Pastor sugere que se faça o bom combate à instrumentalização das religiões em nosso país, para caminharmos juntos e juntas
Construir e caminhar em conjunto. É isso o que sinaliza para que plenamente abracemos a nossa dimensão humana o doutor em Sociologia, diretor-adjunto do Instituto Superior de Estudos Religiosos (ISER) e pastor batista Clemir Fernandes, durante a 24ª edição do “108 Horas de Paz”. O evento é organizado anualmente pelo CEBB, em parceria com o Instituto Caminho do Meio, em Viamão-RS, sempre na virada de ano. Clemir participou da mesa-redonda “Espiritualidade, Sociedade e Cultura de Paz”, no dia 30 de dezembro de 2023, ao lado de diversas autoridades religiosas e não religiosas, especialistas no assunto.
Por que é que a gente está aqui? Nós, todos e todas, buscamos o melhor para as nossas existências. Pelo menos em tese, tudo o que a gente faz e busca fazer diz respeito a essa caminhada continuada, em direção a uma vida melhor para todos e todas nós e todos os seres.
Nem sempre conseguimos aquilo que desejamos. Entre a nossa intenção e realização; entre os nossos mais profundos desejos e sonhos e aquilo que, de fato, conseguimos fazer.
Joseph Ratzinger, importante teólogo de tradição católica — que foi assessor do Concílio Vaticano II, da Igreja Católica e depois se tornou o papa Bento XVI —, diz em um livro sobre um passeio das religiões (incluindo o budismo) que não haverá paz entre as nações, enquanto não houver a paz entre as religiões. Não como espiritualidades e saberes profundos da condição humana, mas como estruturas de poder, de dominação e de posições político-ideológicas, que querem controlar e subverter ordens para os seus próprios interesses e benefícios.
Reitero isso não para condenar as tradições religiosas, mas em uma tentativa de aproximar a espiritualidade das próprias estruturas das religiões, para que elas sigam a espiritualidade e não o contrário.
A instrumentalização
Gostaria de trazer luz para o fato de que as espiritualidades, todas elas, têm saberes e sabores que nos alimentam a alma e a vida.
No entanto, todas essas espiritualidades, quando instrumentalizadas pelos sistemas religiosos, tendem a uma espécie de desvirtuamento daquilo que eram os seus propósitos.
É essencial perceber que as espiritualidades não são conflituosas entre si.
Vê-se que o nosso país possui uma tradição católica, com espiritualidade muito rica e bela, mas com instrumentalização dela, por exemplo, na política. Algo que se vê historicamente por aqui.
Um país, à laicidade, em que podemos encontrar em todos os parlamentos sinais de uma determinada religião. Os paradoxos de um país, que é laico, com presença institucional da religião em espaços públicos. Isso é um problema para nós, como sociedade.
Mas, dito isso, não minimizemos a importância da tradição católica como expressão de fé, de cultura, de espiritualidade e como Cultura de Paz, que tem figuras como o dom Helder Câmara e o Papa Francisco.
Intolerância
Essa tradição está presente no Brasil dessa maneira, assim como outro grupo que vem se insurgindo nos últimos tempos, com a tradição evangélica.
Ainda que tenha uma contribuição de Cultura de Paz — como aqui no Rio Grande do Sul, com a tradição luterana —, é notório que há, também, uma instrumentalização político-ideológica de dominação e poder que gera graves problemas para a nossa sociedade brasileira.
Analisemos, então, a tradição católica histórica, a tradição evangélica hoje e os conflitos que se estabelecem de intolerância com as religiões africanas. As violências, os assassinatos e as quebras de espaços sagrados.
Nós temos um problema, portanto, gerado por estruturas religiosas. E se desse lugar vêm os problemas, desse mesmo lugar, em algum momento, devem vir também os caminhos que vamos construir para sair desse imbróglio — uma palavra elegante para esse desafio que construímos.
Apesar da espiritualidade elevada, não é simples o mundo onde a gente vive. Essa estrutura de poder instaurada dentro das religiões é um desafio para todos e todas nós.
A “Rosa” também descansa
Trago como exemplo Rosa Parks, uma ativista negra estadunidense que, voltando do trabalho, cansada, resolveu se sentar em um ônibus e recusou dar lugar a um homem branco, quando solicitada.
A lei de Segregação Racial dos Estados Unidos dizia, em 1955, que ela não podia se sentar, porque era negra. Mas ela o fez diante de sua condição de cansaço, de trabalho e de desumanização imposta por uma espiritualidade instrumentalizada pela religião cristã daquele país. Ela simplesmente resolveu se sentar e permanecer no lugar, naquele lugar de existência.
Dentro dessa perspectiva, o seu líder religioso, Martin Luther King Jr., Pastor da comunidade local, foi chamado, porque Rosa havia sido levada para a cadeia, por ter contrariado a lei que dizia para ela não se sentar naquele determinado banco.
