Uma contemplação da poesia haikai a partir de Matsuo Basho
Admirável
Não pensar ao ver um raio:
É fugaz a vida
Basho
Quando lemos um haikai, podemos senti-lo como água fresca que lava nossas mãos e escorre suavemente pela ponta dos dedos. A poesia no estilo haikai é composta por um tempo acariciado por fagulhas do cotidiano. Em sua feitura vemos anunciar-se um farfalhar de brevidade e sutilezas. Há na postura daquele que escreve haikais o paradoxal empenho de sustentar um estado, ao mesmo tempo, de presença e despojamento. É preciso estar aberto ao que advém e irrompe de modo inesperado, atento ao que surge sem avisar. É preciso versar, experimentar.
Um haikai tem a potência de inscrever rasuras no modo habitual e familiar de olharmos para o mundo, pois relaciona poesia e vida, conectando-nos com o que se afirma sem firmar nem tampouco formatar.
No livro Trilha estreita ao Confim acompanhamos o relato da trajetória de viagem realizada por Matsuo Basho, um exímio haicaista nascido em 1644, em Ueno, pequena cidade japonesa da província de Iga.
Nesse diário de bordo aprendemos que o haikai deriva do clássico tanga, poema japonês de 31 sílabas; aprendemos também que o haikai é um poema curto de 17 sílabas. Poderíamos seguir a leitura do livro deste modo, atentos à direção de formalização da escrita e às regras de produção dos haikais. No entanto, na feitura desse texto, optamos por ressaltar a dimensão de vivacidade que conecta o haikai a uma espécie de choque ou de súbito enlevo com relação ao que é efêmero: algo como um retrato móvel da impermanência dos dias.
O retrato a que aludimos, porém, não se apresenta estático, fixo e estanque, mas acompanha a nuvemovente ventania do viver.
Canto e morte
Da cigarra
Na mesma paisagem
Basho
Galho morto
E, nele pousado, um corvo:
Tarde de outono
Basho
Yves Bonnefay, no livro Haikais de Basho, aponta que em matéria de poesia a imperfeição é o cume. Essa frase emblemática pode nos deixar desconcertados. Como desembaraçar essa questão? Sem responder imediatamente, podemos apenas seguir a frase contemplando-a seguidamente: a imperfeição é o cume…
O que parece estar em jogo nessa espécie de koan levantado por Bonnefay é que a tessitura poética remete a um voluntário inacabamento, isto é: há um regime de abertura no qual se funda a potência da poesia. Poderíamos, ainda, dizer que a paisagem desenhada por um haikai utiliza-se de giz de cera para pintar os contornos e fronteiras de acontecimentos triviais.haikais nos mostram as variações e bifurcações de um olhar peregrino e experimentador que tateia, mas sem amalgamar.
Produzir um haikai exige, portanto, a presença de um olhar atento e curioso, tal qual o das crianças perante a imensidão do mundo:
Nuvemovente céu
Me impediu de contemplar
A lua cheia de outono
Basho
Para Alberto Marsicano, que fez o prefácio do livro de Basho anteriormente mencionado, a grande contribuição do poeta foi a de infundir na concisa forma do haikai a amplidão do pensamento zen. Olga Savary, por sua vez, no livro Haikais de Basho, afirma que espiritualmente o haikai mantém uma estreita relação com o Teatro Nô, o Ikebana ou Arranjo Floral e o Chanoyuou Cerimônia do Chá. É também neste livro que Roland Barthes irá nos dizer que Basho se comparava a um morcego: nem monge, nem leigo, nem pássaro, nem rato, mas algo de intermediário — estas teriam sido as palavras do poeta ao se (in)definir.
É interessante observarmos como a recusa de identidades sólidas comparece também na escritura poética de Basho, exigindo inclusive o uso de recursos para transformar e ampliar as palavras, tal qual em expressões traduzidas como nuvemovente ventania, raios rosalaranjados ou negroazul do céu.
Muitos poetas brasileiros se inspiraram no formato poético de haikais, ampliando horizontes de escrituras e trazendo seu frescor para o Brasil:
Trânsito parado
Os mesmos olhares
E ninguém se olha
Alice Ruiz
Som alto
Vento na varanda
A samambaia samba
Alice Ruiz
Branco
A raposa foge
Do silêncio da criança
Leve sobre neve
Fabio Rocha
Rio de mistério
Rio do mistério
Que seria de mim
Se me levassem a sério?
Paulo Leminski
No coração de um haikai, parece-nos então que há uma ode ao que é efêmero e processual. Ou, talvez mais acertadamente, uma ode ao que permanece presente quando tudo o mais se transforma e modifica: a dimensão insondável e misteriosa que compõe os movimentos de transformação do viver.
Contemplar um haikai, portanto, é um exercício de olhar para um dos quatro pensamentos que transformam a mente apontados pelo Buda, qual seja, a impermanência de todos os fenômenos. Contemplar um haikaiparece-nos que diz respeito então a um convite: o de conectar-se com a beleza inscrita nos movimentos que compõem a obra sempre aberta na qual consiste o viver.
BASHO, M. Haikais de Basho. Tradução de Olga Savary. São Paulo: Editora Hucitec, 1989. 82 p.
BASHO, M. Trilha estreita ao Confim. Tradução de Kimi Takenaka e Alberto Marsicano. São Paulo: Editora Luminuras, 1997. 95 p.
LEMINSKI, P. Toda Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 424 p.
ROCHA, F. Da Busca — Fabio Rocha [blog — internet]. Consultado em 11/06/2017. Disponível em: < http://dabusca.blogspot.com.br/search?q=Haikai&m=1>.
RUIZ, A. Poemas e haikais em A magia da Poesia [blog — internet]. Consultado em 11/06/2017. Disponível em: <http://www.poesiaspoemaseversos.com.br/alice-ruiz-poemas-e-haikais/>.
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2 Comentários
Tarde de mistério
Singelo
Cigarro apagado
Excelente o texto. Esclarecedor sobre a arte do haicai. Ótimo como fonte de bibliografia. Um estilo de escrita delicado e suave.