David Loy no CEBB Alto Paraíso, por Carol Franchi

Em busca do sagrado

Reflexões budistas sobre o secularismo


Por
Revisão: Carol Franchi
Tradução: Leonardo Collares

David Loy vem conduzindo palestras e retiros ao longo de todo o mês de maio em diferentes regiões do Brasil. Seu último evento será essa semana, no CEBB Florianópolis e no CEBB Mendjila, de onde se despedirá para retornar ao Colorado, onde dirige o Rocky Mountain Ecodharma Retreat Center. Ele também é escritor e professor zen na tradição Sanbo Kyodan do Zen Budismo japonês. Seu livro mais recente chama-se Ecodharma: Buddhist Teachings for the Ecological Crisis.

Nesse texto, publicado pela Tricycle, David diz que o budismo enfrenta um grande desafio no mundo moderno consumista. Ele explora a visão reducionista da ciência e propõe ver o cosmos como um organismo vivo, refletindo sobre as raízes históricas e implicações do mundo secular, sugerindo integrar espiritualidade e interdependência para enfrentar as crises atuais.


Hoje em dia o budismo enfrenta o que, provavelmente, é o seu maior desafio ao se inserir em um mundo moderno completamente diferente de tudo o que já encontrou antes, totalmente diferente das culturas asiáticas tradicionais que há muito tempo são seu lar. O budismo hoje faz parte de uma civilização global com possibilidades aparentemente ilimitadas, onde novos modos de comunicação e transporte nos permitem interagir em uma escala impensável há apenas algumas gerações. É também um mundo em que a ciência reducionista e as tecnologias todo-poderosas alimentam o sistema de valores aparentemente irresistível do consumismo, e que vem convertendo cada vez mais pessoas de modo mais rápido do que qualquer religião jamais tenha feito. O resultado é uma máquina econômica voraz que está colocando em risco todo o planeta.

O denominador comum de todas essas características é a sua secularidade. Comparado com todas as principais civilizações pré-modernas que conhecemos, o mundo moderno é realmente secular: terreno, não espiritual, irreligioso, materialista. Atualmente, muitas pessoas consideram essa secularidade como algo natural, acreditando que, uma vez que as crenças supersticiosas são removidas, a visão secular moderna é uma descrição precisa do que o mundo realmente é. No entanto, a secularidade não se refere apenas ao mundo cotidiano em que vivemos: é um entendimento historicamente condicionado de onde e o que somos. Uma visão de mundo que se torna bastante questionável quando analisamos suas origens e implicações.

A ideia de um mundo secular era originariamente a metade de uma dualidade, que continua sendo assombrada pela perda de sua outra metade. A modernidade se desenvolveu a partir dessa separação, que fez com que essa outra metade fosse desaparecendo aos poucos nas nuvens.

O termo secular (do latim saeculum, “geração, idade”) inicialmente se referia ao mundo temporal das dificuldades terrenas em que nascemos, sofremos e morremos, comparado com a eternidade da vida após a morte, que pode ser celestial ou infernal. O foco do contraste acabou mudando para uma divisão entre a transcendência de Deus e um mundo material desespiritualizado, acreditava-se que Deus era a fonte de significado, valor e bondade, mas o mundo que ele criou passou a ser entendido como uma máquina material.

No início da Renascença os europeus ainda entendiam a Terra e suas criaturas de acordo com um paradigma hierárquico: tudo, inclusive a sociedade humana, tem seu lugar ordenado em um cosmo escalonado, não apenas criado, mas também sustentado por Deus. Nos séculos XVI e XVII, essa visão de mundo medieval entrou em colapso. As principais características do mundo moderno, incluindo o Estado-nação, o capitalismo e a ciência mecanicista, se desenvolveram e convergiram durante o caos religioso daqueles séculos.

Essa crise foi iniciada em grande parte pela Reforma Protestante, que começou no século 16 com as ideias e as obras de Lutero e se espalhou por meio da imprensa, que Gutenberg já havia desenvolvido na década de 1440. A tradução que Lutero fez de toda a Bíblia, do latim para o alemão, em 1534, significou que as pessoas comuns poderiam ler a Bíblia por conta própria. Lutero e Calvino eliminaram a intrincada rede de mediação (sacramentos, sacerdotes, ícones, dias santos, monasticismo, peregrinações e assim por diante) entre Deus e este mundo, uma rede que havia constituído, de fato, sua dimensão sagrada. Para os crentes protestantes, o mistério e o milagre perderam sua ênfase, de forma a abrir as portas para as explicações materialistas da ciência e as preocupações materialistas do capitalismo. Em The Sacred Canopy, o sociólogo americano Peter Berger descreve essa visão de mundo emergente como aquela em que “a realidade está polarizada entre uma divindade radicalmente transcendente e uma humanidade radicalmente “decaída” que … está desprovida de qualidades sagradas. Entre eles está um universo totalmente “natural”, criação de Deus, sem dúvida, mas em si mesmo desprovido de numinosidade”.

