A Prática do Darma

Um dos grandes tesouros da Revista Bodisatva, publicado no outono de 1991


Por
Transcrição: Wimerson Gomes

No dia 3 de dezembro de 1988, uma centena de pessoas do Brasil e da Argentina reuniram-se no Rio de Janeiro, a convite da Ordem Monástica Karma Teksum Chohorling, para ouvir a segunda de uma série de três palestras de Sua Eminência Jamgon-Kongtrul Rinpoche. Estas são as palavras de Sua Eminência, simultaneamente traduzidas do tibetano para o inglês por intérprete tibetano, vertidas para o português pelo Centro de Estudos Budistas de Porto Alegre, gentilmente revisadas por Ani Lama Karma Tsultrim Palmo (Marta Cavalcanti) e publicadas integralmente por “Bodisatva”. 


Este pode estar sendo o primeiro seminário maior sobre budismo no Brasil. Aproveito a oportunidade para saudar a todos neste evento especial. Gostaria de começar falando dos efeitos benéficos deste encontro para todos vocês. Este pode ser o início, em suas vidas, de benefícios inconcebíveis.

O propósito de compreender e praticar o budismo é trazer a experiência da mente totalmente iluminada. Quer dizer, o propósito não é o jogo de palavras, mas sim levar a um estado de bem-estar, à eliminação do sofrimento e da confusão; é ser capaz de beneficiar-se e de trazer todos à iluminação completa.

Para fazermos isto adequadamente precisamos dos meios adequados. As condições são especificamente as três sabedorias. Em primeiro lugar devemos desenvolver a sabedoria de ouvir. Isto tem a ver com entender a forma correta, ter a compreensão correta das coisas. Para isto é necessária a explicação da visão correta pelos professores e amigos espirituais. Sem isto, não se pode seguir o caminho adequadamente. Não é possível simplesmente adentrar o caminho correto, mas seguir o caminho correto é precedido pela explicação do caminho correto e da visão correta.

A visão correta é refletir sobre a percepção dentro da natureza real e não dentro da natureza condicional das coisas. Muitas pessoas pensam que devem praticar via livros, segundo a ideia que têm a partir deles. Isto pode ser frustrante, pois as palavras apenas é que são traduzidas. Muitos são os níveis de compreensão e interpretação e o leitor não os percebe.

A totalidade do ensinamento do Buda é conhecida como as quatro mil coleções de ensinamentos do Buda. Esta totalidade de ensinamentos não dá a medida do que o Buda sabia, mas do que os discípulos necessitavam em suas variadas mentalidades.

Para nos tornarmos livres de hábitos, especialmente com respeito aos três venenos (agressão, apego, ignorância), os ensinamentos não são únicos. Alguns se dão conforme a verdade relativa.

A razão para ensinar o Darma segundo a verdade relativa é por ser o único nível no qual se pode falar. Quando nossa realidade não está além das relatividades, falar o que está além significa apenas palavras sem sentido para nós.

Alguns ensinamentos são apresentados como verdade absoluta. Se não existe a oportunidade de receber esclarecimentos certos e diretos, tente entender via livros e literatura; quando estes ensinamentos são aí apresentados como absolutos, vá ao relativo, e vice-versa.

Desde Buda Sakiamuni até hoje há uma cadeia ininterrupta de transmissão de significado dos ensinamentos. Esta cadeia ininterrupta é mantida pelos professores e amigos espirituais.

Para ser capaz de conectar-se a esta cadeia contínua, é necessária a transmissão direta, bençãos e o ambiente desta transmissão especial. É assim que alguém desenvolve a sabedoria de ouvir.

Ao mesmo tempo tem igual importância a sabedoria de entender. Ouvir algo não é saber isto. Acreditar, sentir-se confortável, etc., com respeito ao que se ouve não é entender o que se ouve. É necessário refletir sobre o que se ouve, certificar-se que se entendeu o que se ouviu, e ter dúvidas inteligentes, a inteligência crítica. Normalmente temos o conceito de que ter dúvidas é prejudicial. Paranoia, no entanto, não é favorável. Alguns se deixam levar pela dúvida, são duvidadores profissionais. Dúvidas inteligentes são possíveis. O que não entendemos não devemos aceitar, mas duvidar, questionar, pesquisar. É necessário ter confiança em nosso entendimento.

Se seu entendimento é desafiado, você deve ter a confiança de expressar o entendimento espontaneamente. Então, através do desenvolvimento da sabedoria da compreensão adequada, quando se usa o intelecto, manifesta-se a sabedoria da meditação.

A sabedoria da compreensão deve fundir-se com a sabedoria da intuição e com a sabedoria da prática (ou da meditação), constituindo as três sabedorias.

Mesmo com a busca sincera, a abordagem de cada um não é caracterizada por estas três sabedorias. Não devemos ficar satisfeitos pelo fato de estarmos nos dedicando à espiritualidade. Bom senso e inteligência são fundamentais. As três sabedorias nos permitem explicar os diferentes aspectos dos ensinamentos, como os 84 mil ensinamentos do Buda, que incluem os três veículos ou três caminhos.

O que é essencialmente apresentado pelos três veículos é como se experiencia sofrimento, ou seja, como, contrariamente ao que queremos, vivenciamos ignorância, confusão e sofrimento.

Como nossos hábitos, a confusão se tornará parte de nossa realidade. Nada de novo ocorre além da repetição destes hábitos, mesmo que todos nós tenhamos capacidade de experienciar a mente totalmente iluminada, a mente do Buda inerente.

Outro ensinamento do Buda Sakiamuni é que todos os seres, sem exceção, podem experimentar a mente de Buda. E muitas razões são apontadas para isto. Buda Sakiamuni ensinou também como a natureza-vazia-de-todas-as-coisas tudo permeia, como isto pode então revelar-se no despertar. É o mesmo eu dizer que não há diferença entre o fruto e a semente.

Mágicas não resolvem

Qualquer ser sensorial pode chegar à iluminação. Várias são as situações cármicas dos seres. Nem todos devem obrigatoriamente gozar das mesmas facilidades, mas todos podem chegar à iluminação. Porque nossa realidade é a realidade das coisas externas confusas não reconhecemos nossa potencialidade em nós mesmos. Não damos a nós mesmos espaço para sua manifestação. Há um dito muito oportuno: nossas pestanas estão tão próximas que não as vemos.

O potencial da mente iluminada está tão próximo que não o apreciamos devidamente. Temos potencial para experimentar a natureza de um Buda e vislumbrarmos este potencial. Estes vislumbres, quando se dão, não são percebidos devido à confusão.

A confusão tornou-se tão abrangente que só a ela vemos, nada mais. No entanto, a obscuridade nunca extingue o potencial, a natureza de Buda. O potencial permanece intocado!

Nossa capacidade de experienciar a mente iluminada é como o sol: brilhante e claro, emana calor, mas quando o sol é tapado pelas nuvens o brilho e calor desaparecem, mas isto de fato não se dá. Sopradas pelo vento as nuvens afastam-se e revelam novamente o sol.

Esta experiência de uma mente iluminada é a da natureza búdica inerente a todos nós, não é chegar a um lugar concreto. Experienciar uma visão sem distorções é iluminação e acontece onde estamos. Muitas pessoas alimentam na mente o desejo de iluminarem-se em três dias. Isto francamente não é assim. Três meses também não, e nem alguns anos. Nem sempre é uma viagem progressiva. Mágicas e truques também não resolvem. O avanço exige a mente séria, sã e inteligente. Não é um tipo de fantasia. É experiência espiritual profunda.

Nossas obsessões habituais não são fáceis de eliminar. Os tipos habituais de obsessão são muito sofisticados. Não é semelhante a um obstáculo material como um véu que puxamos ou pedra que afastamos. A obsessão habitual e acumulada pela mente e tem que ser dissolvida pela mente.

Quaisquer que sejam os hábitos acumulados eles vêm de nosso apego. Para eliminarmos isto, precisamos de disciplina, vontade, perseverança e aplicação. É como o hábito de fumar, ou usar álcool, ou tomar drogas. Uma vez iniciado um processo, torna-se muito difícil pará-lo. O acúmulo de influências negativas desde o nascimento, e de muito antes, torna-se tão inerente que nos é muito difícil identificá-las e largá-las.

Nossos obscurecimentos, no entanto, vêm desde tempos sem início, e por isso, mesmo sendo indesejáveis, têm tal força. Não importa, porém, quão fortes sejam e quão longa e arraigada sua história passada.

Pelo potencial de nossa essência da mente iluminada, devido ao fato de que as obscuridades não fazem parte da nossa essência, e da verdade do efeito do antídoto correto, pode-se chegar à libertação delas.

Isto, no entanto, acarreta responsabilidade de nossa parte, que se exerce pela confiança em nosso potencial de vitória, pelo reconhecimento da importância de perseverar na iluminação e pelo desenvolvimento da estabilidade em uma mente clara, atenta e profunda.

S. Em. Jamgon Kongtrul Rinpoche. Foto: Arquivo CEBB.


Perguntas da Plateia

P — Gostaria de saber um pouco mais a respeito da profecia de que o budismo viria para o Ocidente.

