A importância da conexão e da presença no processo de recuperação e cura

Uma entrevista com Efu Nyaki


Por
Revisão: Cristiane Schardosim Martins e Dirlene Ribeiro Martins
Entrevista por: Lia Beltrão e Janaína Araújo

Esta entrevista foi gentilmente concedida à Bodisatva e publicada na edição 34, onde Efu Nyaki compartilha suas perspectivas profundas sobre a cura coletiva e individual. Em uma conversa enriquecedora, ela explora a importância da conexão e da presença na recuperação dos traumas, e nos presenteia com histórias e sabedorias valiosas de sua experiência na Tanzânia. Este diálogo oferece uma visão única sobre como os rituais comunitários e a interação humana podem contribuir para a transformação e o bem-estar coletivo.


Sentadas sob a sombra de um pé de moringa, tivemos o mérito de conversar sobre trauma transgeracional e coletivo com Euphrasia Joseph Efu Nyaki. Envolvidas por suas gargalhadas exultantes e o vibrante amarelo de seu vestido, ouvimos de Efu, como é conhecida, histórias de cura e aprendemos sobre a sabedoria dos anciãos de seu clã, na comunidade onde nasceu, na Tanzânia, região leste do continente africano.

Missionária há vinte anos, Efu fez de João Pessoa (PB) sua casa e construiu um espaço que, acreditamos, deixaria seus ancestrais bem felizes. A Afya, o Centro Holístico da Mulher, atua na promoção da medicina natural e holística e no cuidado com o meio ambiente no Alto do Mateus, um bairro de baixa renda da cidade. Efu é formada pelo Somatic Experience Institute de Boulder, Colorado (EUA), e é referência internacional como terapeuta e professora de Experiência Somática. Ela faz parte do prestigioso Legacy Faculty, um grupo de alunos seniores próximos selecionados pelo próprio criador do método, Dr. Peter Levine.

Nesta entrevista, Efu relaciona a desconexão da nossa ancestralidade com a desconexão do próprio planeta, e fala sobre o papel da espiritualidade na cura – ou negociação – de traumas coletivos e individuais. Com sua risada ampla, ela nos introduz também nas narrativas dos rituais tribais da sua comunidade, como o da reconciliação. Ela conta que quando na sua tribo as pessoas cometem algum erro utiliza-se uma folha de uma árvore que se chama Peregum (na Tanzânia se chama Issála) como um veículo para facilitar a compreensão e a paz. “Não precisa pedir desculpas. Quando a pessoa recebe aquela folha já significa que ela reconheceu. E, quando o outro recebe, ele compreende, também, a sua parte, sem palavras”, relata Efu, com leveza.

Revista Bodisatva – Hoje se fala muito sobre trauma. Inclusive, ouve-se muito a frase: “Todos temos traumas”. Mas o que define um trauma?

Efu Nyaki: Às vezes defino o trauma como um evento surpreendente, grande, que pode nos deixar sem defesas. Vamos tentar nos defender, correr, congelar. Mas às vezes não conseguimos fazer isso antes de sermos atingidos. Essa energia que sobra cria o trauma. Ficamos com essa energia de luta, fuga e congelamento no corpo, porque isso não se completa. E a vida toda é assim: vamos querendo fugir, lutar, sumir. Mas, ultimamente, tenho definido o trauma como reação. É como conseguimos, ou não, lidar com um evento, grande ou pequeno. Assim, minha reação é que fica como trauma. Os animais da selva não se traumatizam, porque eles não interpretam o evento. Um animal grande se aproxima correndo e ele corre, corre, se joga no chão e pula… Quando sobrevive, ele se sacode e se libera, automaticamente. E continua com a vida. O ser humano não. Por causa da nossa mente cortical, ficamos pensando: “Por que ele fez isso? Por que falou isso?”, interpretando, procurando razões. Então, tive o insight de definir o trauma como a nossa reação, seja ela física, mental ou emocional. É essa reação que se repete o tempo todo, que não sai da nossa vida. Já ouvi que não é verdade que o “trauma tem cura”, apenas aprendemos a lidar com ele. Quando em contato com violência sexual, abusos e situações de insegurança como ambientes de guerra e desastres, entramos numa dimensão de muita dor. Como lidar com as sensações e atravessar as imagens que nos congelam? O que seria a “cura” em situações como essas?

Efu Nyaki: Acho que Peter Levine [criador do método da Experiência Somática] foi muito genial nessa parte de “cura” do trauma. Acho que de todas as pessoas que têm abordagem com o trauma – e já estudei muitos deles –, o Peter Levine é pioneiro em incluir o corpo. Não posso apenas interpretar o trauma, porque, para onde ele vai? Para o corpo. Posso estar fisiologicamente reagindo – aonde vai? Para o corpo. Posso ficar emocionalmente presa naquela situação – aonde vai? Para o corpo, porque as emoções estão conectadas aos hormônios. Tudo acontece no corpo. Então, se eu quero curar o trauma, tenho que abordar o corpo. Por isso não falamos em “curar o trauma”, porque não é tipo “tomou um comprimido e curou”. Não é bem assim. A gente vai negociar e renegociar.

