Dilgo Khyentse Rinpoche. Photo via flickr / Lions Roar

A essência da compaixão: as 37 práticas do bodisatva

Instruções específicas que tratam da bodicita


Por
Revisão: Comitê de Tradução Makara, Flávia Pellanda, Sandra Campos e Cristiane Schardosim Martins
Tradução: Maíra Rocha

Este trecho, que foi transcrito do livro A essência da compaixão: as 37 práticas do bodisatva, de Dilgo Khyentse Rinpoche (The heart of compassion: the thirty-seven verses on the practice of a Bodhisattva), traz uma reflexão sobre a compaixão e as razões do nosso vagar infindável no ciclo da existência: apego e aversão.


Os ensinamentos de Buda abrangem diversos caminhos e veículos. Todos, de diferentes formas, conduzem à liberação dos sofrimentos do samsara e culminam na iluminação. Os ensinamentos mais profundos, no entanto, são os do Mahayana, ou Grande Veículo. E, entre os numerosos e vastos ensinamentos do Mahayana, o significado fundamental está nas instruções essenciais dos grandes mestres espirituais, expressas de forma concisa e de fácil aplicação. As instruções essenciais específicas que explicarei aqui tratam da bodicita, a determinação de alcançar a iluminação para o benefício dos outros.

A primeira coisa que nós, professores e ouvintes, devemos fazer, em qualquer ocasião em que sejam concedidos ensinamentos, é rezar para os budas do passado, do presente e do futuro, e receber suas bênçãos. Além disso, rogamos pelas bênçãos de todos os grandes professores das Oito Grande Carruagens, as principais tradições budistas trazidas da Índia para o Tibete. Vocês, como ouvintes, devem se assegurar de que têm a motivação adequada para receber os ensinamentos: alcançar a iluminação para o bem dos outros. Gerar essa atitude em tudo o que você faz é a base da bodicita.

Os seres vivos são tão ilimitados quanto o próprio espaço. As vidas que todos nós já vivemos também são ilimitadas. Portanto, no transcorrer dessas incontáveis vidas, certamente tivemos muitos tipos de conexões com todos os seres vivos. Na verdade, cada ser senciente foi sua mãe pelo menos uma vez. Todos os seres, até mesmo o menor dos insetos, querem e tentam desfrutar de felicidade verdadeira e de liberdade, bem como evitar o sofrimento. A vasta maioria deles, no entanto, desconhece completamente que a felicidade é o resultado de ações positivas e que o sofrimento é o resultado de ações negativas. Em seu esforço para serem felizes, eles desperdiçam todo o tempo em ações negativas, o que, consequentemente, só os leva a mais sofrimento: exatamente o oposto do que desejam. Ao refletir sobre isso, um sentimento de grande compaixão brota naturalmente em você.

Na prática, no entanto, o simples fato de você sentir compaixão não tem nenhuma utilidade para os seres. Então, o que pode fazer para ajudá-los? Agora, você possui uma existência humana com todas as liberdades e vantagens e, especialmente, com a imensa fortuna de ter encontrado o Darma supremo e de ter começado a praticá-lo. Você encontrou um professor autêntico e está recebendo ensinamentos que abrirão a possibilidade de alcançar o estado búdico em uma única vida. Para aproveitar ao máximo essa oportunidade preciosa, você não deve simplesmente escutar os ensinamentos, deve também colocá-los em prática. Assim, seus sentimentos de compaixão serão aplicados até que, em algum momento, você se tornará capaz de conduzir todos os seres vivos à iluminação. Na situação atual, por mais que queira ajudar os outros, você é um iniciante e não tem capacidade de fazer muito por eles. O primeiro passo a dar para se tornar realmente útil é, portanto, aperfeiçoar a si mesmo, treinando e transformando a própria mente.

Neste momento, a sua mente está muito influenciada pelo apego aos amigos, parentes e qualquer pessoa que o satisfaça. Ela também é influenciada por sentimentos hostis dirigidos a todos que, aparentemente, contrariam a sua vontade e o impedem de adquirir bens, conforto e prazer, sendo encarados com aversão, como inimigos.

