Nesta carta, Trungpa Rinpoche apresenta a meditação shamata praticada nos retiros de Dathun por meio de uma linguagem surpreendentemente precisa e poética
Em 1973, o grande mestre Chögyam Trungpa Rinpoche introduziu um novo formato de retiro com duração de 1 mês chamado de Dathun, o qual ele recomendou para todos os seus alunos. Abaixo, traduzimos a Carta do Dathun, na qual Trungpa Rinpoche explica os fundamentos da meditação shamata praticada nesses retiros com uma precisão e habilidade linguística que são características do seu método de ensino.
O estilo de meditação shamata é particularmente recomendado pelo Buda. Tem sido o caminho para meditantes iniciantes por 2500 anos. Para descrever a meditação, podemos usar a expressão “tocar e ir”. Você está em contato, está tocando a experiência de estar lá, realmente estar lá—e então você deixa ir. Isso se aplica à consciência sobre a sua respiração quando sentado na almofada e também além dela, à consciência sobre a sua vida diária. O ponto de “tocar e ir” é que tem um senso de sentir. O ponto de “tocar” é que há um senso de existência, de que você é quem você é.
Quando você senta na almofada, você sente que está sentado na almofada e que realmente existe. Você está lá, está sentado; você está lá, está sentado. Esta é a parte do “tocar”. A parte do “ir” é que você está lá—e você não se agarra a isso. Você não sustenta seu senso de estar, mas solta até mesmo isso. Tocar e ir.
Quando medita, sua postura deve ser correta. Recomenda-se que você sente de pernas cruzadas numa almofada de meditação, em vez de permanecer em qualquer postura que achar conveniente. Você senta de forma apropriada. Sua coluna está ereta; sua respiração não está tensa; e seu pescoço não está tenso. Então sente-se: ereto, de pernas cruzadas. Se necessário, você pode mudar sua postura e se reacomodar. Não faz sentido ficar se punindo e tentando se pressionar constantemente.
Quando você se senta corretamente, você está lá. Sua respiração acompanha naturalmente. Já notei que quando as pessoas veem algo interessante acontecer num filme, todas elas sentam-se numa postura perfeita. Então, esse é um exemplo para nós. Está acontecendo, é a sua vida, e você está ereto, e está respirando. A prática é muito pessoal e direta.
A atitude em relação à respiração, na meditação, é se tornar a respiração. Tente se identificar completamente em vez de observá-la. Você é a respiração, a respiração é você. A respiração está saindo pelas suas narinas, saindo e se dissolvendo na atmosfera, no espaço. Você emprega uma certa energia e esforço nisso. E então, em relação à inspiração, você deveria tentar deliberadamente absorver as coisas? Não é recomendado. Apenas boicote a sua respiração, boicote sua concentração na respiração. À medida que o ar sai, deixe-o se dissolver, apenas abandone-o, boicote-o.
Assim, a inspiração é apenas espaço. Fisicamente, biologicamente, nós inspiramos, é óbvio, mas isso não é grande coisa. E aí a respiração sai—esteja com ela. Ela sai, dissolve-se, lacuna; ela sai, dissolve-se, lacuna. É uma constante abertura, lacuna, abandono, boicote. Boicote, neste caso, é uma palavra significativa. Se você se agarra à sua respiração, está se agarrando a si mesmo constantemente. Uma vez que começa a boicotar o final da exalação, aí não resta mais nenhum mundo, exceto que a próxima exalação recorda-o de se sintonizar. Então você se sintoniza, dissolve, sintoniza, dissolve, sintoniza, dissolve.
Pensamentos surgem no meio da prática: “Como eu deveria fazer minha ioga?”, “Quando posso escrever outro artigo?”, “O que está acontecendo com os meus investimentos?”, “Odeio o fulano que foi tão horrível comigo”, “Eu ia amar estar com ela”, “Qual é a história dos meus pais?” Todo tipo de pensamento começa a surgir naturalmente. Se você tem muito tempo para sentar em meditação, infinitos pensamentos acontecem constantemente.
A abordagem para lidar com isso é, na verdade, abordagem nenhuma. Reduza tudo ao nível do pensamento em vez de conceitos. Normalmente, se você tem conversas mentais, você as chama de seus pensamentos. Mas se suas conversas são profundamente emocionais, você as confere um prestígio especial. Você acha que esses pensamentos merecem o privilégio especial de serem chamados de emoção. De certo modo, no âmbito da mente verdadeira, as coisas não funcionam assim. É tudo apenas pensar: pensar que você está excitado, pensar que você está bravo. No que diz respeito à prática de shamata, os seus pensamentos não são mais considerados V.I.P. enquanto você medita. Você pensa, você está sentado, você pensa, você está sentado, você pensa, você está sentado. Você tem pensamentos, e tem pensamentos sobre os pensamentos. Deixe que aconteça dessa forma. Chame-os de pensamentos.
E então, um “tocar” posterior é necessário. Estados emocionais não deveriam ser simplesmente reconhecidos e empurrados pro lado, mas, de fato, observados. Durante a meditação, você pode passar pela experiência de sentir-se completamente agressivo, bravo ou luxurioso, ou o que quer que seja. E você não vai dizer à sua emoção, educadamente: “Olá, que bom ver você de novo. Tudo bem? Quero voltar pra respiração, tchau.” Isso seria como encontrar um velho amigo do passado e, em vez de parar para conversar, dizer: “Com licença, preciso pegar o trem para o meu próximo compromisso”. Na abordagem da prática de shamata, você não se desconecta simplesmente. Você reconhece o que está acontecendo, bem como olha mais de perto. Você não está se dando uma chance de escapar dos momentos constrangedores e desagradáveis, dos momentos vergonhosos da vida. Pensamentos desse tipo podem surgir como memórias do passado, a experiência dolorosa do presente ou perspectivas futuras dolorosas. Todas essas coisas acontecem: experiencie-as e observe-as, e só então retorne para a respiração. Isso é importante!
Se você sente que sentar e meditar é uma forma de evitar os problemas, então este é precisamente o problema. Na verdade, a maioria dos problemas da nossa vida não resultam de sermos pessoas agressivas ou luxuriosas. O maior problema de todos é que queremos reprimir as coisas e colocá-las de lado, e assim nos tornamos especialistas em enganação. Este é um dos principais problemas. A prática de meditação deveria desmascarar qualquer tentativa nossa de desenvolver uma atitude de engano sutil, sofisticada.
Por fim, na meditação há um senso de individualidade, um senso de haver uma pessoa. Na verdade, nós estamos aqui—nós existimos. Mas e a não existência e a ausência de ego que o budismo tanto enfatiza? E o materialismo espiritual—desejarmos obter felicidade e satisfação por meio da prática? Não vamos acabar nos perdendo, dessa forma, numa armadilha? Talvez sim. Talvez não. Não há nenhuma garantia, já que não há ninguém que garanta nada. Entretanto, é possível que você apenas faça esta técnica, simplesmente. Eu sugiro que você não se preocupe com segurança futura, mas apenas faça isso, diretamente, simplesmente.
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