Como seria isso?

Efu Nyaki: Eu peço para minha cliente entrar em contato com o corpo dela, sentindo as sensações corporais, percebendo o que está acontecendo nela. E aí trago algo de recurso – qualquer coisa que faça a pessoa se sentir mais segura – e o corpo dela relaxa. Assim que o corpo vai relaxando, começa a liberar a energia traumática, que está presa nas interpretações, presa na tensão no corpo, porque o corpo queria reagir e não sabia como fazer isso. A energia começa a ser liberada. Mas a energia só é liberada quando nos sentimos seguras. Se eu não me sinto segura com vocês, eu me aperto [ela cruza os braços]. Fico o tempo todo na minha, não posso nem responder bem ao que vocês estão falando, porque não estou segura. Mas se eu faço um movimento, olho e sei que aqui estou em casa, vocês não podem me assustar tanto. Vou relaxando. Começo tremendo, e então… ah… libero a energia traumática. Resumindo: é a segurança e a presença no corpo que liberam o trauma. Quando toda a energia presa no sistema nervoso é liberada, a mente, principalmente a cortical, começa a entender as coisas de uma forma diferente. Quando a gente libera a energia traumática, conseguimos ver as coisas de uma forma diferente e compreender melhor o que quer que tenha acontecido no trauma. Isso a gente chama de significado. Você começa a ver outro significado no que chamava de trauma. Pode ser mesmo um trauma, mas agora olho de outra forma, compreendendo que aquilo não vai me pegar mais. Agora posso relaxar.

Como a senhora traz a espiritualidade para essa abordagem tão científica que é a Experiência Somática (SE)? A SE tem uma base fisiológica, de como o cérebro funciona, etc. Como a senhora integra isso?

Efu Nyaki: A espiritualidade tem relação com o recurso. Para mim, espiritualidade é ver o espírito presente em cada coisa, cada ser. Quando olho para essa planta, vejo o espírito dela. É o espírito que está nessa planta que me atrai. É o espírito que está em você que me chama a atenção. Se eu fico com medo de que alguém me ataque ou roube meu celular, se penso nisso o tempo todo, eu vou ficar só me segurando, pronta para atacar ou correr. Mas se eu vejo uma planta aqui, outra coisa saudável e linda ali, tudo fica bonito! Eu me conecto com tudo. O som bonito do pássaro… Todos os cinco sentidos ficam aguçados e conectados com o espírito de cada coisa. Para mim, espiritualidade é conseguir se conectar com todos os seres ao redor. Quando consegue se conectar, a gente se sente seguro e começa a liberar os traumas. Começa a se sentir seguro o tempo todo. Essa é a ligação entre a espiritualidade e a cura do trauma. Me sinto bem aqui e agora, com meu corpo e o que me cerca.

A senhora foi convidada para fazer parte do SE Legacy Team por conta especialmente de sua expertise e experiência na interseção de Trauma e Espiritualidade e Trauma Geracional. Poderia falar sobre trauma geracional?

Efu Nyaki: Se não estou conectada com minha mãe, meu pai, meus avós, eu me sinto sempre desconectada do mundo. Se me sinto sempre desconectada, olho para essa planta e ela nada significa pra mim. Inclusive, posso cortar, jogar fora. É esse o motivo de cortar árvores na Amazônia, de derrubar tudo da natureza, de jogar lixo no rio, é porque não estou conectada. Não estou conectada, aqui, com meus ancestrais, através da minha mãe principalmente. É ela quem vai me conectando com o mundo, com meu pai, com meus ancestrais, e eu me sinto bem. Então, quando vemos todos os ancestrais atrás de nós – ou sentimos que carregamos muitos deles dentro de nós – e olhamos para o que está ao meu redor, fica aquela energia boa, a sensação de que eles estão nos trazendo aqui. Então, estou conectada com o todo, me relacionando com o todo. E isso é espiritualidade.

A senhora trabalha em muitos lugares diferentes do mundo, com culturas diferentes, e provavelmente vê o mesmo padrão de desconexão em outros países. Do que observou todos esses anos como terapeuta, que história de liberação coletiva poderia nos contar?

Efu Nyaki: Costumamos dizer que, para curar um trauma coletivo, precisamos começar com o individual. Porém, o universo é muito maior do que nós. Então, não precisamos só nos prender no “meu, meu”. Quando pessoas que têm boa intenção fazem um círculo grande, eu convido: olha, lembra que a gente está conectado. Olha pra mim e eu olho pra você, sinta que eu estou sentindo você. “Ah, não estou conseguindo”, diz alguém. Experimenta, imagina. Se você entra na dinâmica, daqui a pouco as pessoas começam a se olhar. Até aquela pessoa que está com um trauma tão grande que não tem a oportunidade de fazer a cura individual, nesse coletivo ela consegue olhar para as pessoas, começa a se lembrar da mãe dela. Então, tem uma coisa muito bonita de cura, que pode acontecer no coletivo e no individual. Isso requer facilitadores muito presentes, porque o facilitador precisa ter um continente grande.

