Uma contemplação da poesia haikai a partir de Matsuo Basho
Admirável
Não pensar ao ver um raio:
É fugaz a vida
Basho
Quando lemos um haikai, podemos senti-lo como água fresca que lava nossas mãos e escorre suavemente pela ponta dos dedos. A poesia no estilo haikai é composta por um tempo acariciado por fagulhas do cotidiano. Em sua feitura vemos anunciar-se um farfalhar de brevidade e sutilezas. Há na postura daquele que escreve haikais o paradoxal empenho de sustentar um estado, ao mesmo tempo, de presença e despojamento. É preciso estar aberto ao que advém e irrompe de modo inesperado, atento ao que surge sem avisar. É preciso versar, experimentar.
Um haikai tem a potência de inscrever rasuras no modo habitual e familiar de olharmos para o mundo, pois relaciona poesia e vida, conectando-nos com o que se afirma sem firmar nem tampouco formatar.
Imagem: New York Public Library
No livro Trilha estreita ao Confim acompanhamos o relato da trajetória de viagem realizada por Matsuo Basho, um exímio haicaista nascido em 1644, em Ueno, pequena cidade japonesa da província de Iga.
Nesse diário de bordo aprendemos que o haikai deriva do clássico tanga, poema japonês de 31 sílabas; aprendemos também que o haikai é um poema curto de 17 sílabas. Poderíamos seguir a leitura do livro deste modo, atentos à direção de formalização da escrita e às regras de produção dos haikais. No entanto, na feitura desse texto, optamos por ressaltar a dimensão de vivacidade que conecta o haikai a uma espécie de choque ou de súbito enlevo com relação ao que é efêmero: algo como um retrato móvel da impermanência dos dias.
O retrato a que aludimos, porém, não se apresenta estático, fixo e estanque, mas acompanha a nuvemovente ventania do viver.
Canto e morte
Da cigarra
Na mesma paisagem
Basho
Galho morto
E, nele pousado, um corvo:
Tarde de outono
Basho
Imagem: New York Public Library
Yves Bonnefay, no livro Haikais de Basho, aponta que em matéria de poesia a imperfeição é o cume. Essa frase emblemática pode nos deixar desconcertados. Como desembaraçar essa questão? Sem responder imediatamente, podemos apenas seguir a frase contemplando-a seguidamente: a imperfeição é o cume…
O que parece estar em jogo nessa espécie de koan levantado por Bonnefay é que a tessitura poética remete a um voluntário inacabamento, isto é: há um regime de abertura no qual se funda a potência da poesia. Poderíamos, ainda, dizer que a paisagem desenhada por um haikai utiliza-se de giz de cera para pintar os contornos e fronteiras de acontecimentos triviais.haikais nos mostram as variações e bifurcações de um olhar peregrino e experimentador que tateia, mas sem amalgamar.
Produzir um haikai exige, portanto, a presença de um olhar atento e curioso, tal qual o das crianças perante a imensidão do mundo:
Nuvemovente céu
Me impediu de contemplar
A lua cheia de outono
Basho
Para Alberto Marsicano, que fez o prefácio do livro de Basho anteriormente mencionado, a grande contribuição do poeta foi a de infundir na concisa forma do haikai a amplidão do pensamento zen. Olga Savary, por sua vez, no livro Haikais de Basho, afirma que espiritualmente o haikai mantém uma estreita relação com o Teatro Nô, o Ikebana ou Arranjo Floral e o Chanoyuou Cerimônia do Chá. É também neste livro que Roland Barthes irá nos dizer que Basho se comparava a um morcego: nem monge, nem leigo, nem pássaro, nem rato, mas algo de intermediário — estas teriam sido as palavras do poeta ao se (in)definir.
É interessante observarmos como a recusa de identidades sólidas comparece também na escritura poética de Basho, exigindo inclusive o uso de recursos para transformar e ampliar as palavras, tal qual em expressões traduzidas como nuvemovente ventania, raios rosalaranjados ou negroazul do céu.
Imagem: New York Public Library
Muitos poetas brasileiros se inspiraram no formato poético de haikais, ampliando horizontes de escrituras e trazendo seu frescor para o Brasil:
Trânsito parado
Os mesmos olhares
E ninguém se olha
Alice Ruiz
Som alto
Vento na varanda
A samambaia samba
Alice Ruiz
Branco
A raposa foge
Do silêncio da criança
Leve sobre neve
Fabio Rocha
Rio de mistério
Rio do mistério
Que seria de mim
Se me levassem a sério?
Paulo Leminski
No coração de um haikai, parece-nos então que há uma ode ao que é efêmero e processual. Ou, talvez mais acertadamente, uma ode ao que permanece presente quando tudo o mais se transforma e modifica: a dimensão insondável e misteriosa que compõe os movimentos de transformação do viver.
Contemplar um haikai, portanto, é um exercício de olhar para um dos quatro pensamentos que transformam a mente apontados pelo Buda, qual seja, a impermanência de todos os fenômenos. Contemplar um haikaiparece-nos que diz respeito então a um convite: o de conectar-se com a beleza inscrita nos movimentos que compõem a obra sempre aberta na qual consiste o viver.
BASHO, M. Haikais de Basho. Tradução de Olga Savary. São Paulo: Editora Hucitec, 1989. 82 p.
BASHO, M. Trilha estreita ao Confim. Tradução de Kimi Takenaka e Alberto Marsicano. São Paulo: Editora Luminuras, 1997. 95 p.
LEMINSKI, P. Toda Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 424 p.
ROCHA, F. Da Busca — Fabio Rocha [blog — internet]. Consultado em 11/06/2017. Disponível em: < http://dabusca.blogspot.com.br/search?q=Haikai&m=1>.
RUIZ, A. Poemas e haikais em A magia da Poesia [blog — internet]. Consultado em 11/06/2017. Disponível em: <http://www.poesiaspoemaseversos.com.br/alice-ruiz-poemas-e-haikais/>.
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2 Comentários
Tarde de mistério
Singelo
Cigarro apagado
Excelente o texto. Esclarecedor sobre a arte do haicai. Ótimo como fonte de bibliografia. Um estilo de escrita delicado e suave.