Um Guia para a Jornada dos Três Yanas

A visão budista para o caminho espiritual


Por
Revisão: João Bertolini e Henrique Lemes
Tradução: Pedro Lemme

Quando da publicação completa do magistral “O Tesouro Profundo do Oceano do Dharma” de Chögyam Trungpa, Dzogchen Ponlop Rinpoche ofereceu, pela Lion’s Roar, uma belíssima introdução que apresenta o contexto desses ensinamentos que compõem a quase totalidade do caminho budista. Selecionamos, aqui, a primeira parte que trata do “Yana da Liberação Individual”, cujo texto original servirá de inspiração para um estudo regular no Cebb Caminho do Meio, que começa dia 02 de setembro, presencial e online.


A apresentação completa de Chögyam Trungpa Rinpoche da jornada dos três yanas, ensinada apenas aos seus discípulos avançados, está sendo aberta ao público pela primeira vez com “O Tesouro Profundo do Oceano do Dharma”. Dzogchen Ponlop Rinpoche nos apresenta esse corpo único de ensinamentos.

Por Dzogchen Ponlop Rinpoche

Dzogchen Ponlop Rinpoche é fundador e presidente da Nalandabodhi e da Nitartha International, e autor de vários livros, incluindo, mais recentemente, Resgate Emocional: Como Trabalhar com suas Emoções e Transformar o Sofrimento e a Confusão em Energia

No verão de 1980, o Vidyadhara, Chögyam Trungpa Rinpoche, convidou meu pai e eu para jantar no Kalapa Court, em Boulder, no Colorado. Naquela noite, o Rinpoche me surpreendeu com um presente extraordinário: uma coleção das transcrições de seus seminários, juntamente com um rolo de tecido brocado japonês desenhado pessoalmente por ele, em uma bandeja. O Vidyadhara olhou para mim por cima  de seus óculos e perguntou: “Você sabe ler em inglês?”. “Não muito bem”, eu respondi. “Talvez algum dia você possa tirar proveito disso aqui”, ele disse, apontando para a pilha de transcrições. 

Enquanto frequentava o colégio monástico, eu mantive as transcrições do Rinpoche comigo e nunca me esqueci de suas palavras. Após frequentar a universidade de Columbia, eu comecei a lê-los com mais atenção. As interpretações novas e experienciais dos conceitos budistas originais que eu estudei toda a minha vida me trouxeram uma nova perspectiva. 

Três décadas depois de ter recebido as transcrições, eu aprecio a oportunidade de revisitar esses ensinamentos históricos e inovadores. Mais uma vez, fico impressionado com o feito notável do Vidyadhara e com sua apresentação brilhante e habilidosa do buddhadharma para o ocidente. Ao mesmo tempo, é difícil transmitir suas qualidades especiais e o que eles significaram e continuam a significar para aqueles que buscam uma experiência genuína do despertar. 

Como membro da última geração de mestres tibetanos treinados no Tibete, Chögyam Trungpa Rinpoche recebeu um treinamento rigoroso – e, ouso dizer, excruciantemente severo – na tradição Vajrayana do budismo, antes de fugir para a Índia. Ao longo de seus estudos na Universidade de Oxford e dos anos vividos nos E.U.A., ele desenvolveu um domínio sobre a língua inglesa, bem como um conhecimento íntimo da cultura ocidental e da psique cosmopolita contemporânea. Associadas a seu treinamento budista clássico, essas experiências estabeleceram a fundação para uma apresentação fascinante e única dos ensinamentos budistas, que não deixava de lado nenhuma das instruções fundamentais mais essenciais. 

Em muitos casos, para se conectar com a mente e a experiência ocidentais, ele redefiniu e reformulou terminologias para dar novas conotações a palavras inglesas já existentes, como ego, tédio, e bondade básica. Diversas expressões budistas que hoje são comumente utilizadas foram cunhadas pelo Rinpoche. Ele utilizava os termos materialismo espiritual e narcisismo espiritual para descrever uma tendência de muitos praticantes a transformar sua jornada espiritual em um exercício de enriquecimento do ego. Ele nomeu como compaixão idiota a tendência a darmos às pessoas aquilo que elas querem, em vez do que elas realmente precisam, porque não conseguimos suportar seu sofrimento. Tais inovações, raras em contextos tradicionais, marcaram o início, de fato, de um budismo verdadeiramente ocidental.

O conceito de materialismo espiritual, especialmente, ficou incrustado no vocabulário das comunidades de prática budista ocidentais. Esse termo demonstra de forma brilhante não apenas o poderoso entendimento que o Vidyadhara tinha das dificuldades e agruras do caminho em questão, mas também uma compreensão sagaz da psicologia ocidental. Sua intimidade com a cultura ocidental permitiu que ele tomasse a ideia de ‘materialismo’, que já era familiar para seus alunos, e a aplicasse ao caminho budista de uma maneira prática. Note que não se trata da posição política do materialismo, mas do hábito de ir ao shopping – essa pressão perpétua do consumismo que se baseia na suposição de que adquirir mais e mais coisas irá, de alguma forma, levar ao contentamento. 

Foi a conexão do Rinpoche com a experiência ocidental que permitiu que ele fizesse a ponte entre nossos desejos e impulsos materialistas ordinários e a fixação mais sutil e profundamente arraigada que reforça a fixação ao ego e desvia nosso caminho espiritual. O resultado da bondade original e transformadora e da inovação genuína do Rinpoche foi um buddhadharma habilmente embalado e entregue, pela primeira vez, a um público ocidental. 

Além de transplantar o buddhadharma genuíno para o ocidente, nos anos 1970, Trungpa Rinpoche também compartilhou com o mundo a sua visão de longa data de uma sociedade iluminada através do ciclo de ensinamentos conhecido como Treinamento Shambhala. Essa série de workshops e meditações de forma secular forneceu aos praticantes leigos uma progressão de meios hábeis com os quais eles poderiam se conectar com sua “bondade básica” e contribuir para o desenvolvimento de uma sociedade destemida, gentil e lúcida.

Com a publicação de O Profundo Tesouro do Oceano do Dharma , as mesmas transcrições de seminários que eu vi pela primeira vez há mais de trinta anos renasceram como três volumes acessíveis, lindamente organizados e editados com elegância, sem perder a voz ou intenção do autor. Os volumes oferecem um vislumbre dos ensinamentos essenciais do Vidyadhara, dados aos seus alunos ao longo de muito anos em seu estilo único, provocador e meticuloso, aprimorado por seu conhecimento da epistemologia e da psicologia ocidentais. O volume um abrange os ensinamentos clássicos budistas do yana da liberação individual, o volume dois trata do Mahayana, e o terceiro, do Vajrayana.

Há algumas interpretações equivocadas em torno da necessidade de praticantes do Vajrayana se engajarem nos outros yanas. Porém, de acordo com alguns dos principais tantras budistas, como o Hevajra e o Kalachakra tantras, o desenvolvimento de visão, meditação e ação da jornada completa dos três yanas é, sem nenhuma dúvida, essencial e necessário. Nessa compilação dos ensinamentos dos seus seminários, Chögyam Trungpa Rinpoche está em completa sintonia com a tradição tântrica.

O Ego, uma obra de arte brilhante

Como Trungpa explica, ao se engajar em qualquer prática espiritual, “você precisa ter uma noção básica de onde você está começando, para onde você está indo e com o que você está trabalhando”. Começar com “o que você é e por que você está buscando algo” é a maneira correta de iniciarmos.  

Não há nada do que se envergonhar, a despeito do que possamos descobrir a respeito de quem e o que nós somos. Na verdade, nós deveríamos ter orgulho de realmente descobrir quem e o que somos, e apreciar a coragem necessária para reconhecer isso. De acordo com a visão do Vajrayana, nossa natureza fundamental, a base fundamental, sempre foi aberta, espaçosa, pura e rica em sabedoria iluminada. A imagem que Trungpa utiliza é simples e elegante:

No início, há um espaço aberto que não pertence a ninguém, e, no interior desse espaço, há uma inteligência primeva, ou vidya, então há tanto inteligência quanto espaço. É como uma sala espaçosa e completamente aberta em que você pode dançar livremente, sem medo de esbarrar em nada. Você é esse espaço; você é uno com ele. Mas você se confunde. É tanto espaço que você começa a rodopiar e dançar por toda parte. Você fica ativo demais nesse espaço. Conforme você dança, você passa a experimentar cada vez mais… 

Quando não temos consciência desse estado genuíno e começamos a nos fixar, “rodopiando em nossas vidas”, esse é o início do samsara. Estamos dando origem ao ego, à dualidade e ao samsara, todos juntos. Trungpa explica esse mecanismo com clareza e precisão:

Quando você tenta se fixar ao espaço, agarrar-se a ele, toda a perspectiva se altera completamente. Você solidificou o espaço e tornou-o tangível. Essa sensação de consciência de si é o nascimento da dualidade…  A inteligência primeva, ou vidya, ainda está lá, mas ela foi capturada e solidificada. Assim, ela se tornou avidya, ou ignorância. Esse “apagão” da inteligência é a origem do ego.

Trungpa descreve o ego que descobrimos no processo de solidificação do espaço como “uma obra de arte brilhante”. De acordo com o budismo, “ego” é meramente um rótulo atribuído ao conjunto dos skandhas que é experimentado como um “eu”. Trungpa sentia que esse processo – a forma como como o rótulo do ego unifica esse “processo desorganizado e disperso em uma única entidade” – era bastante sagaz.

Quando não temos consciência desse estado genuíno e começamos a nos fixar, “rodopiando em nossas vidas”, esse é o início do samsara. Estamos dando origem ao ego, à dualidade e ao samsara. todos juntos. Trungpa explica esse mecanismo com clareza e precisão: o “apagão da inteligência” se torna a própria base sobre a qual desenvolvemos o caminho para transcender o ego. Embora essa base “talvez não seja particularmente iluminada, pacífica ou inteligente, ela é boa o bastante”, diz Trungpa, e podemos trabalhar com ela: “é como arar a terra e plantar sementes. não estamos tentando nos livrar do ego, mas simplesmente reconhecê-lo e vê-lo exatamente como é”. 

Aprender como desconstruir nosso ego, ou transcender avidya, é crucial para atingirmos a verdadeira liberação. O domínio completo dos métodos para transformar nosso ego envolve o desenvolvimento gradual da visão correta, a familiarização com a meditação e o engajar-se atentamente em ações alinhadas aos três yanas.

Como podemos atravessar esse aparente “instinto primata do esforço habitual” e encontrar a liberação da fixação ao ego? Trungpa responde: “Todas as pessoas possuem a qualidade do despertar absoluto”, que não é um produto do nosso esforço. Ele diz: “o único esforço necessário é o de abandonar esse esforço”. Somente então a liberação – gentil e prazerosa – estará realizada. 

O Yana da Liberação Individual

Após apresentar uma visão panorâmica dos princípios do caminho budista, Trungpa nos guia, um passo por vez, numa jornada precisa e aprofundada pelo caminho da liberação individual, começando pela meditação shamata e a prática da atenção plena, passando, então, para os ensinamentos mais analíticos das quatro nobres verdades, dos doze elos da originação dependente (nidanas), e de outros conceitos clássicos do budismo, como os seis reinos da existência, que são apresentados como seis estados psicológicos.

Não-teísmo e a Salvação Individual

Uma vez que descobrimos o nosso sofrimento, que se origina da fixação ao ego e de avidya, a questão central é domar a mente e sua neurose. O caminho aqui é chamado de Salvação Individual, e, como Trungpa explica, ele começa com “o desejo de desenvolver paz ou tranquilidade dentro de si, e de evitar ações que possam ser prejudiciais a outros”.