Então, veja: o Luther King que conhecemos, ele só se levantou, porque a Rosa Parks precisou antes se sentar. Luther King se tornou a pessoa que hoje todos reverenciamos no mundo, porque a Rosa se movimentou, tendo o seu incômodo provocado uma reação em cadeia.
A paz invade
Ele também não aconteceu por acaso. Luther King é um sujeito que havia lido um livro (também lido por Mahatma Gandhi) do escritor russo Leon Tolstói, uma expressão do Sermão da Montanha, proferido por Jesus Cristo.
O referido livro de Tolstói, chamado “O Reino de Deus Está Entre Vós”, ficou 100 anos sem ser publicado, recluso tanto pela Igreja Ortodoxa Russa, como pelo czar e, depois, pela Rússia que conhecemos hoje, na época a União Soviética.
Isso porque é um livro “impossível”, que fala de Cultura de Paz. E paz é uma coisa perigosa. Um paradoxo: como pode na mesma frase caber “paz” e “perigo”, não é?
A paz é uma coisa transgressora, positivamente perigosa e plausivelmente inquietante.
Então, redescoberto, Luther King lê esse livro por influência do próprio Gandhi e desenvolve uma cultura de não violência, a partir de uma espiritualidade libertadora, para o bem e a inclusão de todos e todas.
Ecoando a fé
Essa experiência — de profundamente incluir todos e todas, a partir de uma construção de paz para o bem comum — foi o que nos mobilizou para a construção, também, do “Fé no Clima”.
O ISER tem uma caminhada com essa temática desde antes da Rio-92 (ou Eco-92, como ficou conhecida a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada aqui no Brasil em 1992).
Ele foi fundado por Rubem Alves, escritor, educador, psicanalista e cientista, tendo o Instituto feito a primeira pesquisa no Brasil sobre a questão ambiental, antes mesmo da Rio-92, uma espécie de pesquisa de fluxo.
E depois, nesse mesmo contexto, fizemos o encontro no Rio de Janeiro, no período da própria Eco-92, em que Sua Santidade o Dalai Lama esteve presente, com outras pessoas, como dom Helder Câmara, tendo reunido 30 mil pessoas no Aterro do Flamengo.
Aquela experiência mobilizou a construção de vários programas. Nessa caminhada está o Lama Padma Samten, que foi o fundador do “Fé no Clima”, em 2015, outra iniciativa do ISER.
Cooperando com a COP
O grande evento que teremos no Brasil, daqui a dois anos, será a COP 30, em Belém do Pará. Em dado momento, liguei para o Lama e ele, de pronto, assinou o documento, aprovou e apoiou. Portanto, ele é uma referência para nós nessa construção.
Desejamos reunir não apenas 30 mil, mas 100 mil pessoas em Belém do Pará, porque a COP reúne milhares de pessoas. Na capital paraense ocorre anualmente a maior festa religiosa da América Latina: o “Círio de Nazaré”, que reúne dois milhões de pessoas.
Essa experiência do “Fé no Clima” tem sido de profunda esperança para nós. Em 2023, fizemos vários encontros de formação com jovens, a partir desse olhar para o meio ambiente e para a mudança climática.
E eles têm percebido que ou nos salvamos conjuntamente, ou estamos todas e todos perdidos. Não somente nós — todos os seres também.
O “Fé no Clima” é uma dessas muitas expressões em que conseguimos, a partir da temática ambiental e climática, colocar numa roda de conversa os povos originários com sua sabedoria ancestral. Povos com estilos de vida próprios, que nos desafiam a fazer do mundo um outro mundo; uma casa comum para todos e todas nós. Para adiarmos mais um pouco esse fim do mundo, como diz o Ailton Krenak.
Caminho Plural
Por isso, a importância desse encontro que temos feito com as religiões tradicionais dos povos originários, com religiões de matriz africana e as suas muitas vertentes e possibilidades.
Quando ouvimos os ensinamentos das tradições budistas, vamos nos dando conta, existencial e empiricamente, dessa capacidade humana de ampliar e divergir continuadamente.
Nas muitas tradições do budismo, nas muitas sabedorias que há, nas muitas tradições cristãs, nas muitas tradições indígenas e nas muitas tradições africanas, é comum pensarmos que se há uma coisa singular na condição humana é a pluralidade.
Se há uma coisa que nos é própria, é a capacidade de vermos sempre com outro olhar — e esse olhar sempre alargado e diferenciado. Diante dessa perspectiva, ninguém tem uma verdade completa.
Nessa intersecção, podemos encontrar caminhos interessantes, de convivência e construção de possibilidades e existência. Então, o “Fé no Clima” é um laboratório dessas tradições todas.
É nesse equilíbrio que temos o desafio de, juntos e juntas, construir e caminhar nesse Brasil desafiador. Apenas ao ajustarmos um outro tipo de lente — a das espiritualidades e não a das tradições religiosas somente — é que podemos ter esperança. É nessa esperança que temos construído esse diálogo.
É nesse ponto da mudança climática que o desafio está posto. Pode ser esse o espaço da profunda convergência das espiritualidades para que possamos, enfim, construir um mundo com 108 horas de paz e muito mais.
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