Imagem de Ben Klea (Unsplash)

A Ferida do Mundo

Joan Halifax nos conduz por um mergulho na escuridão fecunda: no seu processo de luto pela sua mãe e pela mãe coletiva, a própria Terra


Por
Edição: Caroline Souza
Tradução: Caroline Souza

Neste primeiro capítulo do livro The fruitful darkness, Joan Halifax arranca o chão sob os nossos pés e nos puxa para um mergulho na ferida do mundo: a nossa ferida mais íntima e profunda, que descobrimos ser, em última instância, coletiva. É uma submersão no inconsciente universal, nas raízes da teia da vida, na efervescência e visceralidade da própria criação.

Durante um retiro em jejum sobre o corpo morto do Lago Owens, no deserto da Califórnia, a antropóloga e professora do budismo Zen recebeu a inusitada notícia de que sua mãe havia morrido. Sem qualquer aviso ou misericórdia, seu mundo se abriu em uma imensa fenda e ela caiu, abruptamente, “de costas nuas” e “sem autoridade” na vida, destituída do corpo que havia gerado a sua existência.

No texto abaixo, a grande Joan Halifax generosamente nos guia pelo seu processo de luto após a perda da sua mãe, que ela mais tarde descobriu ser um luto pela mãe mais essencial e pervasiva: a própria Terra. Ela narra seu mergulho em uma ferida cujas raízes penetram o inconsciente coletivo, e que lhe desnuda a verdade mais básica de todas: nossa profunda interconexão na grande malha da vida.

 

“Sabemos que somos feitas desta terra.
E sabemos que esta terra é feita dos nossos corpos. Porque vemos a nós mesmas.
E somos natureza. Somos natureza vendo a natureza.
Somos natureza com um conceito de natureza. A natureza chorando.
A natureza falando da natureza para si mesma.”

— Susan Griffin, Mulher e natureza

No outono de 1990, sentei-me num charco sobre o Lago Owens, hoje uma paleta dissecada de tímida cor, se transformando. O Vale Owens estende seu corpo longo e aberto à leste da Sierra Nevada, na Califórnia. Ao centro está o chão alcalino do que um dia foi um imenso lago fluvial usado por barcos a vapor para o transporte de sal do Vale Saline e prata de Inyos. Agora grandes nuvens de poeira cinza sopram nas quatro direções desde sua bacia, esvaziada no início do século XX pelos senhores da água de Los Angeles.

Companheiros próximos jejuavam nos canyons acidentados que despontam da depressão rochosa onde estava nosso acampamento. Esses amigos tomavam refúgio no silêncio e na solidão. Era um período em que se separavam das suas rotinas diárias, um tempo que tinham dado a si mesmos para marcar as mudanças na vida, como pessoas de várias culturas já fizeram, a fim de renovar sua relação com a criação. Toda primavera, por muitos anos, eu também fui para a natureza jejuar, para me esvaziar e restaurar. Agora, entretanto, eu seria a “testemunha” dos meus amigos. Com os professores Steven Foster e Meredith Little, eu rezaria por esses homens e mulheres que se afastavam, cada um sozinho, sem comida ou abrigo, em direção a esse terreno aparentemente vazio.

Sentada na terra rochosa, ventosa, minha mente se voltou para Los Angeles, a vasta cidade ao sul que havia sugado o Vale Owens até secá-lo. Milhares de árvores mortas erguem-se como testemunhas quietas da destruição. Os céus também testemunham essa transformação com uma seca. Os veados se retiraram para as áreas mais elevadas da Sierra, sob queixas dos caçadores. Os antigos destas partes dizem que até as cobras andam morrendo pela falta de água.

Na nossa primeira tarde no sul das Montanhas Inyo (“Morada de um Grande Espírito”), antes de as pessoas partirem para jejuar, os céus rugiam com o som de aviões de caça treinando para a mais recente guerra da nossa nação. Estavam tão perto que podíamos ver os mísseis pendurados às asas como negras lampreias. Me perguntava se os militares brincariam de guerra todo o fim de semana, ou se teríamos silêncio neste deserto grande e acidentado. A digital humana hoje é encontrada em cada pingo de chuva. Ainda existe lugar na Terra onde não se escuta a voz da tecnologia?