Olhar gera conexão. O Stephen Porges, da Teoria do Polivagal, chama isso de engajamento social. É altamente importante. Quando olho pra vocês, eu me sinto segura, porque sinto que vocês estão aqui comigo. Mas, se olho pra você e você não me olha, é como se fosse “nossa, o que ela está pensando?”. Aí, começo a me sentir insegura, do nada. A cura coletiva acontece quando temos alguém que consegue segurar o público, para o público conseguir se conectar. Então, eu acredito que a cura do trauma coletivo acontece quando os indivíduos têm uma intenção e a vontade de curar seus traumas. E isso vai se completando com o coletivo.

Na Teoria Polivagal, fala-se também de como o nosso corpo regulado, nosso sistema regulado, ajuda a regular o do outro, né?

Efu Nyaki: Exatamente! É disso que estou falando. Talvez meu sistema não esteja tão regulado, mas eu olho pra você e você me transmite uma coisa boa. Pequena. “Bom, ela está me julgando, mas tem uma coisinha lá por trás que está bem”. Aí, de repente, meu corpo relaxa um pouco, e o teu também relaxa um pouco. No vaivém, a gente vai corregulando: eu estou curando você e você está me curando; eu estou me sentindo mais aqui, você está se sentindo mais aqui. E, daqui a pouco, a gente está bem. Por isso encorajo muito, nos cursos, o olhar. Primeiro, convido as pessoas a olharem para o seu ambiente, porque, quando você consegue se conectar com uma planta, um bichinho, um besourinho no chão, você se sente bem. Depois, peço para olhar o ser humano e, quando você consegue, você começa a se sentir bem. E quando você se sente bem, o outro do seu lado também se sente bem. É uma orquestra.

Efu Nyaki: É uma orquestra! Isso eu já percebo há muitos anos, nos meus cursos. No círculo, uma pessoa que está bem vai influenciando outra; é estratégia para poder corregular o grupo.

Você nasceu na Tanzânia, um país com forte sabedoria comunitária e tribal. Que histórias de cura você traz da comunidade onde nasceu? Como, em seu clã familiar, você conseguiu integrar o seu trabalho de cura através da SE?

Efu Nyaki: Vou contar uma historinha pequena. Realmente, comunitário é a palavra. Quando pequena, eu via muitos rituais. Um deles é um ritual de reconciliação. Quando uma pessoa cometia um erro, ela pegava uma folha de uma árvore que se chama Peregum (na Tanzânia se chama Issála) e, na frente de todo mundo, no círculo, entregava a outra pessoa – uma pessoa que fosse muito respeitada. A pessoa que causou o dano entrega a folha e diz: “Por favor, eu peço que você entregue essa folha a fulano, fala para ele que reconheci que eu errei”. A pessoa leva a folha para aquela que viveu o dano. Às vezes, ela não quer receber, porque ainda está com raiva. Os mais velhos falam: “Receba! (risos). Receba, porque você também tem alguma parte nisso. Receba”.

Aí ela recebe. Assim que recebe, a folha amolece a pessoa e ela diz: “Tá bom”. Os dois seguram a folha juntos, e essa folha tem o poder de reconciliação. Depois disso, as duas pessoas entregam essa folha para um dos ancestrais, que leva para um lugar que a gente chama de terreiro. É um lugar onde eles fazem um ritual para entregar oferenda aos ancestrais. Quando se entrega a folha, pronto: reconciliou as duas pessoas, limpou. Não precisa pedir desculpas. Aquela folha já significa que eu reconheci. E, quando o outro recebe, eu compreendo, também, a minha parte, sem palavras.

Cresci vendo todos esses rituais acontecendo. Também ouvi muito o meu avô contando histórias. Quando estávamos recebendo a história, às vezes nos distraíamos, e meu avô falava: “Parem. Primeiro, todo mundo tem que olhar pra mim. Segundo, vocês têm que responder: uhum, uhum, uhum”. Cada criança respondia com sua voz e parecia uma música: “uhum, uhum, uhum”. Mas devagar. À medida que a gente ia fazendo isso, o coletivo entrava no ritmo, como se ficássemos anestesiados. Você não consegue mais se distrair. Fica só aqui. E ele contava o que ele queria. As histórias sempre eram sobre guerra, alguma coisa trágica que aconteceu. Mas ele sempre terminava com algo organizador, com um recurso. “O nosso clã é pequeno porque mataram muita gente. Mas, quando nossos ancestrais descobriram que muitos estavam sendo mortos, mandaram um caracol – desses caracóis que você vê aqui, que eu chamo de ancestral. Colocaram o caracol atrás da casa. Quando as pessoas do nosso clã iam para a guerra e voltavam machucados, se pegava o caracol, colocava no corte e aquela baba do caracol selava o espaço, curava. As crianças diziam: “Uhum!” Quando ele terminava, a gente perguntava: “Vô, esse caracol ainda existe?” A gente havia esquecido da guerra e ficado com o caracol que cura. Não é inteligente?

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