Em sua delusão, você faz tudo o que pode para beneficiar a si próprio e àqueles de quem gosta. Também procura dominar e eliminar as pessoas que considera inimigas, com tanta aversão que não suporta sequer ouvir o nome delas. No decorrer de incontáveis vidas, você tem sido arrastado para o cruel oceano da existência, o samsara, e levado pelas fortes correntes do apego e da aversão. O apego e a aversão são a causa do samara, a razão do nosso vagar infindável no ciclo de existência.

Reflita com cuidado sobre o que entende por amigos e inimigos. Ao examinar, perceberá que obviamente não há nada que possa ser apontado como um amigo ou um inimigo permanente e duradouro. Aqueles que você considera amigos nem sempre foram amigos. Na verdade, eles podem muito bem ter sido seus inimigos no passado, ou podem vir a se tornar inimigos no futuro. Não há nenhuma garantia em relação a isso. Por que você é tão compulsivamente apegado a certas pessoas? Os seus relacionamentos não são todos temporários? No fim, independentemente do que tiver acontecido em sua vida, chegará o momento da morte. Nessa hora, você não terá outra escolha a não ser abandonar a todos, quer sinta apego ou aversão por eles. Entretanto, tudo o que tiver sido feito em vida — todas as ações motivadas por apego e aversão — terá criado uma força que vai empurrá-lo para a próxima vida, na qual você vivenciará o resultado dessas ações.

Assim sendo, se você deseja percorrer o caminho até o estado búdico, abandone o apego aos amigos e parentes e o ódio aos inimigos. Considere todos os seres com equanimidade. Se, agora, as pessoas aparentam ser amigas ou inimigas, isso é o resultado de conexões e ações passadas. Atribuir uma realidade sólida aos sentimentos de apego e aversão que surgem devido a percepções errôneas e confusas é apenas uma delusão. É como, ao crepúsculo, confundir uma corda atravessada no meio do caminho com uma cobra. Você pode sentir medo, mas isso não significa que o medo seja baseado em algo real: a corda nunca foi uma cobra.

Por que você sente apego e aversão, e de onde eles vêm? Fundamentalmente, eles nascem da crença de que você é um indivíduo que existe verdadeiramente. Enquanto essa ideia está presente, você cria muitos conceitos, como “o meu corpo”, “a minha mente”, “o meu nome”. Você se identifica com essas três coisas, apegando-se a tudo que estiver em consonância com elas, tentando se livrar de tudo que estiver em desacordo com elas e que lhe seja repugnante ou desagradável. O menor dos sofrimentos, como o ferimento causado por um espinho ou a ardência provocada por uma fagulha, incomoda-o. Se alguém o contraria, você revida, causando-lhe tanto mal quanto possível. A menor boa ação feita em favor dos outros o infla de orgulho.

Enquanto essa atitude autocentrada continuar profundamente arraigada em seu ser, não há como alcançar a iluminação. A ideia de ser um indivíduo verdadeiramente existente é o nível mais básico da ignorância, de onde surgem todas as outras emoções negativas.

Mesmo quando você está na melhor das situações, nunca pensa que é suficiente. Sempre quer mais. Você quase não se preocupa com as vontades e os desejos dos outros, e só quer circunstâncias favoráveis para si mesmo. Se fizer o menor dos favores para alguém, sente que fez algo muito extraordinário. Você está vagando no samsara por estar preocupado com sua própria felicidade e bem-estar e por negligenciar o bem-estar e a felicidade dos outros. Como Shantideva diz:

“Toda a alegria que o mundo contém
Vem de querer felicidade para os outros
Todo o sofrimento que o mundo contém
Vem de querer felicidade para si mesmo”

Caso você seja suficientemente afortunado e consiga entender que a única felicidade verdadeira e duradoura é o estado búdico e que as ações feitas com motivos samsáricos só resultam em sofrimento, você deve se empenhar em ajudar os outros a entenderem isso. Se treinar e domar a mente, todo o apego a noções de “amigo” e “inimigo” se esvai, e você perceberá todos como seus pais, irmãos e irmãs.

A visão dos bodisatvas — aqueles que praticam o caminho Mahayana — é a de abandonar toda a ideia de um “eu” que exista verdadeiramente. Quando a preocupação com o próprio “eu” não estiver mais presente, não haverá ódio, apego egoísta, orgulho, inveja ou ignorância.

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