Chögyam Trungpa Rinpoche propõe a criação de uma nova relação com o dinheiro, menos séria e solene, em que olhamos as coisas simples e diretamente
Neste trecho do capítulo 12 do livro Trabalho, sexo, dinheiro: O sagrado na nossa vida diária e o caminho da atenção plena, Chögyam Trungpa Rinpoche, mestre de meditação budista, professor e artista, fundador da Universidade de Naropa e da associação Shambala International, ensina-nos a observar a quantidade de energia que desperdiçamos para manter nossa relação com o dinheiro e a nossa falta de bom humor. Traduzido por Oddone Marsiaj, o texto foi publicado com a autorização da Editora Cultrix na edição 33 da Revista Bodisatva, disponível em nossa loja.
É interessante que, se você não prestar muita atenção, o tempo todo, ao processo de dar e receber dinheiro, sem dúvida não o gastará da forma correta. Se você não der a seu dinheiro a atenção plena e não tiver consciência de quanto ganha e de quanto gasta, ele simplesmente voará pela janela, mesmo que você tenha milhões de dólares no bolso. Se, em vez disso, você se der conta de quantas pessoas trabalharam arduamente para ganhar essa cédula em especial, de quanta energia foi despendida por ela, então começará a pensar mais cuidadosamente no ato de comprar e vender. Começará a desenvolver um relacionamento com o dinheiro. É outra relação na qual podemos ver quanto da nossa energia nós desperdiçamos. Vemos – não necessariamente só em relação ao dinheiro – o quanto abusamos de nossa energia nas mais diversas situações. Gostaríamos de obter algum tipo de resposta em uma situação; por isso, gastamos mais energia do que a necessária. Muitas vezes recebemos uma resposta, mas não a resposta completa.
Aqui, o dinheiro representa o princípio da energia, com o qual você pode se conectar quando tem consciência de quanto está ganhando. Não é bom pensar: “Se eu gastar mais, ganharei mais” – e coisas assim. Você não ganhará mais. Precisa descobrir as causas dos gastos, bem como as dos ganhos. A causa das suas despesas é muito importante. Você tem uma sensação de equilíbrio e amor ou emprega sua energia com o fim de obter poder sobre outra pessoa e fazer-lhe exigências? Esse tipo de dispêndio de energia é, em certo sentido, uma moeda espiritual em si própria, a qual se traduz, no mundo, pelo dinheiro.
Desse ponto de vista, cada dólar que você ganha ou gasta representa sua energia do momento. Se você abusa dos dólares, se os joga fora gastando-os distraidamente, então está desrespeitando sua energia. Você perdeu a noção de quanta energia precisa gastar para obter um produto qualquer. Se examinarmos o problema por esse ângulo, descobriremos que nossa maneira de lidar com o dinheiro depende de uma característica básica do nosso estado de espírito. Devemos encarar o problema sobre a óptica de dispêndio de energia e de como vamos dar a essa energia um uso adequado. Obviamente, comunicação e intercâmbio ocorrem o tempo todo. Como usar isso?
Parece que o dinheiro faz uma enorme diferença no processo de nossa comunicação e relacionamentos – em virtude das nossas atitudes preconcebidas em relação a ele. O dinheiro se tornou um ponto-chave. Se um amigo se recusa a pagar sua parte na conta do restaurante, automaticamente você é invadido por uma sensação de ressentimento ou de afastamento. Ocorre uma ruptura imediata na comunicação. Assim, o dinheiro não é apenas uma coisa física, mas tem muito a ver com o princípio da energia – que está relacionado com nossa atitude perante a ele. O fluxo de energia das nossas ideias preconcebidas torna-se a moeda de troca. Nossas ideias preconcebidas tomam efetivamente o lugar do dinheiro. Por isso, a questão do dinheiro se torna a questão do modo como você se relaciona com a energia de suas ideias preconcebidas. Nessa situação, o dinheiro está relacionado com o orgulho do ego, bem como com o gasto de energia do ego. Mas o que acontece quando você transcende essas fixações egoístas por meio da disposição de ajudar outras pessoas?
