Créditos: Wellcome Library, London

Therigatha: canções das antigas mulheres

A seleção dos poemas foi feita por Lia Beltrão e Caroline Souza, preciosidades publicadas em edição da Revista Bodisatva


Por
Revisão: Fábio Rocha
Edição: Lia Beltrão e Caroline Souza
Tradução: Monja Coen Roshi e Monja Waryu

O Therigatha é uma coleção de 73 poemas do cânone da mais antiga literatura budista. As vozes das mulheres autoras dos poemas atravessaram milagrosamente o tempo. Os textos foram transmitidos oralmente durante seis séculos, antes de serem transpostos para a linguagem escrita no século I d.C., no Sri Lanka. Em páli, o idioma literário daquele tempo, Theri significa “monjas anciãs”, e gatha significa “canção” ou “poema”. 

Quatro destes poemas foram publicados na edição #29 da Revista Bodisatva, traduzidos pela monja Coen Roshi e sua discípula monja Waryu (Marta Lages). Monja Coen entrou em contato com esses poemas há cerca de 15 anos, em uma visita ao Zen Center de Los Angeles, onde ela foi ordenada, e decidiu trazê-los para o Brasil. 

Nas palavras da monja Wahô, também discípula da Monja Coen, “esses textos ficaram adormecidos” e, em 2011, quando a comunidade Zen fundada por Coen em São Paulo completou 10 anos, o Therigatha foi apresentado como peça. Mulheres da sangha, entre elas Wahô, interpretaram os papéis dessas primeiras monjas do caminho. 

“Ela sabia a pergunta que tinha quando chegou diante de Shakyamuni Buda e ela queria entrar na corrente, na linha de transmissão dos Budas ancestrais. Por isso, hoje eu posso ser monja; por isso, a minha mestra, monja Coen, pode ser ordenada”, diz Wahô, que batizou a sala de prática em São Paulo, onde oferece ensinamentos, de “Therigatha”. No altar, Mahapajapati ocupa lugar de destaque. 

Além de uma canção de Mahapajapati, seguem aqui canções de Sisupacala, Kisagotami e Patacara. Sisupacala era a mais nova das três irmãs de Sariputra que entraram no caminho da mendicância e atingiram grandes realizações. Kisagotami narra em seu poema a sua história, relativamente conhecida no Budismo: “ao não aceitar a morte do filho, recebo do Buda a tarefa impossível de encontrar uma casa onde a morte não estivesse presente”. Patacara vive um drama parecido, perdendo, além de filhos, seu marido e família de uma só vez. Diz sua biografia que ela vaga, completamente louca e nua, até encontrar-se com o Buda. As instruções que recebe a levam a tornar-se uma arhat naquela mesma vida. 

 

POEMA 1 

Canção de Mahapajapati 

Queremos que as Filhas das Filhas do caminho saibam:
Estávamos lá.
No principio.
Imagine que andamos cento e cinqüenta milhas!
Cento e cinqüenta milhas.
De pés descalços e cabeças raspadas.
Coberta de pó permanece em lamentação diante da porta de Buda em Vesali.
Não nos desviaremos disto.
Iremos em frente.
Olhai dentro: sois Buda.
Estávamos juntos.
Estávamos sós.
Poderíamos ter prosseguido caminhando.
Mas queríamos os ensinamentos.
Queríamos que a Sanga de Buda fosse completa.
Não poderíamos ser mantidas afastadas.
Seguiríamos nossos corações;
Escolheríamos nossos próprios caminhos.
Praticamos.
Realizamos.
Ensinamos.

Estávamos lá no princípio.
Estávamos lá.

 

POEMA 2

Canção de Kisagotami

Quando meu filho morreu, carreguei seu corpo sem vida em minha cintura, e fui de casa em casa, implorando algum remédio.
Como alguém tão vivo poderia estar tão frio?
Quem, se eu gritasse, me ouviria?
A morte me era estranha.
E eu me contenho. Reprimo o apelo do meu soluço obscuro.
Nem deuses, nem homens…
Um animal me adverte que para nós não há amparo neste mundo definido.
Resta-me quem sabe a árvore de alguma colina,
a rua de ontem e o apego de algum hábito que se afeiçoou e permaneceu.
… a solidão… o vento portador dos espaços cósmicos, a noite ternamente enganosa
que amplia meu vazio íntimo, tornando maior meu desamparo.
Os mortos precoces não precisam de nós.
Eles que se desabituam do terrestre docemente,
como de suave seio maternal.
Mas nós, ávidos de grandes mistérios, nós que tantas vezes só através da dor atingimos a feliz transformação, sem eles poderíamos ser?
Sou conhecida como a magra.
A pobreza me moldou assim, embora a minha família fosse consanguínea da família real.
O jovem príncipe Sidarta era meu primo.
Quando me casei com um homem de fortuna considerável e dei a luz a um filho
homem, eu, a pequena Kisa que viera do nada, comecei a ser respeitada.
Mas meu filhinho morreu.
Enlouqueci com pesar.
Um velho homem me levou até o Buda.

