Ensō (círculo Zen) da série “Vida inteira”, pintura de Fábio Rodrigues

Tudo isso é Genjo Koan

Comentário sobre o fascículo “Genjo Koan”, frequentemente considerado como o mais importante escrito de Eihei Dogen


Por
Revisão: Leonardo Collares
Tradução: do japonês para o inglês por Kazuaki Tanahashi, e do inglês para o português por Fábio Rodrigues

Este é o texto introdutório do comentário de Bokusan Nishiari sobre o fascículo “Genjo Koan” (“Actualizing the fundamental point”), frequentemente considerado como o mais importante escrito de Eihei Dogen. Bokusan Nishiari (1821–1910) foi mestre de Ian Kishizawa (1865–1955), que por sua vez foi mestre de Shunryu Suzuki. Tradução do japonês para o inglês de Kazuaki Tanahashi, publicada no livro “Dogen’s Genjo Koan: Three Commentaries”.


Este fascículo, Genjo koan, é o mais difícil de todo o Shobo genzo (O Tesouro do Verdadeiro Olho do Darma). Mesmo os professores de antigamente cometeram erros e desenvolveram visões distorcidas. Todos vocês devem abrir o grande olho vital e penetrar nas palavras de Dogen Zenji sem poupar corpo ou vida.

Este fascículo é a pele, carne, ossos e medula de Dogen. O ensinamento fundamental da vida de Dogen está exposto neste fascículo. O buddhadharma da sua vida inteira é  revelado nesta obra. Os noventa e cinco fascículos do Shobo genzo são as ramificações deste fascículo.

Em geral, quando os antigos professores apresentavam seus ensinamentos essenciais, cada um deles tinha uma frase que nenhum de seus predecessores havia escolhido e na qual baseavam seu ensinamento. Com esta frase eles penetraram uma vida inteira. Os professores no passado não tinham duas frases. Portanto, aquela frase expressava seu dharmakaya. Por exemplo, a “Uma Jóia Brilhante” de Xuansha, a “Árvore cipreste” de Zhaozou e “Esta mente mesma é Buda” de Mazu são todas palavras de ferro nunca ditas por ninguém antes. Com uma frase, eles impulsionam a talidade do cosmos, e puseram em movimento a mesma roda do dharma que o Buda.

O mesmo pode ser dito de Dogen. Ele vê diretamente através do mundo das dez direções como Genjo koan, que são suas palavras de ferro. Quando esta frase é decifrada, os noventa e cinco fascículos aparecem aqui e ali como ramos dela. Por essa razão, o ensinamento da vida de Dogen está todo em uma frase, Genjo koan. Portanto, este fascículo é colocado como o primeiro na versão de setenta e cinco fascículos de Shobo genzo, editada pelo Mestre Zen Ejo. Isso foi feito sob a supervisão de Dogen, que tinha a visão para o ensinamento básico da escola.

Bendowa (Sobre o Esforço do Caminho), por outro lado, é colocado em primeiro lugar na versão de noventa e cinco fascículos, que agora é mais comumente lida. Esta versão está organizada de acordo com as datas em que os fascículos foram expostos pela primeira vez. Podemos ver porque Dogen expôs Bendowa primeiro quando pensamos sobre este coração compassivo que ergueu o ensinamento do samadhi corretamente transmitido no Japão, onde o Zen ainda não estava espalhado. No entanto, é em Genjo koan que Dogen abriu seu corpo e mente e apresentou a base do dharma da vida do Buda.

Assim, Dogen Zenji concentrou sua mente com todo o coração neste fascículo, dividindo-o em quatorze seções, explicando-o em detalhes. Tanto o estilo quanto o ensinamento são primorosamente profundos e sutis. Portanto, vocês que são seus descendentes do dharma deveriam ler este fascículo dia e noite com respeito e torná-lo a raiz de sua prática, nascimento após nascimento, mundo após mundo.