Nesse caso, quando você assume o ponto de vista da abertura e do espaço, não pensa em termos de dinheiro, de modo algum. Em vez disso, produz riqueza a fim de libertar as outras pessoas que pensam em termos de dinheiro. Você pode fazer isso oferecendo a alguém uma xícara de chá e um pedaço de bolo ou uma caixa de chocolates. Se você pagar por uma xícara de chá, o dinheiro não entrará nisso de modo algum – será apenas uma xícara que contém chá e água quente. Tudo depende das pessoas: algumas pensam em termos de dinheiro, e isso são ideias preconcebidas, ou em termos de coisas reais. Se você pensa nas coisas comuns tais como são, em vez de relacioná-las a um valor monetário, destruirá a ideia conceitualizada de dinheiro.
Estabelecerá uma comunicação verdadeira, que acarreta redução do ego. Você pode ver as coisas simples e diretamente, sem pensar no dinheiro que elas custam. Não importa quanto se paga pelas coisas tais quais são. O valor de um objeto não é o que aparece na etiqueta de preço. É o valor que você lhe atribui quando sente uma ligação essencial com ele. Mas também é importante e significativo simplesmente dar o objeto de presente. Ele pode não valer nada do ponto de vista monetário, mas talvez seja precioso devido ao contexto emocional.
Para desenvolver o desapego do dinheiro, você não precisa propriamente cortar seus gastos. Tudo depende de sua atitude perante o dinheiro, conforme perceberá ao ver as pessoas comprando coisas. Se elas estiverem comprando diamantes em uma joalheira, seus rostos, ao escolher e negociar uma pedra, apresentam uma expressão muito definida, preconcebida, resultado de uma atitude mental absolutamente fixa. Seus movimentos revelam o que querem; a transação toda é cuidadosamente ponderada. No entanto, se você tiver um monte de dinheiro e desejar comprar diamantes, não precisará negociar tão meticulosamente. Se vir um diamante que deseja, simplesmente desembolse o dinheiro e compre! Pode custar muito, mas isso não significa que você tenha de transformar a aquisição em um cavalo-de-batalha, atribuindo-lhe maior importância. Não gaste suas ideias preconcebidas.
“Você pode ver as coisas simples e diretamente, sem pensar no dinheiro que elas custam. Não importa quanto se paga pelas coisas tais quais são. O valor de um objeto não é o que aparece na etiqueta de preço. É o valor que você lhe atribui quando sente uma ligação essencial com ele.”
Neste caso, as ideias preconcebidas são expressas em termos do sistema monetário. O peso de seus preconceitos é o valor. O número de camadas de preconceito que você está depositando sobre a situação é o que você está gastando. Quando gasta, você sente a perda de um preconceito, mas adquire outro em virtude do preço do que acabou de comprar. Muitas vezes, essa é a atitude que está por trás de uma transação de compra e venda. Ela tende a transformar tudo em uma herança de família.
Sua origem é a seriedade, a falta de senso de humor. Esta é a base da evolução desse tipo de sistema monetário – nenhum senso de humor. Quando você vê uma cédula de grande valor, não a encara com senso de humor. Encara-a com solenidade, o que, de certa forma, chega a ser muito embaraçoso. Lidar com dinheiro se torna um jogo muito sério, solene e cheio de significado. Mas, se você tem senso de humor, nada disso acontece. A cédula pode ser qualquer coisa – até um simples pedaço de papel. É interessante vê-la como apenas um pedaço de papel acrescido de significado. O mero contraste entre o pedaço de papel e seu significado já desperta nosso senso de humor. Percebemos a leveza e o peso ao mesmo tempo. Mas poderíamos assumir uma atitude completamente diferente.
No exemplo das pessoas que compram diamantes, parece que elas estão comprando de uma forma muito sensata. Estão totalmente empenhadas nessa troca de riqueza. Uma pessoa está vendendo o diamante e a outra está pagando milhares de dólares por ele. Essa troca aparece em seus rostos. Elas parecem bebês prestes a receber um delicioso sorvete na boca. Há nisso uma enorme concentração de sentimento. A mesma expressão facial intensa pode ser vista nos cassinos.