Cedo na manhã seguinte, meus amigos saíram em meio a uma inesperada tormenta para as suas solitárias vigílias nas nuas montanhas mais ao norte. Durante a maior parte do dia e a noite inteira choveu torrencialmente em todas as direções. Normalmente, a chuva me faz sorrir. Quando eu era pequena na Flórida e na Carolina do Norte, tempo ruim era sinônimo de chuva. Mas eu vivi doze anos no sul da Califórnia, onde tempo ruim nos anos 70 e 80 significava falta de chuva. Me perguntava como a chuva ressoaria nos meus amigos em jejum. Como ela afetaria o seu clima interno?

Sempre amei o cheiro da chuva no deserto, com a fragrância amarga e fresca do ozônio impregnando a atmosfera. As sálvias já velhas e secas ressuscitam com a água. As pedras parecem emanar um perfume enquanto vão revelando sua verdadeira cor. O chão do deserto vai mudando seus contornos bem diante dos nossos olhos. Ainda escuto com interesse as vozes da chuva – às vezes duras e torrenciais, às vezes líricas. 

Nesse aguaceiro horizontal, deitei-me na parte de trás de uma camioneta coberta e fiquei ouvindo até o sono chegar. Ao amanhecer, seca e elevada, curti a vista do deserto encharcado despertando à luz na superfície de cada pedra e seixo. Depois que o sol nasceu, um vívido arco íris amarrou as duas pontas do mundo. E então seguiu-se o silêncio de um dia sem nuvens.

O silêncio torna as confidências da mente visíveis. No início, minhas “confidências mentais” assumiram a previsível forma de uma análise sobre o “declínio do Ocidente” e de tudo mais. Oriente e Ocidente, Norte e Sul são um contínuo, lembrava a mim mesma. A continuidade do Paleolítico, o mundo das pessoas tribais, a vastidão selvagem em que viviam e o Lago Owens morto não são separados e distintos de Los Angeles e Las Vegas. Me esvaziando enquanto jejuo, me esvaziando na solidão, talvez eu me descubra plena – de história, de vida selvagem, de sociedade. E vejo minha identidade co-evoluindo com toda a criação. Recordei-me, assistindo às nuvens que se reuniam sobre a Sierra, de que nós não sabemos o final desta história. O estado atual dos eventos, contudo, tinha deixado poucas dúvidas na minha mente sobre o quão pervasivo é o sofrimento no contínuo da criação.

Após essas ruminações, comecei a observar a paisagem áspera e nada romântica ao meu redor – nenhuma rocha vermelha vistosa e retorcida pelo vento, nenhuma pedra em formato de cogumelo, nenhuma campina repleta de flores ou mata exuberante; apenas seixos, brejos acinzentados e montanhas irregulares. Esta terra provavelmente não levaria os jejuantes a expansões visionárias, pensei. No entanto, sua beleza era sutil, com pedras gastas, lascas de obsidiana de habitantes passados, um lampejo de rosa pálido na curva de um canyon. Ainda assim, a maioria das pessoas não veria, aqui, nada além de um descampado.

Quando viemos a esta área pela primeira vez, tive que procurar com atenção por um local para os meus companheiros se instalarem; não parecia haver nenhum. Mas, olhando de novo, comecei a ver as sombras da Terra onde ela se dobrava sobre si mesma, escondendo lugares para se refugiar do sol, vento e chuva. Fiquei satisfeita com esse ambiente discreto. Ninguém se daria o trabalho de vir aqui, exceto alguns tolos famintos.

Enquanto mulher ocidental, tudo o que aprendi sobre a natureza do eu, tanto o eu local quanto o estendido, deu-se pelo mergulho profundo e subterrâneo na “escuridão fecunda”, a escuridão da cultura, a escuridão da psique, a escuridão da natureza. Os segredos mais importantes parecem sempre se esconder nas sombras. “O segredo da vida”, dizem os povos Utes, “está nas sombras e não sob o sol; para ver o que quer que seja, você precisa olhar profundamente para a sombra de uma coisa viva.”