Então, o que afinal é Genjo koan? Em primeiro lugar, você deve colocá-lo no hara. Isso não pode ser feito apenas pelo pensamento. Por outro lado, você não pode
compreender isso sem conhecer o princípio básico. Por isso, primeiro vou explicar de uma forma analítica.

Genjo koan é a natureza-própria original do reino universal do dharma tal como é. Este reino do dharma é incomensurável e ilimitado. Ele contém passado e presente, os três mundos, as dez direções, delusões, iluminação, todos os budas, seres sencientes, nascimento e morte. Ele também contém todas as outras coisas. Cada elemento do dharma se transforma em ser, vazio, liberação e realidade última.

Ser é Genjo koan como ser. Vacuidade é Genjo koan como vacuidade. Nirvana é Genjo koan como nirvana.

Em resumo, no que diz respeito à delusão e à iluminação, as pessoas comuns tentam chegar à iluminação varrendo a delusão. Elas podem pensar que delusão é existência falsa e iluminação é existência verdadeira. O Genjo koan a que se refere aqui é diferente. Entre todos os seres, não existe uma única existência que seja um erro. Delusão é o Genjo koan da delusão. Não é que tenhamos iluminação excluindo a delusão. Iluminação é o Genjo koan da iluminação. Não é que escapamos da iluminação e caímos na delusão.

Falando de modo geral, em todas as direções, o grande não pode conter o pequeno. O longo não pode conter o curto. Todo e qualquer elemento do dharma é ele mesmo a realidade última. Mesmo uma única partícula é imóvel e não admite o menor deslize. O mundo inteiro, tal como é, é o que se chama Genjo koan.

Portanto, Genjo koan é a estrada do darma para o mundo inteiro. Discriminação e não discriminação são ambas Genjo koan. Dizer que não discriminação é Genjo
koan, porque ele é o reino do darma da não dualidade, e que o mundo da discriminação não é, porque ele é a mente de medir o pensamento, não é Genjo koan.

Cada elemento do mundo discriminado é em si mesmo Genjo koan. O discriminado tem mil espécies e dez mil tipos. Para aqueles que são iluminados, não é suficiente
chamar o corpo todo do reino do darma de iluminação. Para aqueles que estão deludidos, há delusão até o fundo do Inferno Avici. Quando vemos com a mente discriminativa, a distância entre a iluminação e a delusão parece ser como aquela entre o céu e as águas profundas. Assim, nos exaurimos oscilando entre o verdadeiro e o falso.

O Genjo koan aqui é tal que não excluímos as falsas visões, nem buscamos a verdade. Aqueles que estão iludidos estão iludidos dentro do Genjo koan. Em todos os darmas, não há falta; eles não podem ser quebrados, obtidos ou jogados fora. A face original, a natureza original como ela é, é chamada de Genjo koan.

Portanto, “Todos os darmas são realidade última”, como falado pelo Buda Shakyamuni, e “Uma Pérola Brilhante”, como falado por Xuansha, são assim. A conclusão do ensinamento da vida de Shobo (do verdadeiro darma) é “Todos os darmas são a realidade última.” O Genjo koan falado aqui é a expressão do significado desta realidade última conforme falado pelo Shobo.

Agora, em que sentido Genjo koan é a estrada do darma do mundo inteiro? Vou agora falar sobre cada ideograma separado das palavras Genjo koan.

Quanto a gen, usualmente se refere a uma aparência que foi escondida como em genzen (aparência da superfície) ou genzai (presente ser). Mas não é isso que significa aqui em Genjo koan. O gen de que se fala aqui não é o gen que está relacionado a esconder ou aparecer, permanecer ou perecer. Não há esconder nem aparecer no verdadeiro genjo. Quando dizemos que uma coisa oculta aparece, isso usualmente se refere à aparência ou gen que é relativa ao esconder. Nesse sentido dualista, é o fenômeno do nascimento e da morte. Mas, na verdade, no reino do verdadeiro genjo, não há esconder. Portanto, não há aparecer.

