Revisitamos o acervo da Bodisatva para inspirar, novamente, os nossos leitores com este ensinamento do Lama Padma Samten
Neste encontro, gostaríamos de introduzir o tema da arte como um dos veículos importantes da expressão da escola e, naturalmente, da arte do Darma que é muito rico em manifestações artísticas. A arte tem uma conexão muito próxima com a nossa proposta. Podemos ver aqui o exemplo do templo e do altar, todos pintados. As pinturas, como a Roda da Vida, são uma expressão muito mais profunda do que se escrevêssemos um livro a respeito do que elas exprimem.
Quando escrevemos um livro, ele está terminado, as palavras foram escritas e estão com uma determinada interpretação, enquanto que uma imagem oferece um conjunto de ensinamentos para cada pessoa que olhar. Na medida em que a pessoa vai mudando a sua experiência interna, as imagens começam a revelar outras coisas.
Isso é maravilhoso e sempre foi usado dentro da abordagem do budismo tibetano. Diz-se que a Roda da Vida foi uma descrição do próprio Buda Sakiamuni e, depois, se transformou num presente de um rei para outro. Quando recebeu a Roda da Vida como um presente, o outro rei atingiu a iluminação. Ou seja, atingiu a iluminação pela arte.
Isso é muito profundo e enraizado dentro da cultura budista. No Tibete é mais utilizado ainda e de uma forma extraordinária. As cerimônias são uma espécie de palco. Certa vez, observando uma cerimônia de Druptchen (cerimônia com várias sessões longas de meditação, que inclui o uso de instrumentos musicais, rituais, oferendas e danças sagradas) no templo do Chagdud Gonpa Khadro Ling, uma aluna se deu conta de que o Druptchen inteiro era um palco quadrado, onde todos eram espectadores e atores.
Na verdade, o único espectador era Sua Eminência Chagdud Tulku Rinpoche, que ficava só olhando a cara dos atores, se estavam indo bem ou não, com todas as suas fragilidades: alguns se achando o próprio personagem, outros sofrendo por isso e não podendo ser o mero ator, que gostaria de fazer outras coisas, mas estava preso ao personagem. E a atmosfera era envolvente, a cena toda, com seus sons, múltiplos instrumentos. As pessoas estavam literalmente vestidas nos seus personagens, com os chapéus, roupas, adereços.
A pessoa começa a se confundir com o próprio personagem. Ela não só vê a arte ao redor, mas meditando a vida e o processo de educação no budismo faz visualizações que compõem um cenário mais amplo. Por vezes, elas efetivamente se confundem com os cenários, os personagens passam mal, e sofrem “pitis” ou mais modernamente, “nhams” (perturbações que surgem da prática intensa de meditação). Abstraindo isso, quando estamos num cenário Vajrayana com aquele palco, podemos facilmente chegar à conclusão de que tudo é uma construção. No entanto, quando saímos desse ambiente, descobrimos que a construção segue operando, mas é uma outra construção!
A prática Vajrayana é muito útil para percebermos que o cotidiano também é arte, também é encenação. Somos muitos personagens em diferentes momentos e o budismo, como um todo, é o caminho que nos leva a poder exercer os múltiplos personagens sem prisão a nenhum deles, reconhecendo incessantemente o fato de que temos a natural liberdade do ator. Só que esse ator também é desconhecido. Precisamos conhecer os personagens, conhecer o ator de modo muito profundo, e descobrir como se dão as relações entre o ator e o personagem, especialmente como o ator, que é livre, consegue ficar preso nos personagens e sofrer efetivamente a situação deles. Quando descobrimos isso e ultrapassamos a prisão. Esta é a sabedoria.
Especialmente o budismo e o CEBB em particular, tem esse foco de tomar o cotidiano, ou seja, a cena que vivemos com seus múltiplos personagens como um instrumento perfeito e inteiro, onde não falta nada para podermos encontrar a realidade sobre o ator, a realidade sobre o personagem e sobre a ligação do ator e do personagem. Como o personagem fica vivo repentinamente, de onde brota essa vida e a identificação com o personagem; como surge a sua dor e, finalmente, como nos liberamos da confusão, da identificação e da dor, e continuamos com a capacidade de acionar os personagens, sem ficarmos presos a eles.
Esse aspecto tem uma nomenclatura própria. O aspecto mais profundo do ator é a vacuidade, é o fato de que ele é livre. Dentro do ator, além da vacuidade, temos a luminosidade, a capacidade de construir os papéis, os cenários, nos sentir em vários lugares. Aqui, por exemplo, estamos dentro do templo. No entanto, se vemos como um templo, isso já é extraordinário, porque poderíamos ter outras visões nesse local. Mas o fato de o reconhecermos como um templo significa que temos uma região atrás na nossa mente, uma paisagem interna sutil, e quando nossos olhos batem nas coisas, vemos este local como um templo.