R — Nos ensinamentos do Buda, nos sutras, encontram-se profecias de que os ensinamentos do budismo indiano e particularmente o Vajraiana se tornaria mais difundido, especialmente nos tempos degenerados. Tempos degenerados é uma expressão que não se refere ao tempo mesmo, mas à época em que as neuroses se tornam muito mais intensas, quando as emoções estão à tona: um tempo como este. Este tempo agora pode ser chamado de tempo de degenerescência devido aos nossos hábitos, confusão e insatisfação. E então, devido a isso, mesmo o grande avanço tecnológico não nos ajuda, mas, ao contrário, prejudica. Isto se dá porque estamos confusos, como nossa visão invertida e confusa.

De certo modo é um tempo muito mais desvantajoso, mas de outro modo, as oportunidades existentes o transformam em uma época tão boa quanto outra qualquer.

A profecia fala da ida do Darma ao Norte e então ao Leste e Oeste, sendo um tempo excelente para nós. Vejam, por exemplo, o que ocorre no Tibete. A tomada chinesa do Tibete prejudicou os aspectos culturais e espirituais, mas o infortúnio levou o budismo tibetano ao Oeste. Caso isso não tivesse ocorrido, o budismo estaria ainda fechado no Tibete.

A profecia de Padmasambava diz que no tempo da tecnologia (pássaros com asas de metal, cavalo com rodos e o povo do Tibete espalhado como formigas) os ensinamentos budistas se expandiriam pela terra dos homens de faces vermelhas.

P — Quanto à realidade material dos elementos…

R — No contexto das coisas relativas, todas as coisas têm realidades separadas, mas, sob o ponto de vista da realidade absoluta, estão todos conectados e têm a mesma essência natural.

P — Ser e não ser são o mesmo?

R — Quando unimos duas coisas opostas e dizemos que são o mesmo, está errado.

P — Por que é boa a mente iluminada, por que é bom o homem e por que é bom o Buda?

R — O “bom” da experiência da iluminação é estar livre da confusão. O termo Buda no Tibete significa “Sangye”. “San” significa purificado, clarificado de todas as obscuridades e confusões. A sílaba “gye” significa realização e florescimento do conhecimento completo, ou a realização da dupla sabedoria. A sabedoria que tudo permeia. Ter a visão profunda da aparência e realidade das coisas e ao mesmo tempo ter o conhecimento e sabedoria de todas as coisas — o que parecem e o que são.

P — Quanto ao significado de “amigo espiritual”…

R — Na viagem espiritual esta ligação é da maior importância. O termo “espiritual” significa já ter passado pela experiência de libertação do sofrimento e deter o conhecimento e compreensão de como se chega a isto. Amigo, no sentido de saber como dividir com os outros esta experiência e ter grande vontade para isto. É um amigo a quem se pode entregar completamente e que se move para transmitir esta experiência de libertação.

Muitos são os tipos. Um amigo estudioso pode conhecer intelectualmente, mas não vivenciou a experiência completa. Muitos podem aprender com amigos assim. Um Bodisatva tem conhecimento, visão e realizações. A relação traz estímulo, inspira, ajuda pelo impacto direto e faz frutificar nossas qualidades latentes. Um Buda totalmente iluminado como amigo espiritual nos auxilia passo a passo, pela experiência, de acordo com as nossas necessidades e avanços peculiares.

O tipo de auxílio que vamos receber depende de como nossa visão já avançou e nós mesmos já compreendemos e assimilamos ou somos realmente capazes de ajudar a entender.

O mestre no budismo Mahaiana é chamado de “amigo espiritual”, em tibetano chama-se “lama” e em sânscrito “guru” — o que é capaz de introduzi-lo no significado da verdade absoluta. No relacionamento com o amigo espiritual, ele deve ser visto como um médico. Nós somos os pacientes e os ensinamentos são os remédios que nos libertam de nossas confusões e tendências neuróticas. Este é o início de um grande evento em suas vidas. Aprendam o mais que possam com quem sabe mais do que vocês. É como dizer, onde há água aparecerão cisnes. Depende da água que estamos criando.

P — O que é loucura?

R — Loucura é não ter nenhuma consciência do que se está fazendo. Não importa quão raivoso se esteja, entendendo que se está raivoso, não se está louco. A raiva é energia de hábito.

P — O louco está mais longe da iluminação?

R — Sim, pode-se dizer isto. Diz-se que não há maior perigo do que a raiva e o ódio, mesmo no sentido do prejuízo próprio. Também se diz eu não há maior virtude do que a paciência.