Adentrei este mundo de sombras relutantemente. Tendo encontrado o ouro da compaixão na rocha escura do sofrimento, tendo provado a fruta da sanidade no emaranhado bosque do eu, por vontade própria, entrei no Vale das Sombras através da solidão, silêncio, quietude, meditação e preces. Nestes lugares calados, descobri um fluxo mental cujas profundezas são luminosas.

Na terceira manhã no Vale Owens, o Steven jurou que alguém ou alguma coisa tinha vindo ao acampamento nas primeiras horas. Caminhei pelas redondezas, checando a cozinha e os veículos, e tudo parecia normal. O Steven fez café e começamos uma conversa boa enquanto esperávamos a Meredith voltar da cidade.

Pouco depois das nove horas, ela chegou. De longe, vi seu rosto tenso de preocupação. O Steven também notou e se aproximou do carro em silêncio. Foi ela quem me deu a notícia de que minha mãe tinha morrido inesperadamente naquela manhã.

A primeira coisa que vi foi o rosto da minha mãe, um rosto que tinha sempre se desviado do seu próprio sofrimento para encarar o sofrimento dos outros. Sua vida foi de serviço. Uma mulher alta e linda, aos vinte e poucos anos ela havia dominado a arte de fazer livros para os cegos. E mais tarde eu ficaria sabendo que, no seu último dia, doze horas antes de falecer, ela tinha distribuído revistas aos doentes no mesmo hospital onde ela viria a sangrar até a morte.

Minha mãe estava morta. Ao ouvir a notícia, dei as costas aos meus companheiros e caminhei desajeitadamente até o sul do acampamento para encarar o corpo aberto e morto do Lago Owens. Com brutos passos rumo ao sul, me perguntava, distraída, por que ainda o chamavam de lago. Parei, confusa e crua, e senti como se não houvesse nenhuma pele entre o vento e eu. Naquela manhã, o céu tinha se revolvido e chamado o nome da minha mãe. Agora ela não estava mais aqui. Olhei para o norte, para a parede de montanhas acidentadas onde os meus amigos jejuavam. As pedras e as montanhas, as nuvens e o sol pareciam todos vazios. O céu, vazio. Olhei a minha mão direita: ela também estava vazia, e ela também pertencia à minha mãe. Foi aí que eu lembrei destas palavras:

Aqui nesta montanha não estou sozinha.
Pois todas as vidas que eu já fui estão comigo.
Todas as vidas agora me dizem que eu cheguei em casa.

Fui para outro deserto da Califórnia depois do seu funeral. Ao entrar no Monumento Nacional de Joshua Tree, relâmpagos desnudavam a paisagem num tom branco de ossos. Me entranhei nesse segundo deserto com a intenção de ficar sozinha e jejuar para marcar o luto. Vagando por horas e horas entre as pedras e as fissuras procurando um local protegido, percebi que a proteção que eu buscava era ela. O útero que me deu nascimento não estava mais vivo. Essa proteção tinha acabado e agora minhas costas estavam nuas. O corpo a partir do qual eu havia sido escrita estava morto, e eu não tinha mais autoridade. Era coisa demais para eu lidar tão cedo. Retornei ao acampamento-base e ao fogo, à fogueira, outro lugar onde se encontra conforto de mãe. Lá, assisti à sua vida nas chamas.

Naquela primeira noite, estava com medo e dormi perto do fogo enquanto coiotes caminhavam atrevidos pelas redondezas. Quando a lua se pôs, tive esse sonho: minha mãe está numa mesa de operação. Um amigo – um cirurgião no sonho – segura o bisturi sobre a sua barriga. Viro-me horrorizada, mas ele estende seu braço até mim, sobre o corpo dela, enquanto o corta. Da piscina de sangue no seu abdômen se levanta uma figura com olhos arregalados e despertos.

Acordando abruptamente do sonho, enxergando o céu noturno e sentindo o gosto do deserto na boca, decidi continuar minha jornada de luto pela minha mãe. Também descobri que eu estava de luto pela Terra. Naquele momento as duas, a Terra e a minha mãe, eram um corpo só.

Pouco tempo depois viajei para o Nepal. Caminhei um mês pelas montanhas, internamente carregando o corpo da minha mãe nas subidas e descidas das rústicas trilhas. Vivendo a dor do meu luto através dos rios e dos morros, por um tempo cortei os laços com família, amigos, comunidade, cultura e o local do familiar. Precisava de terra e atmosfera estranhas para vir a conhecê-la como ancestral. Deserto e montanhas são paisagens velhas do espaço. Foi nestes lugares que seu corpo ancestral foi gestado, e a ela eu oferecia preces.

