A experiência com a tradução do livro Instruções ao Cozinheiro

Prefácio do Monge Koho para o livro e agenda de eventos no Nordeste


Por
Revisão: José Ovidio Copstein Waldemar, Rosana Foz, Cláudia Laux, Lia Beltrão e Dirlene Martins
Tradução: Monge Koho Mello

Monge Koho estará nesta quarta-feira, dia 31/05 às 20h, na Sala de Leitura Bodisatva, que facilita a leitura coletiva do livro Instruções ao Cozinheiro — Ensinamentos de um Mestre Zen sobre viver uma vida com sentido, do qual é tradutor. Além disso, ele conduzirá uma agenda de atividades no Nordeste do Brasil em junho. Você pode conferir os detalhes aqui.


Colaborar com a publicação deste livro em português significa para mim um grande mérito. Penso que traduzir é sempre um desafio, pois, muito mais do que transpor palavras de um idioma para outro, trata-se da responsabilidade de buscar transmitir com fidelidade a mensagem de uma obra. No caso deste livro — Instruções ao cozinheiro: ensinamentos de um mestre Zen sobre viver uma vida com sentido —, minha motivação é compartilhar os benefícios que sinto serem possíveis de auferir com a leitura e a aplicação dos referenciais aqui contidos, os quais representam os frutos de  uma vida de prática, estudo e ação benéfica na sociedade.

A comunidade Zen Peacemakers me foi apresentada há mais de 20 anos por intermédio de José Ovídio, meu amigo, professor e irmão no Darma. Pela afinidade com a visão de buscar meios hábeis na aplicação dos ensinamentos budistas no cotidiano, me senti acolhido desde o início e com espaço para manifestar minhas aspirações de agir de forma engajada na sociedade, mantendo meu comprometimento com o caminho tradicional do Zen da Escola Soto.

Conheci pessoalmente Bernie Tetsugen Glassman Roshi antes de ler esta obra, o que, de certa forma, possibilitou preparar em meu coração-mente o ambiente adequado para acolher em profundidade os ensinamentos do livro. Ainda que já tivesse tido contato anterior com o texto clássico Instruções ao cozinheiro Zen — “Tenzo Kyokun”, em japonês — do Mestre Zen Eihen Dogen (fundador da Escola Soto no Japão), a releitura contemporânea feita por Bernie sobre o tema básico me descortinou novos horizontes, principalmente pela forma simples e profunda do texto, e pelo elemento vivencial e pragmático que permeia toda a obra.

Poucas vezes tive a oportunidade de conviver com Bernie Glassman, mas em dois momentos o impacto existencial foi decisivo. A primeira vez ocorreu em minha participação inaugural no Retiro dos Zen Peacemakers nos campos de concentração de Auschwitz-Birkenau. As experiências naquele retiro foram muito intensas em todos os sentidos. No intervalo do meio-dia, os participantes recebem uma tigela de sopa, uma fatia de pão e um copo de água. Isso ocorre do lado de fora das cercas de arame farpado que rodeiam o campo de concentração de Birkenau, uma vez que, numa atitude de respeito com todos os seres que pereceram naquele local de horror, nos comprometemos com a prática de não ingerir nem alimentos nem água dentro dos campos.

Aproveitei essa pausa para me apresentar a Bernie, conversar um pouco e partilhar minha gratidão por estar ali, num espaço-tempo de prática gerado principalmente pela ação dele como Professor do Darma budista — os ensinamentos tradicionais. Naquela ocasião, pude sentir o poder de uma presença que acolhe todos os potenciais humanos que podemos manifestar, como, por exemplo, sermos em alguma medida como as vítimas, mas também como os perpetradores daquela brutal tragédia humana que lá é possível testemunhar. A naturalidade com que Bernie me ouvia, sua simplicidade ao compartilhar de forma autêntica a compreensão dos meus sentimentos e motivações, foi algo transformador. Sinto que ali foram nutridas algumas sementes que motivaram meu engajamento posterior, de forma continuada, nos retiros anuais promovidos pelos Zen Peacemakers nos campos de concentração, primeiro como participante e depois, progressivamente, como membro da equipe organizadora e oficiante budista.

A segunda ocasião marcante ocorreu quando da visita de Bernie ao Brasil, em 2012. Acompanhei suas atividades em vários locais, colaborando eventualmente como seu tradutor. Em São Paulo, Bernie ofereceu uma palestra nas dependências da Editora Palas Athena. Em um certo momento da sua fala, ele explicou que, na sua opinião, todos os ensinamentos e práticas poderiam ser resumidos em apenas um conceito, o despertar da consciência plena da absoluta Unidade da Vida. Sinceramente, não tenho como explicar o que senti naquele momento,mas de súbito não consegui continuar a tradução, só consegui chorar, imerso em um senso de maravilhamento, gratidão e indescritível serenidade. Ovidio estava presente e assumiu a tarefa da tradução. Ainda hoje, revivo com alegria aquele momento inexplicável.

