Zenju Earthlyn Manuel reflete sobre opressão e despertar espiritual
A Revista Bodisatva tem a alegria de trazer este texto originalmente publicado pela Lion’s Roar, escrito pela sacerdotisa Soto Zen, autora e poeta Zenju Earthlyn Manuel. Herdeira do Dharma da saudosa Zenkei Blanche Hartman na linhagem de Shunryu Suzuki Roshi, sua prática também é influenciada pelas tradições indígenas nativas norte-americanas e africanas. Seu livro mais recente é “The Shamanic Bones of Zen: revealing the ancestral spirit and mystical heart of a sacred tradition” (em tradução livre, “Os Ossos Xamânicos do Zen: revelando o espírito ancestral e o coração místico de uma tradição sagrada”).
Eu estava com fome quando participei da minha primeira reunião budista Nichiren, em 1988. Literalmente. Eu queria sair para jantar em um restaurante com dois amigos meus, mas eles insistiram que, primeiro, eu participasse de uma reunião budista com eles naquela noite, antes de comermos. Com alguma irritação e muita resistência, assisti à reunião com o grupo enquanto eles recitavam o Nam-myoho-rengue-kyo. Um mês depois, eu estava cantando em frente ao meu altar budista, no qual estava pendurado um pergaminho coberto de escrita japonesa. Meus professores budistas me perguntavam “Por que você canta?”. Eu diria a eles que não sabia por quê. A verdade é que tive vergonha de contar-lhes que cantava por causa de uma dor profunda que não conseguia nomear.
Após cerca de dois anos cantando com essa dor, percebi que o sofrimento que sentia fazia parte de um sofrimento muito mais amplo no mundo. Não era meu, mas um sofrimento que existia antes do meu nascimento. Reconheci que me sentia separada do resto do mundo, que não pertencia e que não era uma parte aceitável da cultura dominante, porque era muito diferente da maioria em termos da minha aparência. O mundo se estruturou em torno da aparência. A forma como fui percebida e tratada dependia de uma estrutura de raça, sexualidade, gênero e classe. O poder perverso dessas estruturas tornou a minha encarnação inaceitável para os outros e para mim mesma. Como resultado, fiquei paralisada por sentimentos de isolamento na minha juventude.
Eu não confiava na minha própria sabedoria inata. Ao internalizar os julgamentos daqueles que achavam que certos tipos de pessoas são inferiores, eu me traí – cedi à opressão. A opressão é uma distorção da nossa verdadeira natureza. Isso nos desconecta da terra e uns dos outros. O despertar da distorção da opressão começa com a ternura: reconhecemos a nossa própria ternura ferida, que se desenvolve na ternura da vulnerabilidade e culmina na ternura que vem com a libertação sincera e autêntica. Essa primeira experiência de ternura é um grito que vem do fundo da nossa própria natureza. Isso nos obriga a buscar a reconexão com a terra e uns com os outros. Assim que nascemos, começamos a nos afastar de nossa verdadeira natureza.
Alinhamo-nos com estruturas estabelecidas que imediatamente começam a fixar as nossas percepções dos outros e de nós mesmos. Nossas vidas são moldadas por esse alinhamento. Alinhar-se é um mecanismo de sobrevivência, impulsionado pelo sofrimento que já nos rodeia desde o nascimento.
À medida que envelhecemos e nos acostumamos com as estruturas que nos moldam, nossa verdadeira natureza nos chama. Este chamado pode ser vivido como um lugar de separação e sofrimento. Ao atender a esse sofrimento, iniciamos muitos caminhos para recuperar a conexão que perdemos ao entrar no mundo. Para muitos de nós, a busca para recuperar o que sentimos ter perdido estende-se ao ativismo social, à busca pelo despertar espiritual ou ambos. Na minha vida, a busca pela recuperação da totalidade e da conexão se estendeu tanto ao ativismo social, como às dimensões espirituais. No meu caso, experimentei o despertar espiritual ao passar pelo portal de fogo da atenção ao sofrimento relacionado à raça, sexualidade e gênero.
As palavras “despertar espiritual” evocam imagens de uma experiência além da vida comum. Podemos pensar no despertar espiritual como uma experiência que transcende este mundo ou que apaga todo o sofrimento. Podemos até desejar ter uma experiência extracorpórea ou outra experiência extrema que possamos chamar de despertar. O desejo de despertar espiritualmente é um dos grandes desejos humanos naturais, estando ao lado do desejo de experimentar o amor. No entanto, a maioria de nós não sabe verdadeiramente o que é o despertar espiritual.
Embora não tenhamos certeza do que realmente é o despertar, é provável que tenhamos certeza do que ele não é. Podemos sentir que ele não pode existir dentro do conflito, discussão ou dor. Podemos não sentir que o despertar espiritual é acessível onde há dificuldade, sofrimento ou privação. Muitos sentem que é quase certo que não pode ser encontrado no meio de lutas sociais relacionadas com raça, sexualidade e gênero. Alguns podem acreditar que a indignação, a ira e a raiva que motivam os movimentos de protesto apenas nos fazem “retroceder” ou nos afastar daquilo que é mais profundo nas nossas vidas.
Mas se simplesmente passarmos pelas fogueiras do racismo, do sexismo e assim por diante, porque nelas existem ilusões de separação, podemos estar deixando passar um dos portais mais amplos para a iluminação. É um erro de interpretação supor que adentrar as fogueiras da nossa existência pode não nos levar a experimentar as águas da paz. A profundidade reside, de fato, naquilo que vemos no mundo. O despertar espiritual vem de nossas vidas comuns, de nossas lutas diárias uns com os outros. Pode até surgir do medo e da raiva com as quais nós evitamos lidar. Os desafios de raça, sexualidade e gênero são exatamente as coisas que o caminho espiritual exige que atendamos para o despertar como aspirantes à paz.
A sacerdotisa Soto Zen, autora e poeta Zenju Earthlyn Manuel (Foto: Lion’s Roar/ Reprodução)
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