O resultado desse processo histórico extremamente complexo (que, obviamente, tive de simplificar bastante aqui) é que a religião se tornou privatizada. Deus foi colocado no andar de cima, muito acima dos assuntos sórdidos deste mundo, mesmo quando o princípio de um relacionamento direto e pessoal com Deus foi santificado. “Todo homem é seu próprio sacerdote”, declarou Lutero.

A dessacralização ocorreu porque Deus passou a ser entendido como habitando muito acima deste mundo corrompido e também no fundo do coração humano. Mas onde Deus praticamente deixou de habitar foi no mundo cotidiano da nossa vida social. Como disse o teólogo americano Dan Maguire em Ethics for a Small Planet: “Projetar a experiência do sagrado em um Deus imaterial é ignorar a sacralidade como uma dimensão da vida material e transformá-la em um objeto de adoração que está além do nosso mundo e, portanto, alheio à vida”. Ainda hoje estamos lutando para lidar com as consequências dessa divisão.

Essas mudanças abriram caminho para perspectivas científicas inovadoras. É importante lembrar que os cientistas mais antigos, que foram os mais responsáveis pela nova visão de mundo – Copérnico, Galileu, Kepler, Newton – também eram profundamente religiosos e entendiam este mundo apenas em relação a um mundo superior. Todos eles ainda acreditavam em um Criador, embora fosse um Criador cada vez mais distante. Eles desenvolveram um novo paradigma: Deus governa o universo não por meio de uma hierarquia de subordinados espirituais, mas com um sistema racional de “leis ocultas”. Usamos a mesma palavra para as leis aprovadas por uma legislatura e as leis da natureza, porque os arquitetos da visão moderna acreditavam que as leis naturais também eram ordenadas, especialmente por Deus. De acordo com René Descartes, “Deus estabelece leis matemáticas na natureza como um rei estabelece leis em seu reino”.

Galileu expressou essa perspectiva revolucionária quando escreveu que “o Livro da Natureza está escrito em símbolos matemáticos” pelo “grande Geômetra”. Portanto, a chave para seus significados ocultos deveria ser encontrada por meio da descoberta das leis matemáticas que determinam como as coisas interagem umas com as outras. Assim, enquanto a visão de mundo medieval via a influência de Deus filtrando-se por meio de uma hierarquia de agentes, com diferentes graus de bênção e poder, de acordo com sua posição e função, o grande Geômetra não deveria ser identificado com o mundo decaído que ele governava impessoalmente de longe. Como escreveu o astrônomo Johannes Kepler: “Meu objetivo é mostrar que a máquina celestial deve ser comparada não a um organismo divino, mas a um mecanismo de relógio”.

Como Deus era a fonte suprema de toda a bondade, essa também era a base de uma divisão cada vez mais acentuada entre fatos e valores. A religião se tornou mais literal, tanto para os crentes quanto para os descrentes. No lugar dos símbolos e práticas tradicionais que transmitiam significado de diferentes maneiras, o cerne da religião era agora considerado como um conjunto de proposições sobre o mundo e seu Criador. À medida que a Deidade foi desaparecendo gradualmente em direção aos céus, o mundo que ele deixou para trás foi lentamente, porém definitivamente, sendo desvalorizado. Isso abriu novas e empolgantes possibilidades, pois aqueles que compreendiam as leis ocultas de Deus podiam usá-las para manipular a natureza para seus próprios fins, mas, como a filósofa ambiental Carolyn Merchant ressalta, isso teve um preço considerável: “O processo de mecanização da imagem do mundo removeu os controles sobre a exploração ambiental que eram uma parte inerente da visão orgânica de que a natureza era viva, sensível e suscetível à ação humana.”

Para os reformadores protestantes, a vida secular era uma preparação para o nosso destino final: este mundo é um meio para um fim mais elevado. Entretanto, como o polo sagrado – Deus, a garantia de que a vida tem sentido e a salvação é possível – desapareceu, a razão religiosa original para essa distinção (a vida eterna no paraíso) também se perdeu. A evaporação do sagrado nos deixou apenas com o polo secular. Como o modo de vida tornou-se cada vez mais separado de qualquer perspectiva religiosa ou supervisão moral, a consciência moderna ficou desprovida da orientação espiritual que a Reforma havia promovido originalmente.

