Jornalista e ambientalista fala sobre os percalços da fé e da democracia atuais, além do papel das redes “sociais” no Brasil.
Na 24ª edição do evento “108 Horas de Paz”, realizado em 30/12/2023 pelo Centro de Estudos Budistas Bodisatva, em parceria com o Instituto Caminho do Meio em Viamão-RS, André Trigueiro, professor universitário, ambientalista, escritor, palestrante, colunista e figura notável por seu trabalho na Globo News como jornalista, trouxe sua perspicaz reflexão durante a mesa-redonda “Espiritualidade, Sociedade e Cultura de Paz”. Mesmo participando remotamente, sua presença foi marcante ao lado de outras autoridades, religiosas e não religiosas, e especialistas, enriquecendo o evento com sua contribuição significativa.
A democracia corre sérios riscos no Brasil e no mundo. Em nosso país, nos últimos anos, houve claramente uma tentativa de miná-la, inclusive com uso de ferramentas democráticas para isso, por parte do poder central. E me parece que por aqui não damos a devida atenção para o crescimento de grupos criminosos comandados por milicianos.
Há “projetos de poder” infiltrando-se em diferentes esferas políticas, em níveis municipal, estadual e federal; infiltrando-se nos três poderes da República, com seus asseclas e representantes, e deformando os princípios mais éticos e justos da nossa democracia.
É curioso como esses políticos mafiosos, milicianos, escoram-se na fé, valendo-se de princípios e valores religiosos para ter um bom posicionamento perante o público-alvo e aqueles que se ressentem de governantes anteriores ou de pessoas que ocupem cargos de poder, ainda que as práticas desses políticos sigam pública ou clandestinamente por outros caminhos menos virtuosos.
Bancando a fé
Nós temos, no Brasil, um crescimento em progressão geométrica (no Congresso Nacional, no Senado e na Câmara dos Deputados) da chamada Bancada Religiosa. Quando fazemos um scanner sobre tal bancada, vamos perceber que existe ali, se não a predominância e a prevalência, um número impressionante de representantes de denominações cristãs, notadamente neopentecostais — algumas dessas denominações com claro “projeto de poder”.
Esse referido projeto de poder ambiciona “transformar” o Brasil, a fim de que voltemos a ter uma religião oficial, a cristã, fazendo com que o nosso país deixe de ser laico. No entanto, não seria o Cristianismo de qualquer cristão. Seria o “Cristianismo deles”. Digo isso com todo respeito, afinal, sou espírita.
À moda da casa
E quando certas correntes de fé se escoram no discurso simplista e linear daqueles que, usando as ferramentas democráticas, sabotam a própria democracia?
Essa é uma visão teológica estreita — ou uma perigosa interpretação das Escrituras Sagradas —, que remete a supostas justificativas para não legitimar o espaço e o papel social que as mulheres precisam ter na sociedade moderna, por exemplo, além de uma discriminação explícita contra a comunidade LGBTQIAPN+. Para essas tais pessoas, outra orientação sexual não é bem-vinda.
Igualmente, por parte delas, há uma enorme dificuldade em tolerar outras crenças. São notórias a perseguição e a violência impostas contra as religiões afro-brasileiras, sobretudo, a de seguidores do Candomblé e da Umbanda, uma religião nossa, do Brasil.
O que infelizmente vemos? Violência, intimidação, agressões físicas, depredação de templos e subtração dos itens religiosos de quem segue essas tradições. Isso está amplamente diagnosticado, inclusive por fontes do Ministério Público do Rio de Janeiro, com vídeos de lideranças religiosas, literalmente, pregando a perseguição e a violência em nome de Jesus. Uma deturpação absurda e desrespeitosa dos princípios do Evangelho.
É o “Cristianismo à moda da casa” usando os recursos que as Escrituras oferecem a essas pessoas para que seja aplicada uma visão de mundo estreita, não entendendo a pluralidade e os direitos de cada um, como diz a Constituição Brasileira, sob o jugo de um “projeto de poder” com esse escopo.
Tudo isso ameaça à democracia stricto sensu. E, de cara, estamos falando de um problema no qual fé e democracia não se coadunam.
Redes sociais?
Uma outra questão importante para se destacar, aparentemente afastada desse assunto, é que não há nada mais antissocial do que as redes sociais. Não existem “redes sociais”. Existem redes que nasceram com o propósito de aproximar grupos de interesse. No entanto, são claras e evidentes as pautas, a partir do desejo de lucro e interesses velados, para promover mais engajamento, mais permanência na “minha” rede social, porque isso atrai anunciantes com base em um algoritmo que estimulará a beligerância e o antagonismo.
Ou seja, os discursos e mensagens de ódio, as brigas virtuais e as manchetes sensacionalistas e alarmistas que geram bastante engajamento, atraem curtidas e, desse modo, publicidade. Assim, caímos na bolha de quem manipula o algoritmo sem a devida moderação. E é bom frisar: tudo isso sem que o Estado de uma forma geral (União Europeia, Estados Unidos, Brasil etc.) ensaie mudanças e regras que possam tolher e disciplinar o compartilhamento de conteúdo nessas plataformas.
É preciso atentar para o fato de que, agora, com tais “redes antissociais”, nós temos um agravante no coeficiente de violência que marca a trajetória da Humanidade na Terra. Sim, há inúmeras atribuições positivas a partir do uso amplamente disseminado dos smartphones, da internet e de certos aplicativos. Precisamos reconhecer: a tecnologia digital nos aproxima e propaga muita coisa interessante, necessária e urgente.
No entanto, estamos culturalmente imersos no universo digital sem a devida moderação e regulação, sobretudo com o problema da crescente dispersão, distração e alienação: um imenso desperdício de tempo e energia, a partir dos “mil nadas” que consomem as navegações aleatórias, sem rumo certo na internet.
Pandemia de distração
O relatório de 2023 do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) cita explicitamente uma pandemia de distração dos jovens em idade escolar, compartilhando dados e mostrando que o desempenho de estudantes de boa parte do mundo vem se tornando menor, justamente devido a essa dispersão toda.
Um planeta repleto de “zumbis” — a expressão é forte — não favorece a democracia. Favorece as raposas do galinheiro que se valem exatamente desse estado anestesiado, desse modo morno e mórbido de não participação social e de delegação de responsabilidades ao “pai”, ao “santo”, ao “líder” que haverá de tomar as decisões que nós não estamos a fim de tomar, porque, em tese, “temos mais o que fazer”. Assim, delegamos nossas lutas a terceiros.
Então, veja: democracia é atitude. É tomar as rédeas de volta. Democracia é cidadania ativa. Precisamos ter informação para nos posicionarmos no tabuleiro. Se não abrirmos os olhos agora, onde isso vai dar? Precisamos, inclusive, olhar para o aspecto ambiental, para o mundo que nos rodeia. Mais do que nunca.
O clima esquentou
Em 2023, a partir do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), organização meteorológica mundial, tivemos evidências de que estamos vivenciando e testemunhando uma profusão de eventos climáticos extremos.
Estive no Rio Grande do Sul no fim do ano, para cobrirmos a tragédia que se abateu por lá com uma chuva colossal, uma elevação sem precedentes em vários pontos da bacia hidrográfica do rio Taquari-Antas, onde vivem aproximadamente 1,4 milhão de pessoas. Uma tragédia inominável, mas não surpreendente.
Afinal, como é que um planeta como o nosso, que construiu um estoque de conhecimento e tecnologia — capaz de diagnosticar coisas notáveis com uma enorme probabilidade de acerto —, está agora testemunhando o aquecimento global agravado pela queima progressiva de petróleo, carvão e gás, combustíveis fósseis de maneira geral, e não fazemos nada?
O Acordo de Paris, celebrado há cerca de 10 anos, foi assertivo dizendo: “Precisamos promover aceleradamente a transição energética”. Já há quase uma década. Mesmo o Brasil de hoje, com um líder democrata, anunciou acesso à Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). Ao final de 2023, a Petrobras, em tom ufanista e sem disfarçar o regozijo, compartilhou uma imagem de uma broca submarina avançando sobre o leito marinho do litoral do Rio Grande do Norte.
A contradição é gigantesca, pois o mundo está em busca da descarbonização. Realmente, os paradoxos são afrontosos e estão custando caro, principalmente, aos mais pobres e excluídos.
Sobrevida
Além do diálogo inter-religioso, que nos auxilia a desarmar a bomba-relógio da fé cega, a participação cidadã ativa também nos ajudará a prorrogar, a dar sobrevida à nossa esperança de uma democracia longeva, altiva, resiliente e saudável. De uma vida melhor para todos e todas.
É preciso atitude. As pessoas precisam se posicionar sempre em favor dos direitos que são conquistas civilizatórias, conquistas coletivas. Juntos e juntas temos um desafio monumental pela frente e encontros como esse ratificam a fé e a esperança em um mundo mais justo.
O encontro foi gravado e você pode acessá-lo aqui.
Apoiadores