O “olhos horizontais e nariz vertical” de toda pessoa é brilhante e claro. Não há nada a esconder, então não há nada a revelar. O genjo que se quer dizer aqui é assim. Um grande segredo é grandemente visível. O que é grandemente visível é um grande segredo. O que pode ser meramente escondido ou revelado não é o verdadeiro genjo. Quando dizemos que não há esconder ou aparecer, isso significa que não há surgimento ou perecimento, aumento ou diminuição. O reino do darma do céu e da terra, como ele é, se estende do Buda Kashyapa no passado ao Buda Maitreya no futuro, incessantemente através de passado, presente e futuro, independentemente da criação ou destruição do mundo. Este é gen.

Em seguida, jo significa completude. Normalmente, quando algo recebe sua forma, chamamos isso de completude. Mas não é isso o que se quer dizer aqui. Aquilo que não está confinado à integração e desintegração é chamado de completo aqui. Aquilo que está imediatamente presente é a própria completude. A razão é que todos os darmas que aparecem e completam a si mesmos estão essencialmente além de nascimento e morte, ou do ir e vir.

No Sutra do Coração está escrito: “Não há nascimento, nem morte, nem impureza, nem pureza…”. Nenhum darma foi criado por budas, devas, seres humanos ou asuras. Todos os darmas são completos por si mesmos na face original. Eles estão livres de integração ou desintegração.

Ko significa imparcialidade e equidade. Grande não é pequeno. Longo não é curto. Um planalto é alto e plano. Uma planície é baixa e plana. Todos os darmas residem
em suas posições de darma. Eles não atrapalham um ao outro, as coisas são como são e sua natureza original é nirvana. Isso é ko.

Os três caracteres gen, jo e ko, embora seus significados sejam diferentes, referem-se a uma coisa. Por causa de genjo, as coisas são originalmente completas; porque são originalmente completas, são niveladas e iguais.

An significa manter ou sustentar as três qualidades — gen, jo e ko — sem perdê-las.

Este é o significado desses caracteres, mas entre eles koan significa lei ou governo. Uma nação tem um governo, assim como uma região ou uma vila. Onde há governo, há lei. Quando a lei é estabelecida, ela não pode ser revertida. Ninguém pode mudá-la. Isso é koan.

É importante que ele não possa ser movido ou alterado. Então o que é koan? O dharmadhatu não tem nada a ver com grande ou pequeno, superior ou inferior. Mesmo uma única partícula de poeira não pode ser removida. Por que não? Porque o dharmadhatu é como é. Sendo tal como é, ele nunca se move. Pense em uma montanha, uma montanha não pode ser movida. Pense em um oceano, um oceano não pode ser movido. Todos os dharmas são assim. Eles nunca podem ser alterados. Isso é chamado de koan.

Ao ouvir isso, você pode dizer: “Não, você pode mudar uma montanha se a derrubar, um oceano pode ser uma planície se você o encher de terra, um tolo pode se tornar uma pessoa sábia e uma pessoa sábia pode se tornar um tolo”. Mas isso é tolice, por mais que você destrua uma montanha, ela nunca se moverá. Uma montanha é como um longo pedaço de ferro e não pode ser movida. Não importa como você encha um oceano, ele nunca pode ser movido. Um oceano é um oceano, que é um longo pedaço de ferro. Não apenas uma montanha ou um oceano, mas tudo é assim.

Aqueles que estão deludidos estão deludidos e aqueles que são iluminados são iluminados. Este é o koan. Transformar a delusão em iluminação não é koan. Se seguirmos pelo caminho da delusão, certamente estaremos deludidos. Este é Genjo koan. Se seguirmos na estrada da iluminação, certamente seremos iluminados. Este é Genjo koan.

