Histórias de espiritualidade e resistência na Amazônia e no Japão
Na semana em que celebramos o aniversário de Kazuaki Tanahashi Sensei e o lançamento da campanha de reflorestamento da Amazônia, a Bodisatva apresenta uma reportagem especial da edição 34, “Espiritualidades e Resistência”, assinada pela jornalista Lia Beltrão. No texto “A terra chama teu nome”, Lia reflete sobre sua vivência junto aos povos indígenas da Amazônia brasileira, explorando como a espiritualidade tem sido uma força essencial na resistência contra a destruição de seus territórios e culturas.
A reportagem conecta as perspectivas dos pajés e líderes Ashaninka e Puyanawa, do Acre, com a experiência de ativistas como Mayumi Oda e Kaz Sensei, no Japão, revelando um elo profundo entre a espiritualidade e as lutas ambientais em diferentes partes do mundo.
Aproveite também para conhecer e apoiar a campanha de reflorestamento que está transformando o território indígena Puyanawa com o plantio de milhares de árvores nativas. Faça parte desse movimento e ajude a reverter o colapso climático!
— Moisés, eu posso escrever sobre você na revista?
— Vai ser coisa boa?
— Como poderia ser diferente, Moisés?
— Então pode.
— Não sei como vou conseguir explicar o que vivi. Vai ser difícil.
— Você vai saber como fazer.
Este foi meu diálogo antes de entrar em um barco e descer debaixo de chuva o Rio Amônia, no meio da Floresta Amazônica, na fronteira do Brasil com o Peru. Apesar do nome de profeta cristão, Moisés é Ashaninka, uma das mais de 200 diferentes etnias que habitam este continente que chamamos de Brasil e que acabei atravessando de ponta a ponta para conhecer. Moisés ri do fato de o chamarem de xamã ou pajé, palavras que sequer existem em sua língua natal, o aruaki. Eu concordo com ele, mas certamente por outros motivos. Moisés não chama a si mesmo de xamã por humildade, e eu não consigo fazer isso por não ter repertório mesmo: simplesmente nenhuma palavra que eu conheço é capaz de descrever o que vi nele. Ao me acomodar no barco, que não sem razão é chamado de voadeira, o som ensurdecedor do motor me autorizou a liberar o choro que eu não sabia que estava ali. Meus companheiros de viagem olharam para mim preocupados e eu só consegui dizer, com chuva e vento forte na cara: eu estou feliz.
Eu estava na Amazônia como representante da INOCHI, organização sem fins lucrativos fundada por Kazuaki Tanahashi Sensei e Mayumi Oda para apoiar projetos de paz e sustentabilidade. No ano de 2021, com seus 88 anos, este mestre budista, artista e ativista decidiu que a INOCHI deveria apoiar a preservação da floresta e seus povos. Fábio Rodrigues, seu aluno próximo, me convidou para ajudá-lo a encontrar organizações que estivessem fazendo um trabalho na região amazônica e que fossem confiáveis, profundas e eficazes. Esta última palavra, aliás, está sempre na boca do Kaz: eficácia.
O primeiro movimento do Fábio foi buscar o Ailton Krenak. Reconhecido hoje como uma das maiores lideranças indígenas do país, nós tínhamos certeza de que a mente afiada e extremamente crítica de Ailton iria apontar apenas projetos que respeitassem a autonomia dos povos e não caíssem em nenhum padrão assistencialista. Ailton imediatamente nos indicou o nome de João Fortes e sua filha, Alice Fortes, que juntos coordenam uma iniciativa chamada Aliança Reflorestar da Amazônia, um consórcio com mais de seis organizações voltadas para a preservação da floresta e seus povos, com atuação no estado do Acre.
Uma pequena equipe da INOCHI Brasil se formou: além do Fábio e eu, se somaram Geovana Colzani e Guilherme Valadares. Ao longo de vários meses, fizemos reuniões para entender os projetos da Aliança e fazer a ponte entre eles e a INOCHI. Nosso trabalho tecnicamente envolvia a curadoria de informações para apresentações do projeto para os membros da INOCHI, ajustes de orçamento, criação de mapas, dentre outras coisas. O projeto a ser apoiado pela INOCHI prevê o reflorestamento, através da implementação de um sistema agroflorestal (SAF) de uma área desmatada dentro do território indígena Puyanawa, localizado no extremo oeste do estado do Acre. A previsão é a de que cerca de 4.500 mudas sejam cultivadas, plantadas e monitoradas durante três anos.
Ao longo do processo, meu papel foi ficar em contato com João Fortes, tirando dúvidas técnicas sobre o projeto, ajustando orçamento, etc. Mas eu também tinha imensa curiosidade de ouvir sobre sua experiência de mais de três décadas de convivência com povos amazônicos e sempre, depois de resolvidas as questões urgentes do projeto, arrumava uma desculpa para conversarmos mais. Além de reunir histórias incríveis sobre os indígenas, fui percebendo nas entrelinhas que a história do seu encontro com a Amazônia em si é bem extraordinária.
João é carioca, engenheiro. Ele trabalhava numa grande empresa de construção civil da família que leva o nome de seu pai — também João Fortes. Mas não era só isso. Ele me conta que, em 1987, a prática de meditação que recém tinha começado a fazer a partir de seu encontro com a mestra indiana Gurumayi (linhagem Siddha Yoga) despertou nele um interesse pela questão ambiental — um interesse que mudaria radicalmente sua vida. João passou a oferecer apoio financeiro a diferentes movimentos ambientalistas que estavam ganhando força no Rio de Janeiro e lhe foi sugerido apoiar o movimento de um ativista acriano, que precisava ter sua voz ouvida para além da floresta: Chico Mendes. Sem titubear, foi isso o que ele fez.
Pouco tempo depois, no final de 1988, Chico Mendes foi assassinado. “Eu fiquei chocado e foi muito impactante para mim, porque eu associei esse contato com Chico Mendes vindo junto com a meditação. Foi aí que decidi me posicionar internamente para continuar isso.” Depois da morte de Chico, João se engajou diretamente na articulação para que a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento acontecesse no Brasil. Pouco mais de dois anos depois da morte de Chico Mendes, a Eco-92 acontecia no Rio de Janeiro com a presença de 178 chefes de Estado e o compromisso — naquele momento extraordinário — com a implementação de políticas para um desenvolvimento sustentável.
Foi depois de 1992 que João começou a ir para a Amazônia com frequência e conviver com as comunidades da floresta. O que o levou inicialmente foi o desenvolvimento de um produto chamado “couro vegetal”, feito de látex e com um toque delicado como a nappa italiana. Com mediação do Ailton Krenak, João visitou inúmeras aldeias. O negócio de venda de produtos feitos a partir de couro vegetal acabou não engrenando por conta dos altos custos de produção, mas abriu portas para outros sonhos, especialmente ligados ao reflorestamento.
A relação de João com a Amazônia é entendida por ele como uma missão de vida, uma missão espiritual. Em um dos encontros que teve com sua professora na Índia, ele entendeu esse “comando” de Gurumayi e é isso que o guia até hoje.
Nada melhor do que um mestre que fixa um comando para ser o seu Dharma. É muito bom quando isso acontece. E funciona. Porque você começa a fazer todo esse serviço não com orgulho por estar fazendo. Não. Você faz o serviço sem expectativa de retorno. Você faz para a humanidade, para o planeta, para Deus. Isso dá força interna, inclusive para atravessar as dificuldades”.
Ao entender — e admirar — a motivação de João, e ao ouvir suas maravilhosas histórias sobre as comunidades indígenas que conheceu, comecei a considerar que era essa motivação que permitia que ele enxergasse coisas que poderiam passar invisíveis a outros coordenadores de projetos de reflorestamento. A cada ligação que fazíamos, fui, ainda que cercada pelo concreto da minha casa, embarcando na atmosfera da floresta e nas forças sutis que se movimentavam para o reflorestamento acontecer. Com o passar do tempo, as histórias ganhavam uma atmosfera ainda mais mágica. João me contava da existência de terras sagradas reveladas em visões da ayahuasca e de espíritos perturbadores pacificados pela força de antigos xamãs.
Fui entendendo que o reflorestamento era apenas a ponta do iceberg. Existia um rio abaixo do rio. Talvez as decisões mais estratégicas para proteção da vida da floresta e seus povos, as decisões sobre como se movimentar, o que fazer, com quem estabelecer parcerias, não fossem tomadas apenas a partir de discussões, pesquisas, reuniões, mas de uma comunicação com o “mundo espiritual”. E isso, ao que parecia, também era eficaz.