Não estou aprovando ou desaprovando; estou apenas percebendo o lado divertido. De modo geral, não recomendo que você faça ou deixe de fazer alguma coisa. Apenas exemplifico o contraste entre isto e aquilo. Neste caso, nota-se o aspecto ganancioso e intenso da situação e do rosto, em oposição a uma atitude perante o dinheiro na qual se poderia negociar de maneira natural, realizar a troca com despreocupação. Você poderia facilmente ir até uma joalheira e gastar milhares de dólares comprando um diamante. Poderia fazer isso despreocupadamente, sem dar muita importância ao fato. Suponho que eu próprio não tenha uma mentalidade de milionário. Gasto dinheiro muito facilmente, mas obtenho as coisas que quero e usufruo delas com muito gosto e prazer.
No entanto, não falta um certo grau de discernimento no processo como um todo. Escolhem-se determinadas qualidades. Podemos comparar a qualidade de uma coisa com a de outra. Quando quero comprar roupas, por exemplo, vou a uma porção de lojas e comparo um artigo com outro. Eu mesmo passo por esse processo. É assim que deve ser, desde que a pessoa não pense nele com muita avidez e demasiada seriedade. Essa abordagem não é séria. Toda vez que você vir outra roupa, achará graça. Sorrirá. Fará comentários sobre essa roupa.
Para você aprimorar sua atitude com relação ao dinheiro, eu não recomendaria medidas extremas, como, por exemplo, rasgar uma cédula de um dólar como exercício espiritual ou usá-la para acender um charuto. Não importa que você faça isso em particular ou em público, rasgar a cédula não ajuda muito, porque você a rasga com um gesto cheio de significado. Você não rasgaria um simples pedaço de papel de maneira significativa, não é verdade? Mas rasgar a cédula de maneira significativa é o mesmo que não rasgá-la. Acho que esse ponto é bem ilustrado pela atitude de Mahatma Gandhi em relação às pessoas consideradas de casta inferior na Índia. As castas mais baixas eram chamadas de intocáveis. Depois do movimento de Mahatma Gandhi, elas passaram a ser chamadas de harijan, o que significa “filhos dos deuses”. No fundo, porém, é a mesma coisa. Mesmo dando a essas pessoas o nome especial de “filhos dos deuses”, você ainda manterá a mesma atitude em relação a elas – só o nome mudará. Não estou aqui menosprezando Gandhi; estou esclarecendo que você pode mudar o preto para o branco na superfície, mas sem alterar nada por baixo. Ocorre o mesmo quando se rasga uma cédula de um dólar – ainda se tem uma atitude especial perante ele. Por isso não acredito nesse pequeno gesto exibicionista.
“O problema surge quando você menospreza outras coisas para celebrar seu próprio sucesso. Quando você começa a pensar que seus feitos são maiores que os de outras pessoas, quando a competição entra em cena, sua ambição torna-se parte do ego, porque o processo de ego vê em tudo uma guerra.”
No caso da cédula de dinheiro rasgada, trata-se de transformar os apegos do ego em algo diferente, em uma abordagem diferente. No entanto, esses apegos nascem no mesmo ponto. Você apenas muda o apego de lugar. Quando abre a mão em um lugar, começa a fechá-la em outro. Geralmente, quando gastamos dinheiro, pagamos para obter certo resultado psicológico. Se nossa atitude não for a de quem compra determinada energia com dinheiro, está tudo bem. Tentamos comprar ideias preconcebidas com nosso dinheiro. É como trocar um torrão de terra por ar. Porque o dinheiro é muito comum, banal e normal, nós o gastamos a fim de conseguir algum tipo de criatividade. Essa é a atitude errada. Se você pensar em gastar para expandir sua energia, ótimo. No entanto, muito poucas pessoas pensam assim. Gastar dinheiro para obter algo criativo reduz-se rapidamente a números e quantidades. No instante em que começa a medir a quantidade de sua sabedoria, você passa a empregar a abordagem errada. Medir a quantidade de sua sabedoria é a última coisa que você quer fazer.
Poderíamos dizer que dinheiro é apenas dinheiro ou, então, um símbolo – mas as duas afirmações significam a mesma coisa. Dinheiro é dinheiro, mas justamente por causa disso é um símbolo. Por conseguinte, discutir dinheiro é muito chato. Nada acontece. É muito deprimente. Por outro lado, é bom ter dinheiro, não é? Ter dinheiro não deveria ser um fardo, mas um prazer. É prazeroso ter dinheiro porque podemos gastá-lo com coisas que valem a pena. Você pode canalizar suas energias de uma maneira proveitosa. Não precisa se sentir culpado por lidar com dinheiro. Isso é tudo. Sentir-se culpado por lidar com dinheiro é como sentir-se culpado por respirar o ar. Algumas pessoas podem se sentir extravagantes porque estão respirando o ar de outras. Lidar com o dinheiro não é nada de negativo, não tem nada de mau.
Apesar disso, muitos de nós tendemos a pensar que o dinheiro está ligado apenas ao materialismo e, portanto, é mau. Eu estava jantando com um proeminente empresário e alguns dos seus colegas em Nova York. Ao longo de toda a refeição, ele se desculpou por ser uma pessoa materialista. Você não deve, de modo algum, se sentir culpado por causa do dinheiro e por lidar com objetos materiais. Não há nada de errado com isso. Você pode fazer seus negócios completa e corretamente. O problema é o que está por trás disso. É pensar em construir um negócio como quem constrói um império. O dinheiro provoca uma tentação muito interessante, a tentação do imperialismo. Você começa a construir todo tipo de coisa com o dinheiro – seu reino pessoal. Em seguida, tende a se descontrair quando já tem dinheiro suficiente para brincar com ele. A certa altura, quando você está saboreando o orgulho de ter dinheiro, a corrupção se instala. É perigoso supor que se pode jogar no campo do ego; só se pode brincar com as coisas.
A ambição não é um problema na relação com o dinheiro, a menos que você esteja tentando construir um império. Se você estiver trabalhando com os fatos e os números de uma situação, acho que não há nada de errado em tentar ser bem-sucedido. O problema surge quando você menospreza outras coisas para celebrar seu próprio sucesso. Quando você começa a pensar que seus feitos são maiores que os de outras pessoas, quando a competição entra em cena, sua ambição torna-se parte do ego, porque o processo de ego vê em tudo uma guerra.
Você pode se emocionar profundamente com o sucesso do que faz. Talvez deseje muito realizar algo em que possa usar bem e plenamente sua inteligência. Associado a isso há certo senso de elevação, a sensação de pôr as coisas em prática. Poder-se-ia dizer que isso é emoção, ou entusiasmo, em certo sentido. Mas, em outras circunstâncias, sua emotividade pode ser egoísta – quando, por exemplo, você quer de todos os modos ganhar o jogo. Se a ambição envolve ou não o ego, isso depende de você estar praticando ou não um jogo competitivo. Se estiver, estará também conectado com o ego. Caso não se entregue ao jogo competitivo, mas queira entrar em ação, o ego estará ausente. Os bodisatvas anseiam por ajudar os outros a encontrar o seu caminho, e isso pode ser chamado de uma expressão de sua emoção. Podemos dizer que compaixão é emoção ou um intenso desejo de colocar as coisas em prática. Mas essa não é a emoção comum no sentido do ego.
Se tiver dinheiro, você não precisa usá-lo o tempo todo, a cada passo. Você pode tanto aprender a usar as coisas que já possui quanto a comprar as que não tem. A psicologia deveria ser a de que você pode ter muito dinheiro, mas ainda assim, ocasionalmente, pedir carona. Viajar com alguém. Não pedirá carona por estar desesperadamente pobre. Nesse caso, pedir carona – que aqui não tem necessariamente o sentido literal – é desfrutar cada momento de seu relacionamento com as pessoas, apreciar uma caminhada e ser independente. Se você tem dinheiro, pode se sentir totalmente impedido de fazer qualquer coisa natural e simples. Isso é muito triste. Se você é rico, pode comprar flores artificiais caríssimas em vez de ter flores naturais – compradas ou cultivadas por você mesmo em sua casa. Elas não precisam ser muito caras. O importante é trabalhar com as coisas tais quais são, tenha você muito ou pouco dinheiro.
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