Uma tardinha, na trilha, um velho de olhos acesos segurando um longo cordão de orações passou pelo nosso acampamento. Ele era um dami, um xamã local que estava indo a um vilarejo próximo para curar uma família. Sob a luz derradeira de um anoitecer lento, frio, perguntei se podia acompanhá-lo. Mais tarde naquela noite, alguns amigos e eu nos esprememos entre as pessoas que lotavam a casa esfumaçada dos Gurung e assistimos ao xamã evocar os deuses da região com tambores e canto, dançar suas danças, lidar com o fogo e sugar a doença.

Às três da madrugada, tive uma visão assombrosa: minha mãe está enrolada em negras teias de aranha; ela está completamente aterrorizada e não sabe o que aconteceu ou onde se encontra. Congelei-me em terror e não consegui me mover interna ou externamente. Depois de alguns minutos ela desapareceu e eu percebi – com um arrependimento terrível – que tinha perdido a chance de atravessar o véu que separa vivos e mortos para ajudá-la. Fiquei inconsolável.

Retornando a Kathmandu, falei sobre a visão aos meus amigos e, em compaixão, eles organizaram uma cerimônia Shitro no humilde monastério budista Sherpa em Boudhanath. Quinze monges e lamas com suas longas trombetas, címbalos e oferendas chamaram a “alma” de minha mãe de volta para dentro de uma efígie, para que ela se purificasse dos padrões que lhe causaram sofrimento e a morte. Lancei meu corpo repetidamente ao chão escuro e amanteigado do templo, em prostrações, e os lamas fizeram suas preces e oferendas em benefício dela. No final do dia, sua efígie foi cremada. Naquela noite embarquei num voo para a Califórnia.

Dois dias depois, em Ojai, a comunidade se reuniu à tardinha junto de um bispo Zen, que conduziu uma cerimônia final para a minha mãe no quadragésimo nono dia de sua jornada pelo Bardo, o estado intermediário entre morte e renascimento. Naquela última noite do seu trânsito pelo Bardo, quando falamos com ela pelo limiar entre vivos e mortos, um vento incomum extinguiu as velas do altar e nossas últimas palavras foram pontuadas por estrelas cadentes.

A passagem pelo Bardo da Morte, de acordo com o budismo, dura quarenta e nove dias. Ao longo desse período, viajei incessantemente. Meu lamento não era apenas pela perda da minha mãe biológica, mas também pelo mundo. Vi a riqueza material dos Estados Unidos e sua relativa pobreza espiritual. Nas montanhas do Nepal, testemunhei enorme alegria em meio à simplicidade de recursos. Meditando, jejuando, vivendo perto da Terra, caminhando dia após dia pela cordilheira enquanto processava essa tristeza, o corpo secreto de minha mãe foi gerado. Foi sendo costurado em cada passo da jornada – jornada, esta, que foi um rito de passagem para ela e para a sua filha.

 

A jornada não acaba. Nem as perguntas. Na primavera, nove meses depois, jejuei sozinha no Vale da Morte, leste da Califórnia, indagando: daqui, para onde ir? Quando vi a paisagem estéril e caminhei em meio ao vento áspero, empoeirado, até uma pequena fenda num leito seco, pensei: “essa vai ser difícil”. Mas, estranhamente, me senti em casa nesse vale gigantesco, antigo, seco. Me assentei por quatro dias em profunda paz e silêncio. Vento, poeira, sol, chuva, céus estrelados, rocha de lava negra, arbusto de creosoto e a delicada flor Eremalche rotundifolia [desert five-spot] foram meus companheiros. No primeiro amanhecer, um lagartinho cinza subiu até a minha pedra matinal e sentou comigo. Na terceira manhã, um corvo solitário sobrevoou. Nove meses desde que minha mãe morreu, era tempo de contemplar.