Todos esses relatos mágicos não deveriam soar estranhos aos meus ouvidos. Pratico o budismo tibetano tempo suficiente para ter furado a capa inicial “livre de xamanismos” com a qual essa tradição é apresentada no Ocidente. Eu fui atraída por um budismo clean, associado majoritariamente à meditação e à filosofia, mas já tinha descoberto que os ossos do budismo, como diz Zenju Earthlyn Manuel, são xamânicos.
E as histórias que confirmam isso são abundantes. Não só nos tempos antigos, mas ainda hoje, em momentos importantes de tomada de decisão, é comum que o governo tibetano (agora em exílio) consulte o oráculo oficial do Estado, Nechung. Lobsang Jigme, que era o kuten (a base física) do oráculo na época da diáspora tibetana, previu e cumpriu um papel crucial na fuga e proteção de S.S. o Dalai Lama para a Índia, tendo viajado ao seu lado durante os dois meses de travessia.
As visões e orientações transmitidas em sonhos são descritas nas histórias de diferentes mestres tibetanos. O grande terton Dudjom Lingpa, por exemplo, recebeu grande parte do seu treinamento tendo contato com diferentes deidades em sonhos recorrentes desde a sua infância.
Na verdade, eu sequer precisava recorrer às histórias do remoto Tibete para encontrar magia. A mesma organização americana que estava me enviando à Amazônia, a INOCHI, tinha sua própria origem em um chamado do mundo espiritual. A mulher que ouviu esse chamado e decidiu transformá-lo em ações concretas estava viva e não no Tibete, mas no mesmo lado ocidental do mundo que eu e os povos amazônicos que tanto me impressionaram. O nome dela: Mayumi Oda.
Mayumi tinha apenas quatro anos de idade quando bombas nucleares foram jogadas em seu país natal, o Japão. Assim como Kaz Sensei, sua infância foi marcada por destruição, medo e fome. Em 1966, Mayumi se mudou com o marido norte-americano para Nova York, mas foi apenas na década de 1990 que, segundo ela, pelo poder da meditação e um reengajamento com o feminino, a dor que carregava pelo que aconteceu em seu país pôde ser transformada em lágrimas e amor, e começar a se manifestar também como ativismo.
Em sua autobiografia, Sarasvati’s Gift (A Dádiva de Sarasvati, sem tradução para o português), Mayumi conta que, como parte desse processo de cura, decidiu voltar para o Japão a fim de apoiar mulheres japonesas que estavam face a face com os venenos da energia nuclear. O ano era 1992.
Eu fiquei profundamente triste diante do que vi quando retornei ao Japão. (…) Um país menor do que a Califórnia, o Japão tinha construído mais de quarenta reatores nucleares e o governo estava planejando construir ainda outros. Eu não acreditava que um país que havia sido devastado por Hiroshima e Nagasaki estava fazendo isso”.
Durante a viagem, Mayumi soube de um plano secreto do Japão para usar o plutônio como sua principal fonte de energia. O plutônio é um dos mais nocivos metais radioativos: uma dezena de miligramas de óxido de plutônio é suficiente para provocar a morte de uma pessoa que os tenha inalado, segundo o Instituto de Radioproteção e Segurança Nuclear (IRSN) da França. O mais estável isótopo de plutônio possui uma meia-vida de cerca de 80 milhões de anos, grande o suficiente para que se encontrem traços dele na natureza. Mayumi soube, por amigos ativistas, que naquele ano de 1992 o governo japonês estava planejando receber 1,7 tonelada de plutônio vindo da França — o suficiente para produzir 150 bombas nucleares — e que essas entregas estavam agendadas para ocorrer pelos dez anos seguintes. “Eu estava furiosa e devastada. Quem estava cuidando do futuro das nossas crianças?”
No final de sua viagem ao Japão, Mayumi foi levada por um amiga para visitar o Santuário Tenkawa, um antigo templo dedicado à deusa Sarasvati, onde uma tradicional cerimônia de fim de ano estava acontecendo.
Eu fui atraída por uma gigantesca árvore ginkgo, plantada 1200 anos atrás. Eu abri meus braços e abracei seu tronco largo. Eu podia sentir a pulsação e a energia vindas de suas raízes. E eu perguntei para a árvore:‘O que eu posso fazer para ajudar?’. Depois de voltar para a Califórnia, no dia de ano novo, eu sentei para meditar em frente à minha estátua de Sarasvati e a ouvi falar em voz alta: ‘Pare os envios de plutônio’. Eu fiquei atordoada. Respirei profundamente e disse: ‘Eu não posso fazer isso. Sou apenas uma artista’. E ela respondeu: ‘A ajuda surgirá’”.
Naquele mesmo dia, Mayumi telefonou para amigos que poderiam se tornar parceiros nessa empreitada e, sem hesitação, contou da árvore ginkgo e do chamado de Sarasvati. Um desses telefonemas foi para Kaz Sensei. Artista e calígrafo, Kaz havia se envolvido com a criação de arte antinuclear e participado como ativista de diferentes movimentos ecológicos e pela paz em São Francisco (Califórnia), onde morava. Prontamente, ele disse sim ao chamado de Sarasvati.
A história que se seguiu é surpreendente. Juntos, eles criaram a Plutonium Free Future, um movimento para gerar consciência a respeito da ameaça global que o plutônio representava e para fazer oposição direta ao seu transporte entre França e Japão. A campanha conseguiu que 43 países banissem a passagem de navios carregando plutônio por suas águas, o que acabou pressionando o Japão a suspender os carregamentos de plutônio para o país e a produção da substância em larga escala.
O Plutonium Free Future foi a primeira iniciativa da INOCHI, organização fundada no ano seguinte, em 1993. Há quase 30 anos, a INOCHI segue o chamado mais amplo de Sarasvati: defender e agir pela força da vida. Foi a partir da INOCHI que o Plutonium Free Future teve sua continuidade, especialmente em projetos de educação com mulheres japonesas sobre energia nuclear. Ao longo desses anos, inúmeros projetos ligados ao meio ambiente, educação e paz foram realizados e financiados pela organização.
O chamado de Sarasvati criou uma organização que agora, quase 30 anos depois, navegando por conexões insondáveis, chega à floresta amazônica. Não é absurdo dizer que Sarasvati foi a responsável por mobilizar um grupo de “budistas brasileiros”, como muitas vezes Kaz Sensei nos apresenta, para trabalhar para a INOCHI.
Gosto de imaginar que Sarasvati estava comigo quando atravessei o país e adentrei o coração da floresta numa voadeira, e que foi ela que me permitiu chorar de emoção por entrar em contato com as histórias daqueles povos e sua sabedoria ancestral. Mas a primeira paisagem que encontramos — Guilherme Valadares e eu — ao chegarmos à Amazônia não foi nada parecida com “o coração da floresta”.
Aterrissamos em Cruzeiro do Sul, a segunda maior cidade do estado do Acre, com 90 mil habitantes. Cruzeiro está a 300 quilômetros da fronteira com o Peru, que, como nos contou um taxista em nosso primeiro dia na cidade, tem aumentado sua produção de cocaína, aproximando-se da Colômbia, país que ainda é o número um no ramo. Para chegar a Cruzeiro do Sul e dali para o resto do Brasil, a cocaína atravessa regiões remotas da floresta e dos territórios demarcados, o que comprovei mais tarde com os próprios indígenas que vivem nesses territórios. Obviamente, por onde passa, o tráfico deixa uma marca profunda de violência e medo. Em Cruzeiro, não é diferente.
Mas teve outra coisa que chamou minha atenção, mais do que as rotas de tráfico, em Cruzeiro do Sul: a catedral da cidade. Contaram-nos que o desenho veio da mente de um padre alemão, nos anos 1950, que vislumbrou o projeto em visões da ayahuasca. Se esse dado é verdadeiro, não foi possível confirmar. No entanto, algo fora da curva certamente aconteceu ali. A catedral é um gigantesco octógono, que parece imitar uma construção tradicional indígena. Uma oca gigante na qual madeira e palha foram substituídas por tijolo e telha. Mas não é só a sua arquitetura que chama a atenção. Ao entrar na catedral, vemos um gigantesco painel, um afresco com a única imagem no altar da igreja. Nela está Maria vestida com um manto azul-celeste segurando o menino Jesus com semblante de paz. Atrás dela um lindo sol com raios amarelos que mais parecem pétalas de flor. Sob seus pés uma meia-lua repousa sob um dragão imerso em águas turbulentas.
A Maria representada — contaram-nos os fiéis que estavam na igreja — é Nossa Senhora da Glória. No entanto, a simbologia que ela traz é a mesma da chamada “Mulher do Apocalipse”. “Vestida de sol e com a lua debaixo dos pés”, ela é Maria protegendo seu filho de um dragão feroz, o diabo em pessoa. Alguns teólogos interpretam como uma representação da Igreja sendo perseguida e ameaçada por forças malévolas, e outros como a própria vida sendo ameaçada pela morte.
Eu não conseguia parar de me perguntar: será que, para o padre que vislumbrou a imagem, aquele dragão era realmente visto como uma manifestação demoníaca, contra quem Santa Maria precisaria entrar em guerra? Ou será que o via como uma força, um ser que, completamente fiel à sua natureza selvagem, tinha se colocado a serviço de Maria? Talvez até tivesse feito com ela um pacto sagrado de juntos, lado a lado, entrarem no mundo do sofrimento para cuidar e libertarem os seres. Na minha visão, o semblante de Maria indicava que ela não estava usando nenhuma força para dominar o dragão, nem o dragão com tal ferocidade parecia se deixar domar.
Mas eu sabia que essa leitura estava descaradamente apoiada em uma compreensão budista. Os dragões são comuns na mitologia oriental e muitas vezes retratados em imagens sacras como o veículo de budas e bodisatvas. Quando voltei da visita à catedral, escrevi para o Fábio e mandei para ele a foto que tirei do afresco. Ele me enviou uma imagem incrivelmente semelhante, mas de Kuan Yin, a representação da Buda da Compaixão. No Japão, por exemplo, muitas vezes ela está apoiada não sobre uma flor de lótus, como muitos outros budas, mas sobre um dragão, simbolizando o domínio e a compreensão da verdadeira natureza da realidade. Aliás, o logo da INOCHI é um dragão.
A minha aposta é que o padre visionário, guiado pela sabedoria da planta, virou um com a floresta, entendeu e se rendeu à sua natureza indomável e deixou o testemunho de sua reverência à força da vida em forma de catedral.
Se a floresta falou com esse padre em 1950, realmente não há como saber. Mas no município de Mâncio Lima, minha parada seguinte no Acre, eu tenho certeza de que isso aconteceu. Lá está a Terra Indígena Puyanawa, onde o projeto de reflorestamento apoiado pela INOCHI está previsto para acontecer, e foi para onde fomos depois de Cruzeiro do Sul.
Guilherme e eu fomos recebidos como amigos de longa data por uma comunidade brilhante. Os vários povos indígenas do Acre muitas vezes são associados a animais, e os Puyanawa, com muito orgulho, são o povo sapo. Um jovem professor e cantor da aldeia, Eduardo, nos explicou a simbologia. Os sapos são animais extremamente resistentes. “Se passa um carro por cima deles, podem sobreviver. Nós somos assim também.”
Os Puyanawa de fato foram atropelados por inúmeros carros do colonialismo — e sobreviveram. Por volta de 1910, durante o ciclo da borracha e do caucho na região, eles foram sequestrados e escravizados a mando do Coronel Mâncio Lima (sim, o nome da cidade onde hoje se localiza a terra indígena é uma “homenagem” ao tal coronel, e infelizmente esse não é um caso isolado na região). Segundo dados do Instituto Socioambiental, depois do sequestro, “a primeira providência dos seringalistas foi proibir o uso do idioma indígena e criar uma escola para que todos aprendessem o português. Quem falava na língua Puyanawa era duramente castigado”. Esse período, que os Puyanawa denominaram de “cativeiro”, durou até 1950, quando, com a morte do coronel, eles foram libertados da escravidão em que viviam.
Os primeiros estudos da Funai sobre a terra indígena Puyanawa começaram apenas em 1977, e só em 2001 é que a demarcação do território foi homologada. No entanto, o período de cativeiro deixou marcas profundas nesse povo, e o resultado é que em 2009, dos cerca de 500 índios na aldeia, apenas três falavam o idioma original.
Apesar de todo esse atropelamento, o que presenciamos — Guilherme e eu — foi uma comunidade forte, unida e decidida a ir em busca de sua própria história. Vimos crianças e jovens falando e compondo músicas em Ûdikuî, sua língua materna, ritos espirituais dos ancestrais voltando a ser incorporados pela comunidade, casas em estilo tradicional substituindo as de alvenaria. Puwe Puyanawa, que, junto com sua família, foi o responsável pela nossa estadia lá, nos falou que a comunidade se entende como vivendo um processo de “revitalização cultural, social e espiritual”. E, de fato, não há outra forma de descrever o que está acontecendo se não um voltar à vida.