A transição completa para uma ética secular se deu com Darwin. Ele refutou o “argumento do design”, a última prova que restava da existência de Deus. Como a evolução por seleção natural não precisa de um Deus para dirigi-la, uma divindade todo-poderosa não era mais necessária para criar os organismos extraordinariamente complexos, inclusive nós, que compõem a teia da vida. De fato, para o mundo secular, Deus já não era mesmo necessário.

Esse último golpe darwiniano deixou o Ocidente moderno encalhado, para o bem ou para o mal, em um mundo mecanicista e dessacralizado, sem nenhum código moral obrigatório para regulamentar como as pessoas deveriam se relacionar umas com as outras. O novo universo secular, governado por leis físicas impessoais, é indiferente a nós e ao nosso destino. Como indivíduos, talvez não acreditemos nisso ou não nos sintamos pessoalmente oprimidos por suas implicações, mas essa secularização continua a remodelar nossas instituições econômicas, políticas e educacionais. À medida que a mentalidade moderna se espalhou para além do Ocidente, ela passou a determinar cada vez mais o ambiente social no qual as pessoas de todo o mundo vivem e agem.

Embora o próprio Darwin fosse religioso – e estivesse preocupado com as implicações de seu trabalho – sua teoria foi logo usada para racionalizar uma nova ética social. A vida humana também é uma luta, na qual somente os mais aptos sobrevivem e prosperam. Essa perspectiva parecia justificar as formas mais cruéis de competição econômica e política, como mostra a história recente.

De acordo com o paradigma secular predominante, a evolução biológica é o resultado de processos materiais que operam de acordo com leis impessoais. Mas e se, em vez de reduzir a biologia à física mecanicista e ver o cosmos como uma máquina, tentássemos o oposto e entendêssemos o universo físico de acordo com um modelo biológico, ou seja, como vivo? Como Joseph Campbell observou: “Se você quer mudar o mundo, precisa mudar a metáfora”.

De fato, há um problema fundamental com o modelo mecanicista. Uma máquina pressupõe um fabricante de máquinas: alguém que a projeta e constrói. Um cosmo semelhante a uma máquina fazia sentido desde que o universo fosse entendido como tendo sido criado por Deus de acordo com seu próprio plano e propósitos. Como mencionado acima, foi assim que os fundadores da ciência moderna – Galileu, Kepler, Descartes, Newton e outros – entenderam as leis da natureza. No entanto, sem um Criador, o modelo mecanicista não funciona.

Porém, isso não significa que precisamos voltar à ideia de um Mecânico transcendente. Em vez disso, o mundo pode ser entendido como um organismo que se reorganiza constantemente e desenvolve estruturas novas e mais complexas. Como escreve o filósofo Ervin Laszlo em Science and the Reenchantment of the Cosmos, esse paradigma científico emergente tem muito em comum com a visão tradicional pré-moderna:

Na vanguarda da ciência contemporânea, começa a surgir um insight incrível: o universo, com todas as coisas nele contidas, é um todo quase vivo e coerente. Todas as coisas nele contidas estão conectadas. . . . Um cosmos que é conectado, coerente e completo faz lembrar uma noção antiga que estava presente na tradição de todas as civilizações: é um cosmos encantado. . . . Somos parte uns dos outros e da natureza. . . . Somos uma parte consciente do mundo, um ser por meio do qual o cosmos passa a se conhecer.

A ideia de que o universo é “conectado, coerente e completo” está completamente de acordo com os ensinamentos budistas sobre interdependência. Pode-se até chamar a ideia de uma versão atualizada da rede de Indra, uma metáfora Mahayana que compara o cosmos a uma teia multidimensional com uma jóia em cada nó. Cada uma dessas jóias reflete todas as outras e cada uma dessas reflexões também reflete todas as outras reflexões, ad infinitum. De acordo com Francis Cook, em Hua-Yen Buddhism, a rede de Indra “simboliza um cosmo no qual há uma inter-relação infinitamente repetida entre todos os membros do cosmo”. Como a totalidade é um vasto grupo de membros, cada um dos quais sustenta e define todos os outros, “o cosmo é, em suma, um organismo auto criador, automantido e autodefinido”. Na linguagem biológica, esse cosmos é auto-organizado.

O cosmólogo americano Brian Swimme disse em uma entrevista sobre o que ele considerava ser a “maior descoberta do empreendimento científico: você pega o gás hidrogênio e o deixa sozinho, e ele se transforma em roseiras, girafas e humanos. . . . Se os seres humanos são espirituais, então o hidrogênio é espiritual”. Não é preciso dizer que essa perspectiva orgânica difere consideravelmente do paradigma materialista e reducionista, que tem sido tão bem-sucedido em explicar o mundo e dobrá-lo à vontade humana – um modelo que um número cada vez maior de cientistas contemporâneos e teóricos da complexidade não considera mais convincente. Uma dessas diferenças está nas implicações do novo modelo sobre como entendemos o papel integral da consciência. Em geral, presumimos que estamos “no” mundo objetivo da mesma forma que outros objetos físicos, mas evidências experimentais e teóricas consideráveis sugerem que o que experimentamos como realidade não se torna “real” até que seja sentido, entendido. A consciência é necessária para colapsar a onda quântica em um objeto, que até então existia apenas em potencial. De acordo com o ganhador do Prêmio Nobel Erwin Schrödinger, o pai da mecânica quântica (e um dos primeiros expoentes do budismo e do Vedanta), em sua coleção de palestras Mind and Matter: “Sujeito e objeto são apenas um. Não se pode dizer que a barreira entre eles tenha se rompido como resultado de experiências recentes nas ciências físicas, pois essa barreira não existe. . . . O mundo material só foi construído ao preço de tirar o eu, isto é, a mente, dele, removendo-o; a mente não faz parte dele”. E se nossas mentes fazem parte dele, precisamos revisar nossa compreensão do mundo secular. Essas perspectivas questionam a visão reducionista comum de que a consciência é apenas um produto de processos físicos.

A afirmação de Laszlow de que somos “um ser por meio do qual o cosmo passa a se conhecer” sugere que somos parte integrante dele e que temos um papel a desempenhar. Se o cosmos é um grande organismo, ele é algo mais do que o lugar onde residimos. Os seres humanos são um órgão desse todo coerente muito maior.

Em The First Three Minutes, o físico americano e ganhador do Prêmio Nobel Steven Weinberg afirmou que “quanto mais o universo parece compreensível, mais ele também parece sem sentido”. Mas examinar o universo objetivamente e concluir que ele é inútil não é bem a questão. Quem está observando o universo? Quem está compreendendo que ele é inútil? Alguém separado dele ou alguém que é uma parte inextricável dele? Se os próprios cosmólogos são uma manifestação do mesmo universo que estudam, então, com eles, o universo está compreendendo a si mesmo. Quando passamos a ver o universo de uma nova maneira, o próprio universo passa a se ver de uma nova maneira. Nossa capacidade de compreender o universo é outro produto das mesmas leis que estamos descobrindo.

A conclusão sombria de Weinberg é muito diferente das mitologias tradicionais das civilizações antigas. Para todas elas, a humanidade faz parte de um modelo maior, e temos um papel importante a desempenhar na manutenção dessa ordem. A realização de rituais religiosos era essencial nesse processo, para os modernos, os mitos e rituais antigos não têm o mesmo poder de outrora, pois as crenças que os sustentam não refletem mais nosso sentido mais profundo do mundo. Mas nossa crença comum de que o universo é, em última análise, sem sentido, é problemática à sua própria maneira. Por um lado, o significado é inescapável: ele está embutido em nossas prioridades. Se meu foco é “procurar pelo número um”, o significado da minha vida se torna a promoção do meu próprio interesse. Essa perspectiva, entretanto, baseia-se na premissa de que existo separado e independente do meu mundo. Mas em um universo que é um todo vivo e coerente, essa premissa é nada menos que uma ilusão, e meu próprio bem-estar não pode ser realmente separado do bem-estar dos outros. Quanto mais difundida for a ilusão, mais prejudiciais serão as consequências para o funcionamento de toda a sociedade.

Uma característica exclusivamente humana, enfatizada pelo budismo, é que podemos desenvolver a capacidade de nos “desidentificarmos” de tudo e de todos, deixando de lado o senso individual de um eu separado, isso também pode ser aplicado aos nossos eus coletivos. Podemos dissolver os dualismos que são básicos para o patriarcado, o nacionalismo, o racismo e assim por diante. O desapego desenvolvido na meditação pode permitir que nos desidentifiquemos com qualquer um dos lados de qualquer dualismo e nos perceber no todo e como um todo. Como escreveu o grande mestre zen do século XIII, Eihei Dogen: “Cheguei a perceber claramente que a mente não é outra coisa senão montanhas e rios e a grande terra, o sol, a lua e as estrelas”.

O fato de os seres humanos terem a capacidade de se reconhecerem como uma manifestação de todo o cosmos abre uma possibilidade que, se adotada, pode nos ajudar a superar as crises que agora enfrentamos. O reconhecimento de que não estamos separados do resto da biosfera traz um profundo senso de que toda a Terra é o nosso corpo e uma aspiração de viver as implicações dessa percepção. Em vez de continuarmos a explorar os ecossistemas da Terra para nosso suposto benefício, podemos escolher trabalhar como bodhisattvas contemporâneos, para o bem-estar do todo. Podemos dizer que a iluminação é o meio pelo qual o cosmo auto-organizado desperta.

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