Se quisermos aprender as lições do yana da liberação individual e chegar ao significado mais essencial dos ensinamentos do Buda, nós precisamos “abandonar o teísmo”, diz Trungpa. O conceito de não-teísmo, originalmente encontrado na obra de George Holyoake em 1852, é um dos temas vitais nos ensinamentos de Trungpa. Ele explica que as práticas budistas envolvidas aqui são não-teístas, “porque você não precisa contar com nenhuma ajuda. Ninguém vai te chacoalhar, a não ser a sua própria mente”.

Aprofundar-se no caminho budista tomando refúgio no Buda, no Dharma  e na Sanga é, por si só, uma outra maneira de abandonar o teísmo. É o reconhecimento de uma empreitada, uma expressão de responsabilidade pessoal, não de dependência. Como Trungpa explica, “a afirmação do Buda de que você deve ser inteligente em relação ao que está fazendo e em relação ao seu compromisso com a espiritualidade traz automaticamente à tona a noção de não-teísmo”. Embora o objetivo espiritual do teísmo pareça ser atingir a mais elevada possibilidade dos ideais mais nobres do mundo, como tornar-se divino ou reunir-se com a divindade suprema, a abordagem do não-teísmo é de simplesmente tentarmos nos relacionar com nós mesmos. Não há uma grande distância a percorrer. Ela é totalmente baseada numa experiência pessoal direcionada para o reconhecimento pleno da ausência de ego. 

Shila, Samadhi e Prajna

“Aquilo que resfria o calor neurótico”, shila, geralmente traduzida como disciplina ou ética, é uma prática que torna o seu ser e a sua mente unidirecionados, atingindo um nível de compostura. É um meio, Trungpa explica, “de manter sua precisão, de manter o seu senso de dignidade, o seu senso de ‘cabeça erguida’ –  de sustentar toda a sua existência”. Quando nos engajamos em shila, “seguimos o exemplo do Buda, de forma que nosso estado mental se torne funcional”.

Com a base de shila, samadhi, ou meditação, se torna um meio de tocar um estado mais profundo da nossa mente, através das práticas de shamata, ou calmo permanecer, e vipashyana, ou percepção superior. Trungpa ensina que “a não ser que estejamos dispostos a nos comprometer com a prática de shamata, não há como evitar o nascimento desfavorável ou a distorção. Então, shamata é muito importante”. 

Você talvez pense que já experimentou o verdadeiro tédio muitas vezes na sua vida, e sempre deseja evitá-lo. Mas o tédio genuíno, realmente, é outra história. Trungpa o chama de “tédio refrescante”, e é isso que você experimenta na meditação. É aquilo que você experimenta quando você se senta e observa o ritmo natural da sua respiração, de novo e de novo. A não ser que você seja capaz de sentar efetivamente, permanecendo presente com a sua experiência, “você não ficará adequadamente entediado”, diz Trungpa, e, portanto, “você não estará em sintonia com o poder da prática”.

A prática da meditação não diz respeito apenas ao desenvolvimento dos seus poderes de concentração. Trata-se também de desenvolver uma simpatia por si mesmo. Você finalmente pode apreciar ser você, Trungpa explica, sem ter que “tomar nada emprestado nem trazer nenhuma influência externa para a sua vida”. A única coisa de que você precisa é a experiência genuína da sua própria mente.

No entanto, a prática de shamata, por si só, não é suficiente para atravessar o ego. Ela precisa estar unida à vipashyana – percepção elevada, ou visão superior – a sabedoria que surge por meio da experiência meditativa direta ou da análise contemplativa. No budismo tibetano, é a meditação de vipashyana sobre a vacuidade que proporciona o reconhecimento da ausência de ego.  

Uma vez que nossa mente tenha sido processada por shamata, a consciência discriminativa, ou prajna, começa a surgir. Prajna, também conhecida como conhecimento transcendente, se torna o elemento quintessencial da prática que corta diretamente através do ego. Sem a compreensão da ausência de ego, não há caminho budista, e não há cessação do sofrimento, ou nirvana.

Publicação original: https://www.lionsroar.com/guide-to-the-three-yana-journey/

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