito tempo para ter dúvidas, ficar deprimido, lutar contra mim mesmo. O que me fez sobreviver, acordar todos os dias e fazer as práticas foi o que ele me passou: a possibilidade que tenho de me abraçar, de me aceitar e também a certeza, que às vezes ainda parece longe, de que um dia vou também poder olhar os outros seres dessa maneira: sem preconceito, sem hesitação, completamente aberto. Ele me transmitiu que “isso aí também é a sua natureza”. 

Obviamente ele estava nessa abertura, sem nenhuma hesitação, generoso, e me passou essa inspiração: “Você também vai olhar assim um dia, continuando nesse processo”. 

Ele faleceu. Em 2005, vim para o Brasil ensinar. Fiquei muito tempo só, muito tempo para me reinventar, muito tempo para me relacionar comigo, com os ensinamentos, para ver como me expressava com os outros, e retomei o contato com a psicoterapia, que já estudava antes. Voltei a estudar o trauma, porque vi que ainda tinha processos de dinâmicas traumáticas não integradas em mim. Aproveitei muito dessa nova/velha perspectiva de ver o processo espiritual que abriu muita coisa, mas outras ainda se mantinham fechadas. Ver as coisas sob essa perspectiva me fez conseguir desbloquear este processo. 

Depois me juntei a uma equipe que fundou uma psicoterapia baseada em princípios budistas. Hoje estou me formando psicoterapeuta dentro desses princípios. 

Meu mestre desencarnou há poucos anos e agora é um mestre francês, tem 22 anos, e me parece excepcional o que está fazendo. Novamente ele me tocou num lugar de surpresas e me abriu para mais uma coisa. Teve esse reencontro, não sabia quanto tempo poderia falar com ele, se iria me responder, se iriam ser alguns minutos, uma hora, não sabia exatamente. Nosso encontro acabou durando três horas. 

O que me tocou, o que vi nele, jovem, foi a mesma curiosidade de se relacionar comigo, ele quis saber tudo e não consegui perguntar nada porque ele estava me perguntando. Ele quis saber sobre os meus bloqueios, a experiência do retiro, quis saber exatamente porque alguns processos foram bloqueados, o que fiz para desbloqueá-los e como foi exatamente este processo, ou sobre como estou me sentindo hoje em relação ao mesmo assunto. Ele ficou durante três horas completamente aberto, curioso, querendo saber os mínimos detalhes. Isso me tocou profundamente como ser humano, na relação comigo mesmo, vendo as dúvidas, todo o processo que eu tinha que realizar sozinho e entendendo a sua relevância para este processo espiritual. 

Voltando a falar um pouco sobre o que me motiva no Darma, a fonte desse processo de abertura chamado amadurecimento, são as qualidades inatas que a gente chama de natureza búdica, ou qualidades liberadoras, as paramitas, como amor e compaixão. Se olharmos bem, mesmo para um bebê ou para uma pessoa, mesmo não querendo passar por um processo espiritual, o tempo todo, o motor, o que vai incentivando uma mudança, um amadurecimento, é o contato, a relação e a generosidade. 

Quando a mãe entra em contato com as necessidades do filho, certamente o amor, o cuidado, a dedicação da mãe deixa o filho com essa confiança de se abrir para o processo da vida. Igualmente, quando começamos o caminho espiritual para transformar nossa vida, essa vida no samsara, qual é o motor? É a relação, nossa confiança de entrar em contato conosco e ver que a nossa essência vai se abrindo até a realização, quando brota completamente o estado búdico. 

Vejo que essa relação mudou bastante como me vejo hoje. Mudou a orientação sobre como ensinar o Darma, como abordar momentos de bloqueio, que pode ser um bloqueio meu, como quando não quero acordar, não quero fazer o que deveria, mas também quando os alunos não querem fazer o que falo, ou quando um aluno fala: “não, mas para mim não funciona, faço e não funciona”. Pode ser também uma briga de vizinhos ou entre um casal, vendo o que acontece no momento em que trava, o que acontece quando a relação não traz as qualidades necessárias que o processo precisa nesse momento para florescer, amadurecer. Como uma flor, quando falta sol, faltam ingredientes e ela não chega a se abrir no seu potencial. 

Então, hoje estou muito mais interessado nos bloqueios, no processo do grupo ou comigo mesmo, e vendo o que acontece quando vou analisando, quando paro um pouco esse processo. A pandemia foi muito interessante nesse aspecto porque muitas pessoas, mesmo praticantes antigos do Darma, travaram as relações, a sanga, tudo travou. Foi um momento muito interessante ver o que faltava, quais as qualidades necessárias para carregar esse processo, deixar ele vir à tona para trazer a lucidez que precisava para destravar.

Hoje, vendo o que travou, sempre podemos ver que há um conflito interno. Sempre tem um sentimento de não gostar, de não ser adequado, de que falta amor, de que falta merecimento e que, de uma certa maneira, forçamos. Esses sentimentos entram em contradição e consomem tanta energia que o resto trava: a expressão, a comunicação, o fluxo interno, e é o mesmo na relação com o outro ser, com um vizinho, um casal, com os filhos. A cobrança é tão grande que você a reprime e consome a energia. Então, valorizar os sentimentos, criar o que a gente chama na terapia essencial “um campo curador” para tocar exatamente na qualidade que precisa, para ir entrando a lucidez necessária para esse processo destravar. 

A força que a gente precisa para encarar o que trava é o amor. A mãe percebe esse ser pequeno que travou, ele precisa comer, se sujou, tem cólicas. Ela reconhece isso como uma necessidade que precisará atender. E atende com amor, fala suavemente, olho no olho, toca o corpo, abraça, segura o filho. No momento dele, as suas necessidades estão sendo atendidas e ele destrava, ela o alimenta, e um bebê incapaz vira um homem, uma mulher, capaz de trazer qualidades para o mundo. 

Então somos um pouco — agora volto à imagem, eu de joelhos diante do meu mestre — um bebê espiritual, um filho incapaz de se abraçar, de destravar esse processo espiritual. E o olhar que ele me ofereceu foi exatamente o elemento que precisei para começar a ter coragem de destravar os meus processos.

Ver agora esse momento, respondendo às demandas da pandemia, na verdade, é nada mais do que encarar o que a gente já sabia, que a vida é incerta, pode acabar de repente. A nossa maneira de abusar do planeta, de ignorar as necessidades dos outros — disso teremos mais até o fim da nossa vida. Nosso carma com certeza trará mais desafios.

Ao responder à pandemia e também aos conflitos políticos, podemos ver quais são as qualidades que precisamos, como seres humanos e também espiritualmente. Então, precisamos moldar, adaptar nossa maneira de ser sanga. Sanga se traduz para o tibetano como gedun, que é trazer virtude, juntar virtude. Nossa tarefa agora, seja online, presencial em Alto Paraíso, no Caminho do Meio, ou aqui em Brasília, é trazer, juntar esses elementos para destravar e oferecer esse tipo de comunicação para mais pessoas, para nossa cultura, para inspirar de dentro e não pela força. O budismo tem que ser assim.

Lama Samten falou sobre as estruturas que se perpetuam e, na verdade, afogam o elemento espiritual que quer se abrir. Não alimentam, mas afogam. 

Precisamos adaptar sangas, núcleos pequenos, dinâmicos, que a todo momento olham para aquilo que está travando e, juntos, alimentar e cultivar as qualidades que destravam.

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