Foto: (Matthieu Ricard/ Reprodução)

A necessidade do altruísmo

Para Matthieu Ricard, essa prática é mais do que nunca uma necessidade, até mesmo uma urgência


Por
Revisão: Patrícia Soares de Resende
Tradução: Cláudia Laux

A Revista Bodisatva se alegra em publicar a tradução do texto “A necessidade de altruísmo”, publicado originalmente no dia 15 de maio de 2024 no blog do monge budista, humanitário, autor e fotógrafo Matthieu Ricard. Para mais discussões sobre o tema, recomendamos também o seu canal do Youtube Karuna-Shechen.  


Precisamos de um fio de Ariadne que nos possibilite encontrar nosso caminho no labirinto das preocupações graves e complexas. O altruísmo é este fio que pode nos permitir ligar naturalmente as três escalas de tempos – curto, médio e longo prazos –, ao mesmo tempo em que harmonizamos suas exigências.

O altruísmo é muitas vezes apresentado como um valor moral supremo, tanto nas sociedades religiosas, como nas laicas. Contudo, ele encontra pouco espaço em um mundo integralmente regido pela competição e pelo individualismo. Alguns até se revoltam contra a “ditadura do altruísmo”, visto como uma exigência de sacrifício, e defendem as virtudes do egoísmo.

No entanto, no mundo de hoje, o altruísmo é mais do que nunca uma necessidade, até mesmo uma urgência. É também uma manifestação natural da bondade humana, potencial de que todos nós dispomos, apesar das múltiplas motivações, frequentemente egoístas, que atravessam e, às vezes, dominam nossos espíritos.

Quais são, de fato, os benefícios do altruísmo, face aos problemas importantes aqui descritos? Tomemos alguns exemplos. Se cada um de nós cultivasse melhor o altruísmo, isto é, se tivéssemos mais consideração pelo bem-estar dos outros, os investidores, por exemplo, não praticariam especulações selvagens com as pequenas poupanças de quem confiou neles, com o objetivo de ganhar dividendos mais altos no fim do ano. Não especulariam sobre alimentos, sementes, água e outros recursos vitais à sobrevivência de populações mais pobres. 

Se tivessem mais consideração pela qualidade de vida dos que convivem conosco, os tomadores de decisões e outros atores sociais zelariam pela melhoria das condições de trabalho, vida familiar e social, e de muitos outros aspectos da existência. Eles se questionariam sobre o abismo que aumenta cada vez mais entre os mais desfavorecidos e os que representam 1% da população, mas detêm 25% das riquezas. Eles poderiam, enfim, abrir os olhos para o destino da sociedade da qual se beneficiam e sobre a qual construíram sua fortuna.

Se manifestássemos mais respeito pelos outros, todos nós agiríamos de maneira a reparar a injustiça, a discriminação e a pobreza. Seríamos levados a reconsiderar a maneira pela qual tratamos as espécies animais, reduzindo-as a não mais do que instrumentos de nossa dominação irrefreada, que as transforma em produtos de consumo.

Finalmente, se tivéssemos mais consideração pelas gerações futuras, não sacrificaríamos o mundo por nossos interesses efêmeros, deixando aos que virão depois de nós apenas um planeta poluído e empobrecido.

Pelo contrário, nos esforçaríamos em promover uma economia solidária, dando lugar à confiança mútua e valorizando os interesses dos outros. Pensaríamos na possibilidade de uma economia diferente, tal como agora apoiada por muitos economistas modernos, uma economia baseada nos três pilares da verdadeira prosperidade: a natureza, cuja integridade devemos preservar; as atividades humanas, que devem florescer; e os meios financeiros que garantam nossa sobrevivência e necessidades materiais razoáveis.

Durante muito tempo, a maioria dos economistas clássicos fundou suas teorias na hipótese de que os homens buscam interesses exclusivamente egocêntricos. Tal suposição é falsa, mas, ainda assim, fundamenta os sistemas econômicos contemporâneos, constituídos sobre o princípio do livre-comércio, teorizado por Adam Smith em “A Riqueza das Nações”. Esses mesmos economistas ignoraram a necessidade de que cada indivíduo cuide do bem dos outros, para o funcionamento harmonioso da sociedade, uma necessidade claramente formulada pelo mesmo Adam Smith na “Teoria dos Sentimentos Morais”.

Esquecendo também a ênfase dada por Darwin à importância da cooperação no mundo dos seres vivos, algumas teorias contemporâneas sobre a evolução consideram que o altruísmo só tem sentido se for proporcional ao grau de parentesco biológico que nos liga aos que carregam uma parte de nossos genes. Veremos como novos progressos na teoria da evolução permitem pensar na possibilidade de um altruísmo expandido, que ultrapassa os laços de proximidade familiares e tribais, e valoriza o fato de que os seres humanos são, essencialmente, “supercooperativos”.

Ao contrário do que sugere a avalanche de notícias chocantes que frequentemente ganham notoriedade nas mídias, muitos estudos mostram que, quando ocorre uma catástrofe natural ou outro tipo de drama, a regra, em geral, é mais a da ajuda mútua do que a do cada um por si, do compartilhamento do que da pilhagem, da calma em vez do pânico, da dedicação e não da covardia.

Além do mais, a experiência de milhares de anos de práticas contemplativas atesta que a transformação individual é possível. Essa experiência milenar foi agora corroborada por pesquisas em neurociências, demonstrando que qualquer forma de treinamento – seja a aprendizagem da leitura ou de um instrumento musical – leva a uma reestruturação do cérebro, tanto a nível funcional, como estrutural. Isso também é o que acontece quando treinamos para desenvolver o amor altruísta e a compaixão.

Trabalhos recentes de teóricos da evolução enfatizam a importância da evolução das culturas, mais lenta do que as mudanças individuais, porém, muito mais rápida do que as mudanças genéticas. Essa evolução é cumulativa e transmitida ao longo das gerações por meio da educação e da imitação.

Isso não é tudo. As culturas e indivíduos influenciam-se mutuamente sem cessar. Os indivíduos que crescem dentro de uma nova cultura são diferentes, porque seus novos hábitos transformam o cérebro, por meio da neuroplasticidade, e a expressão de seus genes, por meio da epigenética. Esses indivíduos contribuirão para a evolução de sua cultura e instituições e, assim por diante, de maneira que o processo se repita a cada geração.

Recapitulando: o altruísmo parece ser um fator determinante da qualidade de nossa existência, tanto presente, quanto futura, e não deve ser relegado ao status de nobre pensamento utópico alimentado por alguns ingênuos de bom coração. É necessário ter a perspicácia para reconhecê-lo e a audácia para afirmá-lo.

 

 

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