Crédito: Elise Bozzetto

A dança da mente no som do corpo

Neste relato, Ana Nedochetko conta como ela experiencia a dança e usa os movimentos do corpo como prática de atenção


Por
Edição: Elise Bozzetto

Ana Nedochetko, praticante do CEBB Joinville, pratica dança desde os 4 anos. Neste relato, ela conta como a experiência tem impactado também em sua prática espiritual.


 

Certas situações nos levam frequentemente para um lugar de completa concentração e experiência, em que se dissolvem os incontáveis discursos, problematizações e a incansável conceitualização de tudo e todos. Um lugar em que a atenção se volta completamente, desperta e alerta. Quando nossa visão, em vários níveis, é tomada por algo. O canto do primeiro pássaro na quieta alvorada, as partículas de água suspensas, como magia, depois de um banho quente, a refração dos raios solares, o lapso temporal entre o final de uma respiração e o início de outra. A completa suspensão de tempo e espaço.

Crédito: Elise Bozzetto

Acredito que essa seja uma sensação que acomete a todos quando a atenção é absorvida por algo que consideramos belo ou sublime. Daquelas situações que um suspiro explicaria melhor que tratados filosóficos. Essa é a minha experiência com a dança, especialmente com a prática de improviso. Nesse momento, há um completo apagar dos conceitos do que está ao redor e sequer é possível considerar o chão enquanto chão, pois pode virar céu se assim nossa narrativa desejar. Se há público, indivíduos perdem sua personificação. É possível experienciar a (eu diria) quase perfeita união da mente criativa com o corpo, pronto para fazer qualquer movimento que a mente ordenar. Já vasculhei alguns desses momentos tentando encontrar, entre o comando da mente e a execução do corpo, a real criação da forma – vestígios de uma educação científica. Mas nada encontrei. Se eu constituísse mentalmente alguma forma de movimento, lá estaria a criação de algo a ser executado pela mente comum e não pela simples-mente criativa.

Posso dizer que demorei muito para começar a improvisar e a dançar pelo mero deleite de pisar no espaço aberto criativo da mente. A primeira vez que o fiz, chorei. É um tanto complicada tamanha exposição. Quando improvisamos, a estética e a técnica são jogadas de lado, o colo de pé esticado então, nem se fala. Deixamos exposto, tal qual uma ferida aberta, o nosso íntimo, a nossa dança energética interior para quem estiver assistindo. Quando aprendemos uma sequência coreográfica ou estamos apenas reverberando passos de dança já estabilizados pela técnica, é como se estivéssemos vestidos. Agora, quando improvisamos, é a nudez completa que se apresenta. Dentre os diversos filtros que desaparecem em um piscar de olhos, está o filtro do erro. No improviso não há erro, não há quem julgue ou algo a ser julgado. Na pura demonstração física de nossos movimentos internos, não há certo e errado. Os movimentos podem ser feitos e desfeitos. O que se faz de improviso sequer é possível recordar depois.

Crédito: Elise Bozzetto

Há uma palavra em sânscrito, lîla, que dentre os diversos possíveis significados, pode ser entendida como jogo, brincadeira, espontaneidade. Mas não é uma brincadeira comum, é a brincadeira divina de deusas e deuses. O poder de criar, recriar, destruir e se deleitar nesse processo criativo sem fixações e conceitualizações. Há um pouco de lîla no improviso da dança. Esse processo espontâneo e criativo é muito simples e pode muitas vezes parecer bobo a olhos críticos. O jogo complexo que nos habituamos dentro do samsara nos faz ansiar por cada vez mais complexidades. Idiomas, especializações, debates, psicologia, metafísica, epistemologia e por aí vai. Lîla, por sua vez, é quase infantil. Acredito que o improviso me levou novamente a minha infância que, como uma boa pisciana, criava e recriava meus próprios mundos paralelos sem, no entanto, atribuir grande peso substancial a eles. Conforme vamos crescendo, tudo ganha densidade, complexidade e o pior de tudo, seriedade. No improviso temos que lidar com o fato de que provavelmente iremos errar e muito raramente o movimento sairá de acordo com o que julgamos correto ou bonito. A beleza está no fato de que a experiência do improviso dura apenas aquele instante e quando formos improvisar novamente, iremos contar uma outra história.