Essa dimensão sutil é extraordinária. É uma ação extraordinária do próprio ator. Ele se identifica tanto com o seu papel que faz coemergir o universo ao redor, inseparável da sua própria condição de personagem. Como personagens, fazemos coemergir as aparências como o templo.
Coemergência é uma expressão que se usa no budismo. Com isso, vemos que a arte tem tudo a ver com o nosso movimento. Assim, imagino que a escola pode utilizar a arte como um meio de acessar a sabedoria, que é ultrapassar todos os cenários e atores, identificações e surgimentos. Utilizar isso não como um problema, mas como uma expressão perfeita de todo o aspecto sutil. Isso significaria tomarmos a realidade comum como um caminho para a lucidez.
Temos as etapas de Visão, Meditação e Ação como o nosso treinamento. Não precisamos de nada mais além da própria realidade comum para entender como ela surge e onde estão as liberdades. Isso é o que chamamos de Visão. Meditação é quando fazemos exercícios específicos para reconhecer tudo isso e mantermos esse ponto de visão. E a Ação é quando, tendo isso enraizado, somos capazes de nos movimentar no mundo usando essa sabedoria. Ela nos permite desenvolver recursos que usualmente não são considerados possíveis.
Se utilizarmos uma imagem, seria como um avião voando a mil metros, muito pesado, e não consegue subir. Na frente dele tem uma cadeia de montanhas muito alta. Sabemos que o avião não vai poder subir, então rezamos para que, enfim, as montanhas se afastem um pouco para ele poder passar. Como as montanhas são o cenário, elas se abrem e passamos! Temos essa possibilidade, quer entendamos ou não! Essencialmente, isso quer dizer que as circunstâncias externas não são fixas.
Muito recentemente, no caso da Escola Caminho do Meio, também tínhamos montanhas no horizonte e não víamos como passar. Aquilo que parece fixo, na verdade, não é. Olhamos e tentamos produzir uma transformação do que considerávamos inicialmente como fixo. Esses são recursos que vêm a partir da noção de que a realidade coemerge com nossos olhos. Assim, temos o recurso de ajudá-la a coemergir não só com nossos olhos, mas também com os olhos das pessoas em geral.
Nossa sociedade como um todo e nossa cultura nesse momento são como um avião voando baixo em direção a várias montanhas. Vamos conseguir ultrapassar os obstáculos, ou não vamos? Com certeza, nossa vitória não virá pelo poder do avião subir. Não estamos precisando de mais tecnologia, de mais poder, precisamos afastar as montanhas. Ou seja, a realidade pode ser transformada, pode ser olhada com outros olhos. E uma forma de olhar a realidade com outros olhos é imaginar que agora é um tempo especial no qual poderemos fazer as transformações necessárias, internas e externas, para que a humanidade atinja outro patamar.
Não é que tenhamos obstáculos verdadeiros, mas uma forma de visão chega ao limite. Vamos alterar as montanhas de tal maneira que possamos viver de outro modo. Esse é um recurso. Se pensarmos que as montanhas são fixas, então estamos perdidos. Olhamos tudo como uma impossibilidade.
Estamos num tempo em que as montanhas se movem. Por exemplo, a seriedade do próprio pensamento econômico, que parece lidar com coisa sólida, revela o aspecto artístico da realidade. Aquilo que parecia, no cenário econômico, uma montanha fixa ou uma cadeia de montanhas fixas, onde as coisas têm valor econômico estabelecido e operando, repentinamente aquilo se transforma. E quando as pessoas olham, o cenário mudou, o valor econômico mudou e as coisas simplesmente afundam ou tomam outro rumo.
Tivemos essas grandes crises econômicas como mudanças de atribuição de valor das coisas que estão diante de nós. De onde vem o valor econômico? O valor econômico é parecido com arte. Olhamos para as coisas e dizemos: “Que bonito!”, “Ah! Isso vale!” Ou, de repente, podemos olhar e dizer: “Isso não vale!” Pronto! O valor econômico se foi. O valor econômico e a arte são muito próximos.
Por que a arte está em todas as coisas? Porque ela coemerge com quem olha. A arte é dinâmica, não é alguma coisa fixa em algum lugar do mundo. A arte é uma expressão perfeita como instrumento para revelar essa natural realidade sobre as coisas. E quando aprofundamos nosso olhar sobre isso, desenvolvemos muitos métodos em Visão, Meditação e Ação prática no mundo.
O texto acima foi publicado originalmente em dezembro de 2011 no site da Bodisatva. Atualizado por Stela Santin em julho de 2017.
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