No terceiro entardecer, ao ver enormes nuvens escuras se aproximando a sudoeste, me enrolei numa lona e me senti como um burrito humano. Tomando refúgio sob a areia, contei a frequência dos pingos de chuva. Uns poucos pingos a mais por respiração e eu precisaria me mover se não quisesse acabar como um pedaço de detrito no fundo do leito seco. Este útero azul de plástico pareceu um lugar apropriado pra minha última noite no deserto.

Mais tarde naquela noite, tive um sonho inusitado: estou caminhando até o fim de um velho píer para observar um cardume de peixinhos fugindo de um predador. Atrás deles vem uma criatura imensa que, à primeira vista, parece ser um tubarão. Não é um tubarão: é uma carpa dourada e muito antiga, algo totalmente pré-histórico. Este grande peixe me captura no seu enorme olho esquerdo de cor castanha. Subitamente, ele para de perseguir os peixinhos e se move em direção a uma estaca que sustenta o píer. Agarra-a com sua boca e começa a sacudir a passarela. Não consigo tirar meus olhos dos olhos daquela carpa, e vou andando para trás cada vez mais rápido na expectativa de sair do píer antes de a estrutura inteira colapsar. De repente, começo a perder a visão e, nesse momento, penso: “Esse peixe não está atrás dos alevinos; está atrás de mim!”. Acordo quando o píer se rompe e eu caio na água.

O ano anterior havia me ensinado muito sobre rendição. Descobri que só pode haver rendimento, colheita, quando a gente se rende. O velho peixe dourado das profundezas arrebenta o passado. Como o peixe pré-histórico do meu sonho e o oceano que me engoliu, o deserto dourado e negro me derrubou e tomou. Não resisti. Fiz uma colheita naqueles quatro dias no deserto ao aceitar completamente a presença dos elementos. Não tive o desejo de lutar contra o sol, a poeira, a chuva. Desfrutei da flexibilidade do vento, das rochas escuras e brutas, do frio das noites úmidas. Jejuando. Não gastei energia no lamento. As perdas estavam confirmadas. Agora eu estava apenas no presente, com a lona azul e o resto. Precisei ter muito cuidado, manter meus olhos abertos e curtir a folga da sociedade que a natureza oferecia. Tinha também me completado, entregado, e rezava para que daí em diante eu vivesse de uma forma que valesse a pena.

Sentada nesses escombros vulcânicos, agradeci aos meus professores, incluindo as pedras que me tinham extraído suor e orações por semanas durante a preparação, quando eu me purifiquei para este período de solidão no Stone People Lodge (uma tenda do suor). As pedras me falaram para silenciar, não me mexer tanto, parar internamente. “A resistência é um dom, não uma provação. Um dia você será como nós – entregando-se como poeira.”

Quando retornei ao acampamento-base, contei minha história e o seguinte sonho, que tive na primeira noite após retornar do jejum: entrei num grande salão cheio de povos de culturas antigas. Este é um encontro crucial sobre a proteção dos modos e terras tradicionais. Estou tentando chegar até meu pai adotivo, o Avô curandeiro do povo Lakota, Wallace Black Elk [Alce Negro], que está sentado mais à frente na sala. Depois de entrar no salão, percebo que preciso ir ao banheiro, e saio novamente. Ao lavar as mãos, me olho no espelho e vejo que tenho uma ferida aberta atravessando todo o rosto, do canto do olho direito até o esterno. Consigo olhar dentro da ferida e ver com clareza todas as estruturas do tecido: os vasos de sangue, músculos, os finos ligamentos, ossos. Estou impressionada. Não tinha notado essa ferida. Por um momento, me pergunto quem pertence a esse rosto. E aí percebo que preciso voltar ao salão e ver o Avô. Ele é o único que pode curar essa ferida. No caminho de volta, vejo que estou, na verdade, num consultório, e conheço um dos jovens médicos brancos, a quem agora peço que olhe o meu machucado. Ele se comunica com um colega sobre a minha situação usando as mãos e um idioma de códigos. Enquanto isso, três mulheres indígenas, grandes e morenas, vêm e colocam suas mãos sobre mim para curar a ferida. Penso: “Isto não é suficiente. Preciso encontrar o Avô”. E então eu estou fora do salão tentando entrar de novo, quando três enfermeiras brancas enviadas pelo médico vêm me buscar para uma cirurgia. Escapo delas e retorno ao salão e ao Avô.

Em seguida, me acordo quando Dana Fonte, minha sobrinha, e Sally Hind, uma estudante de psicologia junguiana, entram no quarto. Conto o sonho a Sally e ela diz: “Joan, isso soa como um sonho sobre a ‘ferida coletiva’. Este é o seu dom e a sua tarefa.”

Mais tarde, quando narrei o sonho no Conselho, vi que cada um de nós, à nossa própria maneira, carrega essa Ferida do Mundo. A Ferida do Mundo é uma ferida coletiva da qual sofremos simplesmente por nascer. A prática budista e meus estudos sobre xamanismo me ajudaram a ver que nós somos um mesmo nó numa vasta teia da vida. Como tal, estamos conectados a todas as coisas e todas as coisas habitam em nós. Nossas aflições psicológicas e físicas são parte do fluxo dessa qualidade de ser. No segundo dia no deserto, caminhando no final da tarde, recordei-me dos anos em que sofri de adoecimento mental e físico. E naquele momento me perguntei: de quem é essa doença, afinal?

Desde um ponto de vista, aquele sofrimento era meu. Desde outro, estava enraizado em fatores sociais, culturais, ambientais e psicológicos que se estendem para muito além da definição local de quem eu sou. Meu sofrimento não é único, brota a partir do solo da minha cultura. Ele brota da cultura e meio ambiente globais também. Sou parte do Corpo do Mundo. Se parte deste corpo está sofrendo, o mundo sofre.

Reconhecer a Ferida do Mundo também nos afasta de um senso de exclusividade. Se trabalhamos para curar a ferida em nós e nos outros seres, então essa parte do corpo do mundo também está curada. Cada um de nós carregou ou carrega sofrimento. Esse sofrimento é pessoal. Mas quando é que nós terminamos e o resto da criação começa? Como parte do contínuo da criação, nosso sofrimento pessoal também é o do mundo. Suas causas são mais complexas e ramificadas do que o eu local.

O sofrimento pode fazer brotar a fruta da compaixão, da alegria. Fui à escuridão a fim de colher essa fruta. Foi para entender a natureza do sofrimento que eu pratiquei budismo, fui para os ermos selvagens, trabalhei com outras pessoas. Queria conhecer as raízes do sofrimento. Também queria conhecer as raízes da alegria, o local onde nos libertamos dos condicionamentos da dor.

Mergulhando na ferida, podemos ver que o sofrimento dos outros é nosso. Não há separação. Vestimos a mesma pele e o mesmo machucado. A ferida está na Terra, bem como no paraíso. Está em nós e através de nós. Alguns buscarão a cura naqueles que já suportaram esse ferimento mais profundamente do que nós. É por essa razão que procuramos um xamã, alguém que já sofreu mais do que a gente.

A ferida que eu tinha no sonho ia do olho ao coração. Era como uma passagem interligando ver e sentir. Primeiro, temos de vê-la e reconhecer que é uma ferida pessoal e uma Ferida do Mundo. Ela nos conecta aos outros e abre os olhos da compaixão. Vendo mais profundamente, podemos também descobrir que esse machucado é uma fabricação de uma história de causas relativas. O sofrimento existe. E subjacente às zonas de alienação, o sofrimento não existe.

Quatro de nós permaneceram depois do conselho: uma mulher com mãos queimadas, uma mulher com apenas um seio, uma mulher com uma longa cicatriz no abdômen e uma mulher com olhos machucados. Quando nos olhamos, entendi por que estávamos lá. A pintora tinha mãos primorosamente moldadas; ela sacrificou-as para criar. Ela me disse que meus olhos tinham sido sacrificados para ver. Falei à mulher com um seio que o outro tinha sido sacrificado para que ela pudesse alimentar o mundo. E a mulher com o abdômen marcado tinha se entregado visceralmente a fim de saber com destemor. Nosso sofrimento é um sacrifício, mas frequentemente aquilo do qual sofremos pode ser um dom de força – assim como a ferida do xamã, que se transforma na fonte da sua compaixão.

 

O processo de iniciação pode ser comparado a uma “catástrofe sagrada”, uma falha divina que acaba por extinguir a nossa alienação, isolamento, e revela nossa verdadeira natureza, nosso amor. É por isso que buscamos iniciação: para curar antigas feridas adentrando-as novamente, a fim de transformar o sofrimento em compaixão. O historiador cultural holandês Arnold van Gennep descreveu as três fases da jornada de iniciação como separação, transição e incorporação: o Rompimento, o Limiar e o Retorno. O primeiro estágio – rompimento – é um tempo de preparação para as provações e testes enfrentados num rito de iniciação. O neófito abandona ou é separado do familiar e começa a se mover em direção à reclusão. A segunda fase – limiar – já foi chamada de “caos do alqueive”. É um momento em que os limites do ego são reconhecidos e adentra-se um território no qual as fronteiras do eu são testadas e destruídas. Incorporação significa retorno à sociedade, mas de um jeito novo, com um corpo e uma vida novos.

A morte abrupta da minha mãe – seu arrancar abrupto da minha vida – imediatamente transformou o fluxo da rotina em um rio de tristeza. Assim como ela tinha sido arrancada de mim, eu me separei da minha vida normal. Isto me encaminhou ao Limiar, a segunda fase de um rito de passagem, em que fui açoitada pela dor do luto nas montanhas e no deserto – um luto que descobri ser não apenas por ela, mas pelo mundo, pela Terra. Essa experiência de ervas e cinzas frequentemente nos movimenta em direção ao selvagem, onde as forças dos elementos e a presença de criaturas, plantas, formas da terra e da água, o céu, os espíritos conspiram para quebrar a casca que tem nos protegido de uma verdade mais profunda.

É nesse lugar sem condicionantes que a quietude e a solidão esculpem a alma. E aí nós retornamos, purificados pelas lágrimas e pelo silêncio de questões que não podem ser respondidas. O poeta e fazendeiro Wendell Berry uma vez escreveu que esse silêncio em meio ao selvagem indaga todas as perguntas sem resposta sobre as origens e os finais. Indaga-nos quem achamos que somos, o que achamos que estamos fazendo e aonde pensamos que estamos indo. Na quietude, o mundo e os seus lugares e aspectos ficam aptos a virarem o nosso presente. As vidas da água e das árvores e das estrelas cercam a nossa e “impõem suas demandas obscuras. A experiência desse silêncio deve ser básica a qualquer sentimento religioso. Uma vez que ela é atendida, admitida na mente, devemos passar a carregar um fardo muito maior de consciência e conhecimento – devemos mudar nossa vida.”

Nossas vidas também podem passar por uma transformação quando encaramos a parede na prática de meditação ou quando usamos “plantas professoras”, dança, longas e árduas corridas e peregrinações, com o propósito de romper a casca que envolve a psique. No Limiar, o portão do inconsciente, do desconhecido, outrora fechado, agora se abre. Ao se abrir, vai surgindo uma paisagem habitada por padrões ancestrais. E nesse interstício entre o eu e o outro, os deuses aparecem como formas de energia emanando de paisagens internas e externas. Quando estamos nesse estado liminal, encontramos o local onde os mundos se conectam e fluem juntos, onde forma e espaço, figura e solo são um.

No Limiar, experienciamos a nós mesmos como um multiplex. Somos mortal e deus, humano e criatura, selvagem e culto, masculino e feminino, velho e morrendo, jovem e recém-nascido. Somos brutos e por fazer, fragmentários. O Limiar é onde o joio e o trigo, quem bate e quem apanha se misturam. Mais explicitamente, o Limiar é onde encontramos a morte e podemos ser renovados e restaurados pelos poderes primordiais não-aprisionados, armazenados nas estruturas da mente. Essas energias vivendo na imaginação assumem a forma de deuses e demônios, ou fobias, compulsões e loucura, e se tornam visíveis ao habitarmos o espaço Limiar entre mundos. Algumas pessoas acham que os seres humanos são o chão onde moram os deuses, mas tenho certeza de que não é em nós, e sim no entremundo entre a gente e o espaço sagrado que os deuses finalmente se levantam.