Improvisando eu vi a materialização, no meu corpo, das minhas emoções mais complexas e como nem elas tinham tanta densidade como eu acreditava que tivessem. Dançando minha emoção eu vi que, a cada mês, ela tomava um corpo diferente. A mesma emoção com a mesma nomeação a cada aparecimento, tinha formas diferentes… então como poderia eu seguir afirmando que eu apresentava a mesma coisa sempre? Improvisando eu vi que meus mais profundos medos não permaneciam iguais ao longo do tempo. Improvisar é um risco. É estar em contato direto com os mistérios do nosso íntimo e o mais incrível disso é que não precisamos entendê-los cognitivamente. O processo criativo em que nos colocamos em contato ao dançar de improviso é usar nossos obstáculos como ornamentos, é conferir a beleza do movimento do corpo para a tristeza mais densa que nos acomete, é transformar em saltos e piruetas nossas maiores angústias.

A experiência elétrica de ter o corpo completamente disponível, fluído e desobstruído para qualquer mandamento de supetão da ardilosa mente me fez perceber os tantos obstáculos mentais e filtros que coloco para mim mesma. Quantos nós me afastam de uma movimentação na vida sem preocupações e rancores com minhas performances passadas, ou expectativas de performances futuras – e aqui já não sei se falo da dança-arte ou da dança-vida. Dançando de improviso eu percebi que também posso me movimentar no mundo de uma maneira mais descomplicada e que minhas emoções não são tão fixas. Da mesma forma que improvisamos movimentos de dança, estamos a todo momento improvisando relações, diagramações, confecções e conjecturas sobre tudo e todos. E tudo isso tem a mesma densidade da movimentação que sairá diferente a cada vez que formos executá-la. Ao observar o que minha mente é capaz de criar sem qualquer preparação prévia, percebi que não há tanto com o que me preocupar e de que não preciso de cansativas elaborações, apenas dançar comigo mesma na melhor espontaneidade do improviso da vida. Seja ela como tiver que ser, estou sempre pronta.

O fato é que estamos improvisando o tempo todo. Somos todos improvisadores da vida, dançando com todos os fenômenos e formas que se apresentam. O mundo está vivo e por mais que tentemos segurar todas as pontas e prever tudo o que pode acontecer, sempre improvisaremos. Em uma conversa informal com um vizinho, criando algum almoço com as sobras da geladeira ou andando a esmo em uma cidade completamente desconhecida. Esse momento de total concentração e conexão com nossa intuição e processo criativo mais íntimo pode durar o tempo de uma respiração, mas ele pode ser aproveitado ao máximo e os frutos são não discursáveis. Dar nascimento a essa conexão é saber que ela mesma nunca será repetida e é estar aberta para sua próxima aparição sem aviso prévio. Nossos guias são apenas nossos sentidos, completamente abertos e nossas emoções, perturbadoras ou não, conscientes ou não, guiando nosso próximo passo. Pisar no terreno do desconhecido e das inúmeras possibilidades que somos capazes é um tanto ameaçador, mas o belo é ver quase tudo representado em movimento, tão constante quanto as sombras dos pássaros. 

Na dança também encontrei o Darma.

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4 Comentários

  1. Cleide A M Denardi disse:

    Maravilha sua ilustrafao do quadro…é bem asdim! Cono a vida: sempre surpreendente e inprovisada! Parabens!

  2. Alexandra Reschke disse:

    Divino

  3. Alexandra Reschke disse:

    Simplesmente DIVINO.
    GRATIDÃO

  4. Alexandra disse:

    Simplesmente muito bom.
    GRATIDÃO

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