Existem maneiras de estarmos deludidos hoje. Não podemos dizer que não seja assim. Por essa razão, a delusão e a iluminação são coisas naturais que nunca podemos mudar. Existe apenas o fato de que aqueles que estão deludidos estão deludidos e aqueles que são iluminados são iluminados. Este é Genjo koan.

Não apenas delusão e iluminação, mas aparência e realidade, bem como a essência e a forma são assim. Manter os darmas de genjo como genjo, sem inventar, sem causar aumento ou diminuição, ao longo de passado, presente e futuro, sem alterar ou virar, é Genjo koan. Isso não é nada além de “Todos os darmas são eles mesmos a realidade última.”

O Sacerdote Honko diz sobre Genjo koan: “Estude com as mãos em shashu sobre o peito”. Honko foi uma pessoa excepcional na linhagem ancestral Soto, uma pessoa
com prática e compreensão completas. Ele resumiu a essência desta forma. O fato é que Genjo koan não é algo que a fala possa alcançar. É apenas shashu sobre seu peito, apenas essa atividade total. Não há outra maneira a não ser entendê-lo como é e aceitá-lo como é.

A fala e o raciocínio promovem a discriminação. Onde há discriminação, há escolha e descarte. O que é confinado por escolha e descarte está no reino da construção. Isso não é koan. A não construção é Genjo koan. Para aceitar [as coisas como elas são], dentro do reino da não construção, não há outra maneira senão shashu sobre seu peito. Honko era um mestre de fato.

Se amassarmos isso dessa maneira, Genjo koan revelará todas as coisas como realidade última. E todas as coisas como realidade última são shashu sobre seu peito. Isso é, “Pare de pedir discurso. Meu darma é maravilhoso e impossível de se pensar.” Se examinarmos os aspectos corretos de todos os dharmas, todos serão assim.

Se criarmos o pensamento de um fantasma faminto, seguimos o caminho dos fantasmas famintos. Se criarmos o pensamento de um asura, seguimos o caminho dos espíritos lutadores. Não é que Buda tenha feito à mão o caminho dos fantasmas famintos ou dos espíritos lutadores. Não é que o inferno foi criado pelo Rei Yama em sua corte. Você coloca a si mesmo em julgamento e se dirige para onde você escolhe ir. A água desce e o fogo sobe. Quando você está deludido, você se torna uma pessoa comum, e quando você é iluminado, você se torna um buda. Isso é Genjo koan.

Uma montanha é alta desde o início e não há construção. Da mesma forma, Genjo koan não pode ser construído. Faz calor no verão e frio no inverno. Quando as condições são adequadas, há nascimento. Quando as condições se exaurem, há morte. Isso é Genjo koan.

Uma causa benéfica produz um efeito benéfico, e uma causa danosa produz um efeito danoso. Isso é Genjo koan. Este é um ponto de vista elevado.

É um grande erro tentar construir a iluminação com suas próprias mãos. Isso não pode ser compreendido a menos que você tenha um olho penetrante, livre de delusão e iluminação. Independentemente de delusão ou iluminação, o aspecto real de todos os darmas é Genjo koan. Mesmo que neste momento você possa estar deludido, você deve fazer um esforço para sair da delusão e da iluminação, e ver com clareza.

Agora, é uma vergonha que tantas pessoas vejam o ensinamento essencial de Dogen Zenji com olhos pequenos. Sejam mais expansivos! Sejam como o teto que cobre o salão dos monges! Olhe para cima! Ele não se importa se você é uma pessoa deludida, uma pessoa iluminada, um monge adormecido ou um grande sacerdote. Ele olha para você com olhos espaçosos. Todos os seus dias devem ser como o estado desse teto. Se você está preso em seu desejo de ser iluminado, nunca chegará aos ensinamentos essenciais de Dogen Zenji.

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1 Comentário

  1. Eliane Maria Teixeira Leite Flores disse:

    Texto motivador e claro. Obrigada!

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