A terceira fase de um rito de passagem é o Retorno. Mas o Retorno é para um lugar do qual nunca saímos, embora não soubéssemos que estávamos lá o tempo todo. No útero, um cordão umbilical físico nos liga à nossa mãe. Depois que nascemos, gera-se uma ferida quando esse cordão é rompido e nós somos separados do organismo materno. Também temos um umbigo social, que nos conecta à sociedade. Esse cordão é rompido no processo de criação da ferida da iniciação. Mas há ainda outro cordão umbilical, que não pode ser cortado. Esse cordão, como uma grande malha, ata-nos a todas as coisas que habitam através de nós e nas quais habitamos. É um cordão ou uma rede de vida que nos conecta ao útero da criação. Nós vivemos no e através do corpo desse cordão-malha tal qual vivemos na Via Láctea que se espicha pelo céu. É a isto que retornamos, a esse fio de vida que costura o tecido do nosso mundo. Aqui podemos alinhavar o manto da sociedade ao material da criação para restaurar e renovar a vida dos nossos povos e ajudá-los a ver que a cultura apenas floresce no campo da natureza. Nossas vidas acordam no corpo desse cordão invisível, pervasivo e sutil.

Assim, eu digo: “busque a iniciação”. Quando adentramos o eu, penetrando com consciência as zonas mais profundas da mente e do corpo, vemos que a ferida que se abriu na nossa psique e no corpo da Terra é um contínuo de sofrimento. Ego e relações, ego e cenário não são separados. São uma “unidade em processo”.

À medida que os aspectos ambientais da nossa alienação da natureza vão se tornando mais aparentes, os correspondentes sociais, físicos, mentais e espirituais surgem aos olhos. Consciente ou inconscientemente, desejamos nos libertar desse sofrimento. Alguns de nós se sentirão sobrecarregados e aprisionados por ele. Alguns, na tentativa de se livrar dele, causarão mais dor. À maneira dos budistas e dos xamãs, somos encorajados a encarar completamente qualquer forma que o nosso sofrimento venha a assumir, a confirmá-lo e, finalmente, deixar que ele nos incendeie de compaixão e sabedoria. Perguntamos: como lidar com esse sofrimento, essa “Ferida do Mundo”? Como a nossa experiência dessa ferida pode nos conectar à rede da criação? E como essa ferida pode ser uma porta para a compaixão e a ação compassiva?

Ritos de iniciação são imensas zonas de escuridão que fazem do obscuro, do contraditório, do poluído, do instável o solo da renovação. São as ocasiões de escuridão fecunda. Marie-Louise von Franz diz: “O primeiro passo geralmente é cair no local escuro, e ele normalmente se apresenta de forma duvidosa ou negativa – cair ou ser possuído por algo… Os xamãs dizem que um curandeiro começa, primeiro, caindo sob o poder dos demônios; aquele que sai desses recantos escuros se torna um curandeiro, e aquele que permanece é o doente… Você toma todas as doenças psicológicas como uma iniciação. Mesmo as piores coisas às quais sucumbe são um esforço de iniciação, pois você está em meio a algo que te pertence.”

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7 Comentários

  1. Leir Pontes disse:

    Intenso, reflexivo.

  2. Maria Célia De Santi disse:

    Intenso. Senti-me dentro de cada frase. Tive medo, compaixão e amor por mim, por ela e por toda a Terra, a quem amo como minha mãe primeira.
    Agradeço a oportunidade deste contato. Muitas bênçãos a todos.

  3. Ormando MN disse:

    Wow! Que profundo ^.^ que coragem e capacidade de meditar, jejuar e andar nesses lugares ^.^ que maravilha ler sobre essa visão xamânica e budista em sintonia ^.^ gratidão e alegria por essa tradução! vontade e ler o livro todo ^.^ om mani padme hum ^.^

  4. Decio Viana disse:

    Inspirador desconunal e simples como parir a vida

  5. paulo disse:

    Existe a tradução completa deste livro da Joan Halifax? Só por esse trecho já deixa com vontade de ler mais!

    • Caroline Souza disse:

      Olá, Paulo!
      Pelo que sabemos, este livro ainda não foi publicado em português. Mas vale dar mais uma pesquisada!
      Abraço.

      • paulo disse:

        eu procurei mas não achei, mas só por esse capítulo deu vontade de prosseguir a leitura. Eu conheço outro trabalho dela (outro livro) “presente no morrer” FANTÁSTICO! tão bom quanto esse trecho.

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