Puwe nos contou que houve um ponto de virada para o qual os indígenas da etnia Ashaninka — Moisés Ashaninka e outras pessoas da aldeia — foram fundamentais. Em 2011, um evento deixou toda a aldeia em alerta: cerca de nove adolescentes começaram a apresentar um comportamento estranho. Na visão de Puwe e outros moradores com os quais conversamos, as meninas estavam possuídas por alguma força “estranha”, algum espírito maligno. Elas entravam em uma espécie de transe coletivo que ninguém conseguia interromper ou controlar, e isto aconteceu algumas vezes. Naquele momento, a presença de igrejas evangélicas dentro da terra indígena era tal que o próprio cacique da aldeia, Joel Puyanawa, era pastor. Se havia algum problema de ordem espiritual, a maior parte da comunidade recorria às igrejas e aos pastores para que aquilo fosse resolvido.
No entanto, ainda que houvesse quase dez diferentes igrejas evangélicas dentro da comunidade, ninguém foi capaz de pacificar as meninas e libertá-las daquela força. Foi aí que Puwe decidiu entrar em contato com Moisés Ashaninka e seu irmão Benke, outro poderoso xamã. Eles haviam se conhecido por meio de um projeto que chamou a atenção do mundo: o Centro Yorenka Ãtame, ou Saberes da Floresta. O trabalho que os Ashaninka lideraram, promovendo intercâmbio entre diferentes povos, partia do diagnóstico de que não eram apenas os invasores com interesses econômicos — garimpeiros, hidroelétricas, caçadores, madeireiros — que ameaçavam a sobrevivência da floresta, mas também a desconexão desses povos com suas tradições espirituais e seus métodos milenares de sobrevivência e cura.
Puwe tinha participado de alguns encontros, através dos quais aprendeu sobre agrofloresta e pôde conviver um pouco mais com esse povo sobre o qual, desde criança, ele ouvia falar por conta de sua forte espiritualidade. De fato, por intermédio do Centro Yorenka Ãtame, soube depois que os Ashaninka apoiaram diversos povos indígenas da região a voltarem para suas raízes e se encontrarem, nas palavras que ouvi de Moisés, “com quem eles realmente são”. E não foi diferente com os Puyanawa.
Ainda que localizadas no mesmo estado, a terra dos Puyanawa está há longas horas de distância dos Ashaninka. Mesmo assim, Benke, Moisés e mais seis “pessoas espirituais” Ashaninka atenderam ao chamado de Puwe e foram até a aldeia Puyanawa, onde conduziram, durante uma semana, cerimônias de cura com a comunidade.
Ao final daquela semana, as meninas estavam pacificadas, mas o efeito na comunidade foi bem além disso. No último dia de cerimônia com os Ashaninka, Joel, diante do seu pai — que também era pastor evangélico e de quem havia recebido o título de cacique há pouco tempo — e de toda a comunidade, anunciou que naquele momento deixava de ser pastor para voltar para suas raízes, para os rituais de seus ancestrais e para os poderes de cura da floresta.
Ao redor de Joel e Puwe, um grupo foi formado, e, com orientação inicial dos Ashaninka e de outros povos, eles iniciaram sua própria jornada de volta para os seus conhecimentos ancestrais. Não havia entre eles mais nenhum ancião que guardasse os conhecimentos de cura usados no passado, os detalhes sobre o preparo do chá e as canções rituais. Puwe me contou que eles dependiam apenas da própria planta, que, em suas mirações, os guiava. “A gente tomava o chá dentro da floresta e ia buscando as plantas certas. Cada lugar é diferente e a gente não sabia se tinha aqui na nossa terra a folha e o cipó. Experimentamos de tudo, quase morremos, mas encontramos.” A cerimônia ritual com uso da ayahuasca, agora conduzida por Joel, passou a ser incorporada como um evento regular da comunidade. Em pouco tempo, os Puyanawa estavam construindo sua Utá Xãbá, sua maloca de ritual onde as cerimônias passaram a acontecer semanalmente. Era a primeira desde antes dos tempos de cativeiro.
As iniciativas de reflorestamento da comunidade também começaram a acontecer depois disso. Para Puwe, o retorno às tradições espirituais de seu povo fez nascer outra relação com o território. “A gente quis ter uma relação melhor com a terra, do que só plantar mandioca para vender farinha. A gente quer levantar floresta, alimentar toda a nossa aldeia e ensinar outras comunidades vizinhas a fazerem o mesmo. Não basta a gente estar bem e não passar fome, os vizinhos têm que ter o que comer também, e por isso a gente tá fazendo agrofloresta.” Durante nossa estadia, Guilherme e eu visitamos três sistemas agroflorestais implantados e a área onde, conforme as previsões atuais, irá acontecer o reflorestamento com o apoio da INOCHI.
Eu ouvi essa história com uma mistura de fascínio e ceticismo. Será que o relato dos Ashaninka seria o mesmo? Qual a leitura que faziam daquele evento? As meninas estavam mesmo “possuídas”? Eu estava exagerando ao relacionar as iniciativas de reflorestamento a esse renascimento cultural e espiritual?
Para poder ouvi-los, eu tive que entrar num avião monomotor com barulho de fusca que quase não pegava na partida, pousar em um retângulo de barro descoberto no meio da mata, andar a pé carregando malas, rede e mosquiteiro, descer um barranco bem enlameado e entrar num barco comprido e estreito para subir quatro horas rio acima. A cidade onde pousamos se chama Marechal Thaumaturgo (mais uma homenagem de mau gosto). Ali está localizada a Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, onde vivem cerca de mil Ashaninkas, entre eles Moisés e sua família, na aldeia Apiwtxa. O território tem 87 mil hectares por onde seus habitantes estão espalhados. Recentemente, em um pedaço de terra, a cerca de um hora e meia de barco rio acima, Moisés decidiu construir o que ele chamou de Portal Espiritual.
Foi lá que fiquei, distante do movimento da aldeia, por alguns dias, convivendo com ele, sua esposa Rica, seus oito filhos e alguns poucos parentes que estavam ali para ajudá-los. Guilherme não conseguiu participar desse trecho da viagem, de forma que os únicos não indígenas no Portal éramos eu, Alice e seu namorado, Eric. Alice já havia visitado o Portal Espiritual algumas vezes e considera Moisés um de seus professores. Durante o mestrado, ela estudou a relação entre a espiritualidade Ashaninka e a conservação da floresta, fez muitas e muitas horas de entrevista com Moisés e conhecia em profundidade a história de sua família. Desde o começo, eu percebi quão raro era estar ali. Não apenas por poder estar tão dentro da floresta, mas pelo respeito e reverência que minha companheira de viagem demonstrava.
Em uma das conversas que tive com João Fortes, ele me falou que muitas vezes, quando visitava comunidades indígenas, ele ficava em silêncio, quieto, até alguém puxar assunto e ele começar a falar. Às vezes, isso demorava dias. Na pouca convivência que tive com os Mbya-guarani no Rio Grande do Sul, me dei conta de como nós brancos somos verborrágicos e quanto usamos a fala para mascarar desconfortos. Nesses dias com os Puyanawa, fui deixando de lado as mil perguntas que tinha preparado para fazer e permitindo que as trocas acontecessem em seu próprio fluxo, o que não ocorreu sem um tanto de frustração. Quando voltava para a rede à noite, e lia no caderno as perguntas que tinha listado, pensava: amanhã, eu faço pelo menos essa. Mas não fazia.
Quando cheguei ao Portal Espiritual, essa postura de apenas ouvir e observar parece que se assentou em mim e eu fiquei realmente confortável em apenas observar. Perceber a dinâmica daquela família foi um deleite para mim. Durante o dia, calçado com botas de borracha e facão na cintura, Moisés se envolvia nos cuidados com o Centro. Cuidava do roçado, saía para pescar, limpava trilhas para os igarapés. Os filhos homens — e uma garotinha chamada Tetéia — iam sempre junto. De noite, ele colocava sua cusma, uma espécie de túnica com listras verticais — uma vestimenta tipicamente Ashaninka e que denuncia sua proximidade com os povos indígenas do Peru (onde está grande parte dessa etnia). De noite, as crianças ficavam com Rica, enquanto nós três (eu, Alice e Eric), outros dois homens da aldeia e o filho mais velho de Moisés, Tom, participávamos do ritual que Moisés conduzia ao ar livre, sobre uma plataforma alta de madeira, de onde víamos o rio e as copas das árvores. Nenhuma luz a não ser a da lua.
No segundo dia no Portal, enquanto conversávamos depois do café da manhã, Moisés me perguntou: “O que vocês fazem lá no budismo? Como é?” Assim como fiz ao me apresentar aos Puyanawa, eu tinha falado para ele dos meus professores budistas e que eles haviam me enviado porque gostariam de apoiar os povos da Amazônia como pudessem. Mas ninguém antes tinha tido a curiosidade de me perguntar o que era o budismo. Eu expliquei como pude. Falei da prática de shamata, de prajna, tentei falar da liberdade natural da mente. Falei que a gente estuda, mas que meu professor me ensinou que só o estudo não é suficiente. A gente tem que aprender com o silêncio diretamente, observando nossa própria mente. Ele ouviu de forma atenta. Mostrei a revista Bodisatva. Apontei nas páginas quem era quem nas fotos.
Este é o Kaz, que me mandou pra cá. Ele é japonês. Este é o Lama Samten, que é meu primeiro professor. Isto é um enzo, e eles passam um tempão meditando para fazer esse círculo.” Foi uma das coisas mais inusitadas que já vivi: falar pra um xamã amazônico sobre budismo e ver o olho dele brilhando de interesse. “Eu gosto de aprender, sabe? Eu tô aqui pra ajudar as pessoas, mas eu gosto quando vêm outras pessoas e me falam de outras coisas, diferentes do que eu já sei”.
Esse era o passe livre de que precisava para poder sair um pouco da postura de observadora e soltar a perguntadeira presa em mim. Perguntei para Moisés, e ele me contou em detalhes como foi o encontro com os Puyanawa. “Eram quatro, cinco homens, seis homens, para segurar uma mulherzinha desse tamanhozinho e não conseguiam”. Sim, aconteceu. Foi como me contou o Puwe.
No entanto, havia uma diferença entre os relatos. Era aparentemente pequena, mas me chamou a atenção. Da forma como Puwe me contou, as adolescentes estavam possuídas por “forças demoníacas”. Para Moisés, não. “Eles (os Puyanawa) estavam recebendo um chamado espiritual do espírito do povo deles, da terra deles. Esse espírito dominava o corpo das jovens e eles não entendiam o que estava acontecendo. Só ali na terra deles tinha, parece, oito igrejas diferentes, e eles brigavam entre eles, discutindo qual era a melhor, e se esqueciam de quem eles eram. Foi aí que o espírito do mundo deles fez a chamada. E como iria fazer essa chamada? Atacando eles, para eles pararem e olharem o que estava acontecendo”.
Na visão de Moisés, não havia forças do mal contra forças do bem. Voltando para a imagem da Mulher do Apocalipse, não havia um dragão contra o qual guerrear. Se havia uma dualidade na história dos Puyanawa era entre entender quem eles eram e não entender quem eles eram. Os xamãs estavam ali para escutar essa força, saber o que o dragão estava querendo dizer, porque era ele o veículo que iria levá-los de volta para casa.
Ouvindo Moisés, fui entendendo que todas as ações políticas dos Ashaninka estavam baseadas nessa mesma visão. Por não verem os brancos como inimigos, como forças do mal, eles conseguiram ao longo das últimas décadas estabelecer laços que fortaleceram sua cultura, sua identidade e sua espiritualidade. Além de apoiarem diretamente vários outros povos indígenas, os Ashaninka têm iniciativas arrojadas de diálogo com o mundo branco. A própria demarcação de sua terra, em 1992, apenas foi possível graças a uma articulação incomum que fizeram com advogados brasileiros e organizações internacionais. “Sempre fomos guerreiros. Mas precisávamos trocar nosso arco e flecha por esse outro poder. Tínhamos que aprender a usar as armas do inimigo para poder vencer”, me falou Moisés.
Um xamã é alguém que viaja para outros mundos e adquire sabedoria para curar os males e as doenças das pessoas e de suas comunidades. O encontro dos Ashaninka com os Puyanawa mostrou que essa doença é sistêmica — pode ser chamada de opressão, dominação, tentativa de genocídio, colonialismo —, mas justamente por ser sistêmica é, se encarada, passível de cura. Uma das maiores ativistas ambientais do mundo, Vandana Shiva, fala: “Quando você trabalha e age a partir da espiritualidade, não há poder maior do que você. O poder de uma corporação é insignificante, pois é apenas força bruta. O poder de um ditador não é nada. A espiritualidade nos dá força para fazermos as transformações necessárias em direção à sustentabilidade”.
Tenho certeza de que é esse poder que move os povos-floresta que encontrei, é o que fez João encontrar Chico Mendes, e o que fez Mayumi Oda perguntar “o que eu posso fazer?” para uma árvore ginkgo e esperar sua resposta. Se a gente se concentrar, como me disse Moisés, a gente ouve.
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1 Comentário
Linda reportagem! Parabéns Lia!