 “Vá e traga uma semente de mostarda amarela de uma casa onde ninguém tenha morrido.”
— Sim!
Isto irá me salvar.
Este remédio trará meu filho de volta à vida.

Fui de casa em casa em busca de tal milagre, mas não pude encontrar uma única casa que a morte não tivesse visitado. Eu vi o que era verdade. Minha sanidade voltou.

— “Minha criança! Eu achava que a morte havia caído sobre você somente.
Mas não, ela é comum a todos.

Levei seu corpo para a floresta e o deixei lá.
Uma semente de júbilo que tomba imatura.
Agora, porém, em meio à tempestade, desabrocha em mim a árvore do júbilo.
Minha lenta árvore do júbilo.
Profunda é a dor, mas a alegria é ainda mais profunda.
A dor diz: Passa! Mas toda a alegria quer eternidade, quer profunda eternidade.

Vim para a grande paz.
Olhei no espelho do Darma.
A flecha saiu.
Deixei cair meu fardo.
O que tinha de ser feito foi feito.
A terra é ampla e aberta, tem a capacidade de receber e transformar.”

 

POEMA 3

Canção de Patacara

Noutro dia, ao lavar meus pés,
Vi a vertente d’água fluir
De volta ao coração da terra.
Eu perguntei:
“para onde retorna a água?”

Penetrando de volta na terra, percebi um repentino vislumbre
Sobre a natureza impermanente de todas as coisas.

Dei a luz aos meus dois filhos na floresta, longe de todos a quem amava e perdi meus dois filhos e marido na floresta.
Meu filho recém-nascido foi tirado das minhas mãos por uma enorme águia com suas poderosas garras, minha outra
criança foi levada pelo rio, meu marido, na busca de abrigo, foi atacado por uma serpente.
Fui incapaz de salvar qualquer um deles.  

Minha mente perdeu os sentidos.
Caminhei em círculos, insana, estava como cega.
Andei por estes caminhos quase sem roupa, rasgada, não queria mais viver.
Como conseguir sorrir outra vez?
Como recuperar minha paz e alegria tanto no presente como no futuro?

 Perguntei:
“Para onde retorna a água?”
Contemplando em sereno silêncio,
Concentrei-me,
Como se treina um bom cavalo.
Brilhando no pavio de uma lamparina,
Concentrei minha mente e corpo.
O tempo passou rapidamente.
A lamparina ainda brilha.
Peguei uma agulha
E empurrei o pavio para baixo.
Instantaneamente, a luz se extinguiu,
Tudo submergido na escuridão.
A chama fora extinta,
Mas minha mente brilhava.
Minha mente se livrara de toda escravidão
Quando apareceu a estrela matutina.

 

POEMA 4

Canção de Sisupacala

Como meu irmão, Sariputra, tornei-me renunciante e descobri a luz interior.
Restam poucos traços de mim: este poema.
O mundo inteiro está queimando.
O mundo inteiro está em chamas.
O mundo inteiro está em fogo.
O mundo inteiro se agita.
Buda ensinou o caminho insuperável.
Pessoas comuns não o praticam
E nada há que se possa comparar a ele.

O fogo queima todas as coisas, sejam puras ou impuras, sem apego nem aversão.
O fogo tem a capacidade de queimar, purificar e transformar.


Republicamos a seleção de poemas da coleção Therigatha, escolhidos por Lia Beltrão e Caroline Souza, com tradução da monja Coen e sua discípula, monja Waryu. As vozes das mulheres autoras dos poemas atravessaram milagrosamente o tempo. Este texto foi publicado na Revista Bodisatva #29 – O Som Feminino do Darma, no verão de 2018. Para adquirir a revista, acesse aqui.


Matéria publicada no site em 09/02/2025
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