P — É possível ajuda externa efetiva, como a do Buda Amitaba, para abreviar a iluminação?

R — Sim, existem várias ajudas possíveis além da própria prática. Como integrar esta ajuda na própria prática é a questão. Na tradição Mahaiana e Vajraiana, Budas e Bodisatvas ajudam tradicionalmente através de várias divindades. Avalokitesvara, por exemplo, ou Tcherenzig, como é conhecido no Tibete o Buda da compaixão infinita.

No Vajra, a conexão do estudante como mestre é muito enfatizada. É muito importante que tipos de emoção e devoção o praticante pode ter com o guru na prática e visão pura que o praticante venha a ter.

Podemos ter grande avanço em nossa prática espiritual com as bênçãos e inspirações dos gurus e Bodisatvas. Usando isto, em uma única vida se pode chegar à iluminação. Com esforços apropriados, em algumas vidas se chega.

Nesta tradição Kagyupa, se diz que a experiência da mente iluminada é a experiência do momento. Se, quando o guru dá a instrução, nossa mente for capaz de manifestar-se como um recipiente ou vaso apropriado, há a possibilidade de ocorrer a iluminação instantânea. Para que a pessoa torne-se um “vaso” apropriado, a purificação é necessária.

P — Qual o espaço de Deus?

R — Na tradição budista falamos de seis níveis de experiência, estados psicológicos de existência onde se renasce. Um deles é o dos deuses. Quando você fala de Deus, o que é para você? Está limitado ao eternalismo e niilismo? Se for assim, não vai além da experiência mundana. Se transcende eternalismo e niilismo, então como será chamado? Absoluto? Verdade? Natureza búdica? Natureza essencial das coisas?

P — Qual o nosso papel no processo atual da humanidade?

R — O benefício que se poderá fazer depende de sua mente, motivação e inclinação. Se não tiver vontade, nada irá acontecer. Terá que ter inclinação, ninguém determinará isso para você.

P — Iluminação como objetivo e meditação como método. Não há aí um problema, o do desejo?

R — No início, de fato, haverá isso. Mas se sua aplicação à prática está unida à correta compreensão, o objetivo desaparece por si e a própria iluminação se desvanece. O Buda Sakiamuni ensinou que sem entender a realidade relativa não há como entender a realidade absoluta, e avançando na compreensão, a realidade relativa não funciona como empecilho.

P — De onde vim, e para onde vou?

R — Onde está o eu? Ache o eu. O Buda é onisciente e nunca disse ter encontrado o eu, ou ego. Não há razão para ansiedade. Isto vem quando acreditamos e procuramos sem encontrar. Você não precisa crer em sua existência ou não-existência. Procure isto de forma analítica, não-dual. Quando você procura e não encontra o eu, a atividade do seu corpo continua. Bem como a da sua mente. Isto posso garantir. Tudo vai se tornar até mais simples quando tiver só seu corpo e mente para lidar.

P — Meditar é consciência ou fé?

R — Nem uma nem outra. É um ato consciente de estar trabalhando com a mente.

A atividade de sentar não é glamourosa nem poética, é muito simples. Quando, meditando, o cosmos se abrir a você, não se distraia com o cosmos, volte à sua respiração(risos).

Vipassana é o estágio em que se aprofunda mais e mais na compreensão da natureza de nossa própria mente. Seu avanço nisto se dá imperceptivelmente, através da prática e não por objetivos. Qualquer objetivo dificulta. Os vislumbres não serão como raios ou arco-íris que surgem. Quando se fala de mente e consciência, não se quer significar algo concreto e localizado. Corpo físico é matéria. Quando se separa a mente do corpo, chamamos isto de morte, mas a consciência mental não é matéria e não pode ser destruída, está além de nascimento e morte.

P — O cérebro é a mente ou o corpo?

R — A diferença é que o corpo pode ser obstruído, a mente não. Uma vê a obstrução, o outro não. Para sairmos daqui precisamos da porta, mas a mente não tem esta dificuldade. Nossas obsessões atuais não são fáceis de eliminar. Os tipos habituais de obsessão são muito sofisticados. Não é semelhante a um obstáculo material como um véu que puxamos ou pedra que afastamos. A obsessão espiritual é acumulada pela mente e tem que ser dissolvida pela mente. Precisamos de disciplina, vontade, perseverança e aplicação. Nossos obscurecimentos vêm destes tempos sem início, e por isso, mesmo sendo indesejáveis, têm tal força.


O texto acima foi publicado originalmente na Revista Bodisatva nº2, em 1999 . 


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