Ilustração: Joana Ludwig

A Casa de Banho de Kongshi

A jornada de Kongshi Daoren em busca da liberdade espiritual


Por
Revisão: Cristiane Schardosim Martins
Edição: Carol Franchi
Tradução: Gabriel Sardeto

Esse trecho faz parte do livro The Hidden Lamp: Stories from Twenty-Five Centuries of Awakened Women¹, uma compilação maravilhosa de ensinamentos e instruções transmitidas por praticantes e mestras budistas, ao longo de vinte e cinco séculos, através de suas experiências de vida e realizações. São histórias de como o despertar aconteceu para cada uma delas em meio a incontáveis desafios, como vivendo uma vida marginal perante não somente a sociedade, mas também nas instituições budistas de suas épocas.

Além disso, é comentado por diferentes praticantes e professoras do Darma contemporâneas que nos ajudam a colocar em prática, nos dias de hoje, o que essas instruções atemporais nos oferecem.


CHINA, SÉCULO XII ………………………………………………………………………………………………………….

Um tanto quanto idosa, mas antes de se tornar monja, Kongshi Daoren abriu uma casa de banho pública. Na porta da casa de banho, ela postou as seguintes palavras:

Nada existe, nem mesmo a poeira, então por que você está se banhando?

Até mesmo uma partícula de poeira, de onde ela vem?

Diga algo verdadeiro e então você poderá entrar e se banhar.

Se mesmo os espíritos anciãos não podem mais do que esfregar suas costas, como poderei eu, a fundadora, trazer pureza para sua mente?

Se você quer se livrar da poeira,

Você primeiro deveria fazer um esforço que faça todo o seu corpo suar.

É dito que a água pode lavar a poeira,

Mas, ainda assim, como as pessoas podem compreender que a água por si só também é poeira?

Mesmo que você consiga subitamente limpar toda a distinção entre água e poeira,

Você ainda deverá lavar tudo isso quando vem a essa casa de banho.

Reflexões de Sallie Jiko Tisdale

A vida de Kongshi Daoren é familiar a mim. Ela é minha vizinha, minha mãe, minha amiga. O dever para com os outros é parte da vida. Nós estamos emaranhados na vida uns dos outros, nas necessidades uns dos outros. Como muitas mulheres, Kongshi descobriu que não poderia realizar sua aspiração mais preciosa — a de se tornar uma monja — porque outras pessoas não desejavam que a fizesse. Eu senti isso em minha própria vida, a tristeza penetrante de não ter a possibilidade de realizar aquilo que gostaria — não porque eu não poderia, mas por colocar as necessidades de outros acima das minhas.

Nos tempos de Kongshi, as mulheres necessitavam da permissão do chefe da família para serem ordenadas. O pai de Kongshi não permitiu que ela se tornasse uma monja; ao invés disso, ela teve um casamento politicamente conveniente. Em algum tempo, seu marido permitiu que ela deixasse o casamento, e como ela não tinha lugar algum para ir, teve de retornar para a casa de seu pai. Quando ele morreu, seu irmão se tornou seu guardião. Ela pediu a ele permissão novamente para ser ordenada, e novamente seu pedido foi recusado.

Quando sofremos, nosso impulso é de culpar. Podemos olhar a história de Kongshi como uma tragédia — o conto familiar de uma mulher tolhida pelos homens e pela sociedade, constrangida pelas regras de outros. Mas existe mais na história dela — e na minha, e na sua — do que aquilo que a ela não foi permitido realizar. Naquele tempo, toda China estava construída sobre duras restrições de classes; a vida de todas as pessoas era definida pela sociedade. Homens também, algumas vezes, não podiam ser ordenados, por conta de deveres políticos e familiares. Muitas dessas pessoas levaram vidas comuns de estudo e meditação, e eram conhecidas como daoren, “Pessoas do Caminho”. Kongshi viveu de forma simples, estudando sozinha.

No final, a frustração foi sua liberação. Kongshi ficou completamente tocada por algumas linhas da Contemplação do Dharmadhātu: “Um inclui todos e penetra todos. Todos incluem um e penetram um. Todos incluem todos e penetram todos. Eles se interpenetram sem nenhuma obstrução.” Ela deve ter sentido ressentimento — eu certamente sinto. Mas ela viu como o mundo se entrelaça de forma intricada e além de medidas, em que nada é realmente obstruído, e ela se elevou acima do ressentimento. Ela se elevou sobre seu próprio ponto de vista: com uma pequena mudança de perspectiva, os robes de monja são apenas roupas. Que grande presente ela recebeu em não poder realizar aquilo que ela queria! Poderia ela ter visto a natureza interpenetrante das coisas se ela tivesse conseguido o que ela queria?

Como Kongshi, eu também pensava que precisava de vestes de monja. Eu pensava que precisava de um certo tipo de vida, mas, como acontece a muitos de nós, nossa vida de fantasia foi bloqueada por uma vida real. E percebi que apenas nos tornando bloqueados é que podemos encontrar uma porta de entrada. Depois que seu irmão morreu, Kongshi foi estudar com um professor talentoso. Não havia mais obstáculos; ela podia fazer aquilo que queria.

Ela poderia ser ordenada se ela quisesse — e ela não quis. Encontrando seu professor pessoalmente, ela disse a ele: “Eu faço o universo e eu desfaço o universo”. Sabendo disso, como poderia importar aquilo que ela iria vestir?

Enfim, ela deixou seu professor e construiu uma casa de banho do lado de fora de outro monastério. Na porta, ela escreveu esse poema. Seus dias foram gastos enchendo banheiras, esfregando costas, lavando toalhas sujas, pendurando-as para secar e as dobrando com cuidado na manhã seguinte: um trabalho de mulher. Mas ela também escreveu poemas nas paredes e envolveu seus clientes no combate do Dharma. Sujeira? Água? Eu? Outro? Me mostre a diferença.

Por último, ela se mudou para um convento e ensinou para qualquer um que foi vê-la. Quase como um último pensamento, ela foi ordenada. Nunca houve de fato algum obstáculo real. Gosto de pensar nela lavando e secando seus robes e os dobrando com cuidado, assim como ela aprendeu a dobrar uma toalha de banho, porque — não é óbvio? — eles eram os mesmos.”

Ao final desse capítulo, Sallie nos convida a contemplar:

De que maneiras você imagina que quando pratica está de alguma forma lavando seus atos? Estamos nós lavando os nossos atos? Se banhar em uma banheira ou tomar um banho nos ajuda a limpar nossos atos?

¹Livro ainda sem tradução para o português
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