Quando eu li este livro pela primeira vez, já residia na Suíça, o que me possibilitou maior participação e engajamento nas diversas atividades promovidas pelos Zen Peacemakers. Ao longo do caminho da prática, percebi a importância dos ensinamentos contidos nesta obra, os quais podem representar um precioso apoio ao exercício de uma espiritualidade autêntica, firme nas suas raízes e flexível nos frutos de suas manifestações individuais e coletivas. O referencial histórico tradicional dos escritos de Mestre Dogen é visível a um olhar mais atento, mas o frescor da visão despretensiosa e bem-humorada de Bernie Glassman é um convite generoso e desafiador à ação, pois alia a sabedoria sutil e pragmática do Zen à sensibilidade sincera e atuante perante a inevitabilidade dos sofrimentos humanos.

Com a lucidez de uma mente educada pela prática diligente, ao longo do texto, Bernie nos desafia a aceitarmos nossa suficiência e utilizarmos todos os ingredientes de que dispomos no aqui e no agora para preparar a refeição suprema de nossas existências, e oferecê-la na celebração do contentamento que surge naturalmente do serviço que não se apega aos resultados das ações. Dessa forma, efetivamente podemos assumir nossa parte na superação dos desafios pessoais e coletivos.

Pessoalmente, vislumbro neste livro a síntese da vida e da obra de Bernie Tetsugen Glassman, um dos grandes mestres Zen contemporâneos. Em uma visão simplificada, considero que aqui há uma referência básica para expressarmos nossas aspirações mais elevadas de gerar benefícios na sociedade, com um modelo inclusivo e respeitoso à diversidade, e, ao mesmo tempo, à consciência de aspectos universais de nossas humanidades. O caráter, em certa medida, revolucionário de algumas práticas propostas pelos Zen Peacemakers é, ao mesmo tempo, um convite acolhedor e aberto ao coletivo de um mundo caracterizado pela diversidade, mas também um desafio constante para assumirmos a intransferível responsabilidade individual pela descoberta de sentido em nossas existências humanas. Por exemplo, nos retiros de imersão em plena presença de realidades que nos são desafiadoras, somos chamados a questionar a coerência existente entre nossos discursos e nossas ações na sociedade.

Usualmente, é uma experiência muito transformadora manter uma prática meditativa no período de alguns dias em que convivemos deliberadamente com pessoas em situação de rua, em grandes cidades do mundo, tendo conosco apenas um documento e a roupa do corpo, e abrindo mão da maior parte dos nossos elementos de identidade social.

Da mesma forma, representa uma imensa oportunidade de aprendizado exercermos a escuta profunda, em estado de presença autêntica, num círculo partilhado com pessoas que vivenciaram traumas históricos de violência e desrespeito às mais elementares dignidades humanas, como nos campos de concentração já citados, ou em Ruanda, na Bósnia, nos territórios dos povos nativos da América do Norte, nas zonas de conflito na Terra Santa, em prisões, escolas e hospitais. Num processo experiencial, cultivamos em nosso ser a realidade da interdependência. Nosso espaço de Prática (zendo) passa a estar no mundo inteiro, nossa Comunidade de Prática (Sanga) passa a ser constituída por todos os seres. Assim, aspiramos que ninguém seja deixado de fora do círculo de sabedoria e compaixão infinita que inspira e motiva nossos corações e mentes.

Nesses poucos anos de convivência e prática com a Comunidade Zen Peacemakers, constato ser possível ressignificar as experiências de profundo aprendizado que vivenciamos nessas formas de prática não-convencionais. Mesmo nas situações mais desafiadoras, através dos ensinamentos de referência e das metodologias baseadas no cuidado e no respeito à diversidade, acessamos recursos que nos permitem desenvolver uma lucidez que vê além das circunstâncias transitórias e nutrir um senso de esperança real, baseado na ação compassiva e eficiente, que compreende os efeitos da ignorância fundamental que reside em não termos consciência da Unidade de toda a Vida.

Muito além da minha compreensão, a inspiração originada nos princípios da cozinha Zen partilhados neste livro me ensina constantemente a nutrir, em primeiro lugar, as sementes virtuosas em meu coração-mente, e a confiar no fato de que o primeiro passo é reconhecer, em gratidão, que a Vida provê mais do que necessito e, portanto, nessa suficiência essencial sempre há muito a partilhar, em estado de contentamento pelas oportunidades cotidianas de praticar a generosidade sem apegos.

Celebro a oportunidade de participar da publicação deste livro no Brasil. Aspiro que este texto possa nutrir gerações de praticantes de qualquer tradição espiritual em suas motivações de gerar benefícios a todos os seres, na sua forma individual incomparável de manifestação, onde quer que estejam, sejam quais forem suas habilidades e qualificações, pois cada ser tem um banquete único a ofertar. E que possamos cultivar a lucidez profunda de ver a realidade como ela é e assim despertar para a maravilhosa revelação de sabedoria contida em cada momento de nossas existências humanas tão preciosas.

Se eu tivesse de pedir algo ao finalizar este texto, solicitaria que considerassem o que aqui escrevi da forma como Bernie sabiamente posicionava as nossas visões da realidade: são apenas minhas opiniões.

Cuidem-se bem e apreciem suas vidas.
Fraternalmente, em reverência.

Koho Mello
Zürich Zen Center
Suíça, verão de 2022

Para saber mais sobre a Sala de Leitura, clique aqui.

Para adquirir o livro Instruções ao Cozinheiro, clique aqui.

Crédito das imagens: https://zenpeacemakers.org/ e https://viaintegralis.ch/
Apoiadores

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *