Em entrevista à Bodisatva, Anne fala do trabalho como catadora e conta como a vivência de morar na rua a inspirou a criar projetos para levar dignidade às pessoas em situação de vulnerabilidade social
O olfato sensível vem da infância. Já o desejo de ajudar as pessoas em situação de vulnerabilidade vem do tempo em que Anne Caroline Barbosa, hoje com 29 anos, morou na rua, jornada que lhe deu a perspectiva exata de quem vive à margem, vendo de forma crua o sofrimento de quem perdeu a esperança de uma vida com dignidade.
Nascida em Corumbá, no Mato Grosso, Anne foi para São Paulo para tentar uma vida melhor. De início, não foi o que aconteceu. Sem emprego e amargando a tristeza pela distância da primeira filha, que foi morar com o pai, Anne acabou se viciando em cocaína, e mais tarde, em crack. Na época, passou a trabalhar como catadora de resíduos com seu atual marido, Lucas, de 23 anos, para sustentar o vício.
Certo dia, Anne passou mal e descobriu que estava grávida. Foi como se uma chave tivesse virado, e um senso de responsabilidade surgisse imediatamente, fazendo com que deixasse as drogas, ela conta. A segunda filha nasceu com problemas cardíacos, e com a pandemia, tornou-se arriscado que ela continuasse morando com os pais, que seguiam trabalhando com resíduos em condições precárias em uma comunidade no bairro do Carandiru. A menina então foi morar com a bisavó no interior. Longe das filhas, Anne segue com o senso de responsabilidade para com outras vidas, levando ajuda por onde passa, de alimento a artigos de beleza.
Além do trabalho direto com a reciclagem, Anne também produz conteúdo para as redes sociais, falando da importância da profissão das catadoras e catadores nos seus perfis do Instagram (@annecatadora e @perfum.a.dor) e na série Cataflix, do canal Pimp My Carroça, no YouTube. Nesta entrevista, o destaque vai para o projeto Perfum.A.Dor, que ela vem desenvolvendo para levar produtos de higiene e beleza às mulheres e homens em situação de vulnerabilidade.
Na minha infância sempre fui muito atraída pelos cheiros. Tenho muitas lembranças através de fragrâncias e odores. Sou uma pessoa que adora perfumes, até por isso o Perfum.A.Dor. Brinquei muito na rua, era espirituosa e extrovertida. Hoje eu represento bastante da criança que fui, comunicativa, curiosa.
Embora eu tenha sido sempre muito enérgica, eu não sabia como aplicar essa energia. Sempre tive vontade de participar de algum projeto ou ser voluntária. Fiz algumas coisas na minha cidade mesmo, quando estava na faculdade. Nos reuníamos e entregávamos ovos de Páscoa nas comunidades carentes, por exemplo. Mas sempre tive comigo isso desde criança, de doar, não só coisas materiais, mas doar a escuta. Eu gostava muito de ir no asilo e ouvir as pessoas.
Mas especificamente quanto ao ambiente da reciclagem, não cresci com este conceito de reutilização, o qual desenvolvi durante a minha jornada. Apesar de ser filha de professores, esse era um conceito muito pobre dentro da minha família. Esse lugar que eu assumi hoje une as duas coisas, a capacidade de me comunicar herdada de pais professores e o meu anseio por uma vida mais digna para pessoas em situação de vulnerabilidade.
Eu saí da minha cidade por conta de um relacionamento conturbado com o pai da minha filha. Vim para São Paulo em busca de uma vida melhor e ficamos por um mês na casa de uma pessoa com quem eu já estava conversando. Mas depois que cheguei em São Paulo perdi a guarda da minha filha para o pai. A pessoa que me acolheu acabou me colocando para fora. Eu não conhecia ninguém e então consegui uma estadia num albergue na região do Canindé, onde fiquei por quatro meses.
Por um lado, foi uma experiência muito incrível. Imagine que éramos vinte e cinco mulheres morando num mesmo quarto, entre jovens e idosas. A parte ruim é que ninguém tem tempo para ninguém, pois cada uma está buscando sua sobrevivência. Virei “a amiga” das mulheres idosas. Eu ia com uma numa consulta médica, ia com outra fazer compras. Uma delas recentemente entrou em contato para me agradecer porque eu havia ensinado ela a usar o celular. Eu sempre tive esse senso de ajudar e dar mais autonomia para as pessoas em situação de vulnerabilidade.
Por outro lado, havia a discriminação. Passei meses deixando currículo para vagas de designer gráfica, que é minha profissão. Comecei, então, a conhecer um outro aspecto da cidade grande. Eu romantizava a correria das pessoas ocupadas, sem o marasmo do interior. Então, percebi que a discriminação com pessoas em situação de vulnerabilidade começa no momento em que, por estar morando num albergue, o mercado se fecha para você. Justamente a pessoa que mais precisa é a que é menos acolhida. Eu já estava frustrada com a perda da minha filha, e sem conseguir emprego ficava cada vez mais triste.
Fui então apresentada para o meu primeiro vício – a cocaína. Nessa época também conheci meu atual marido. Eu não sabia que ele era usuário de crack, o que só fui saber por outras pessoas. Foi nessa época que descobri que os usuários de crack são discriminados inclusive por usuários de outras drogas, porque é uma droga que rouba a dignidade da pessoa de uma maneira muito mais cruel. Comecei a usar com ele e com isso não conseguíamos mais conviver com as outras pessoas no albergue, pois as regras e horários são muito difíceis de serem observados na situação de dependência. Sair do albergue trouxe um pouco de respiro porque o albergue é triste em muitos sentidos, de higiene à convivência.
Conseguimos nos estabelecer numa praça à beira da Marginal Tietê e trabalhávamos na reciclagem para sustentar o vício. Foi com ele que aprendi a profissão de catadora.
E foi então que fiquei grávida. Como eu já tinha toda a tristeza por ter perdido minha filha para o pai, quando olhei o resultado do exame, virou uma chave dentro de mim e pensei que tinha acabado o tempo de usar drogas. Veio um senso de mãe e de responsabilidade. Para o meu marido foi um pouco mais difícil abandonar, mas conseguiu também. Até os seis meses da gravidez seguimos na rua, mas sem o uso de drogas. E nesse período eu falava muito com as pessoas para mostrar que era possível superar o vício, e muitos deles me ouviam, principalmente porque eu não era estranha, não vinha de fora, mas era alguém que tinha a mesma vivência deles. Conseguimos ver muitas pessoas pararem de usar. Eu vi que estava no lugar certo, no momento certo, com o entendimento correto.
As tentativas vindas de fora, como as internações compulsórias, raramente funcionam. O mais importante é tentar resgatar a força interna, o querer viver de novo. O uso do crack é consequência de muitas doenças. As pessoas estão ali por muitos motivos diferentes. Cada pessoa teria que ter uma escuta individual. Durante as entregas do Perfum.A.Dor e de outras ações sigo falando com as pessoas de forma individual, me colocando como um exemplo, tentando resgatar a humanidade delas.
Com seis meses de gravidez saímos da rua e fomos morar numa casa alugada em Osasco com a ajuda da família dele. Quando minha filha, a Melissa, nasceu, foi mais uma luta porque ela nasceu com problemas cardíacos, tendo ficado dois anos na fila de espera do SUS para ser operada, o que finalmente aconteceu, em 2020.
Depois disso, voltamos para a região do Brás, porque a reciclagem numa cidade do interior não era suficiente para o nosso sustento mínimo. Passamos a morar na comunidade de Zaki Narchi no bairro do Carandiru, zona norte de São Paulo, e a partir daí passei a refletir mais sobre o trabalho das catadoras e dos catadores, e da falta de reconhecimento das pessoas que trabalham na rua.
Sempre que eu sofria preconceito ou discriminação, eu pensava “caramba, eu comecei ontem, mas e a injustiça com as pessoas que fazem isso há vinte, trinta ou cinquenta anos, como algumas que já conheci?” Não havia nenhuma consideração pelas pessoas que por anos vêm despoluindo nosso ambiente, evitando que doenças se espalhem, recebendo em troca, ao contrário, violência e discriminação. E como sou uma pessoa muito indignada com a injustiça, pensava que isso tinha que ser falado. Além disso, eu tinha acesso à internet e podia me comunicar com as pessoas. Então decidi falar sobre isso, ainda que eu alcançasse apenas uma ou duas pessoas, já seria o suficiente para começar uma transformação.
Hoje para mim é uma grande honra poder compartilhar meu conhecimento e minha vivência com as pessoas, para que não apenas se conscientizem da parte ambiental, mas principalmente da parte humana, que para mim é o mais importante.
No Dia das Mães de 2020, eu estava bastante triste por estar longe das minhas filhas – uma morando com o pai no Mato Grosso do Sul e a outra com a bisavó no interior de São Paulo, por conta da pandemia e da nossa profissão, em virtude das questões sanitárias ainda mais frágeis para quem trabalha na rua.
Então, nesse Dia das Mães, pensei em tudo que já havia passado e mesmo estando triste, pensei que eu poderia escolher se ficava triste ou se queria fazer algo diferente. Pensei: “porque vou continuar cultivando a tristeza? Eu vou fazer algo diferente para transformar o dia de mulheres como eu!” Foi uma coisa meio relâmpago em que pensei em falar para as pessoas doarem os produtos que estavam esquecidos nas suas gavetas, porque nós mulheres sabemos que muitas vezes compramos coisas por puro consumismo e sequer usamos. Vamos comprando e abandonando.
Quando eu achava maquiagem ou produtos de higiene no lixo ficava muito feliz. Nesse período da rua eu sempre tentei, por mais difícil que fosse, ter um mínimo de higiene porque acabava diminuindo o preconceito que eu sofria. Sempre buscávamos, eu e meu marido, estar limpos, o máximo possível.
Comecei a refletir sobre isso e me dei conta de que podia unir o útil ao agradável porque se eu encontrava e ainda encontro produtos de higiene e maquiagem no lixo é porque as pessoas estão jogando fora. E tem tantas pessoas para quem isso é luxo, são pessoas que merecem essa atenção. Por isso resolvi recolher o que estava sendo colocado no lixo e colocar nas mãos de quem merece ser resgatada, daquelas mulheres que estão perdidas dentro da sua própria dor. Foi uma coisa maravilhosa para mim, embora pequena. É algo que está ao alcance de todas as pessoas, e eu incentivo não só pela doação em si, mas para que possamos desmistificar o medo de chegar nas pessoas em situação de rua, para quebrar um pouco dessa marginalização.
Na maioria das vezes a pessoa que está na rua é muito mais triste do que violenta. A pessoa está nutrindo uma tristeza e uma depressão por estar naquela situação. Eu mesma quando estava na rua, assim como outras pessoas que conheci, nunca fizemos mal a ninguém, muito pelo contrário, estávamos ali sofrendo a nossa dor. Então, esse projeto do Perfum.A.Dor é tanto fazer esses gestos de bem e de amor quanto de quebrar os preconceitos.
Vem da minha própria experiência da rua e das minhas lembranças da minha mãe, que era muito arrumada, maquiada, uma pessoa que chamava atenção pela elegância, apesar de ter vindo de família muito pobre. Eu ficava encantada com ela. Depois que cresci, me espelhava nela, e sempre gostei muito de me maquiar, de me cuidar. Eu era aquela mulher que passava um batom para ir na esquina. E como eu tinha sardas, com o sol intenso de Corumbá era importante tomar cuidados com a pele.
Quando fui morar na rua, foi muito triste. Como eu gostava de estar perfumada, de tomar um banho e me sentir limpa e renovada, quando isso foi arrancado de mim, foi arrasador. Eu me vi naquela condição e não era só a questão estética. Eu pensava: “caramba, minha dignidade foi arrancada a ponto de eu não ter acesso à higiene básica, não ter como tomar um banho, não ter um sabonete”, sabe? Durante o tempo que morei na rua, passei por muitos problemas de infecção urinária; problemas de pele por ter que dividir sabonete e toalha, nas raras oportunidades em que conseguia tomar banho; por estar em locais insalubres; e tantas outras situações degradantes. Foi muito duro, muito difícil. Não era só uma questão de higiene, mas de saúde.
O Perfum.A.Dor foi uma ação pontual ou vai seguir no futuro?
Foi uma ação pontual, mas seguimos arrecadando para fazer futuras entregas para mais pessoas. Queremos arrecadar um número bom de produtos. É importante poder atender o maior número de pessoas possível, porque como estive na rua, sei como é triste quando alguém acaba não recebendo porque acabou na sua vez. Estamos também num processo de criação de uma ONG nesse momento.
Sou adventista batizada, mas não tenho essa ideia de ir à igreja todo domingo. Sempre fui muito ecumênica. Já frequentei diversas religiões, como Seicho-no-ie, templos de umbanda, candomblé etc. Gosto de conhecer e sou muito aberta. Para mim, a religiosidade, acima de tudo, é arte. Eu sinto essa conexão com o maior. É tão estúpida a rivalidade dentro de algo que é tão misterioso, algo que é tão pessoal e tão íntimo. A minha religião é fazer o bem.
Tudo depende do meio em que você está inserida e do uso da droga, que tem o poder de alterar muito a personalidade, principalmente o álcool. O crack é uma droga que faz com que a pessoa fique com mais medo do que violenta. Já com o álcool as pessoas ficam mais violentas.
Por um lado, existem mulheres que se ajudam. Tem uma que se chama Maura, que sustenta oito crianças, entre filhos e netos, sempre com um sorriso largo. Existe muito isso na reciclagem, história de mulheres fortes, histórias de superação. Existe a cumplicidade quase como se fosse uma família, com mulheres trabalhando juntas, e que acolhem as crianças em situação de rua. São mulheres de muitos perfis e vivências, que um livro não seria capaz de contar.
Por outro lado, tem histórias de abandono. Como a de uma mulher que conheci no albergue, mãe de uma menina de dois anos. Eu vi a degradação dessa mulher, que acabou se envolvendo com um homem que além de ser usuário, viciava as pessoas. E essa mulher acabou indo morar com ele e perdeu a filha para o Conselho Tutelar. Ela sofre violência e vai definhando a cada dia. E ver isso acontecendo é muito triste, pois é uma vizinha sua, só que em vez de morar numa casa, ela mora numa maloca de lona, e vemos ela definhando sem fazer nada.
Sim, mas não tenho nem ideia de por onde começar, principalmente por serem em sua maioria mais tristes do que felizes. E, no entanto, eu sempre soube que eu devia estar ali, porque mudou o meu jeito de ver o mundo. Embora eu já tivesse o senso da doação, eu precisei estar na rua para saber o que é viver na pele a invisibilidade e a discriminação.
Eu sou a maior prova de que isso é possível. Eu saí da minha cidade onde vivia uma vida de classe média, com acesso aos bens materiais, embora sem muito afeto porque minha família nunca foi muito amorosa. Meu pais não foram pais, foram pessoas que tiveram filhos, uma convivência estranha, pesada. Por isso sempre tive essa ânsia de sair de casa, sair do interior. E essa vivência de periferia, de uso de droga, era só um filme ruim. E de repente, era eu quem estava morando na rua. Eu achava estranho, porque um dia eu estava assistindo um programa de TV falando sobre a Cracolândia e de repente era eu que estava lá.
Da minha experiência, se eu estou aqui hoje é porque recebi muito dessa compaixão. Enquanto tem gente que fala que não se deve dar marmita para pessoas em situação de rua, tem outras que saem de madrugada para ir ajudar nas malocas, levando amor, que é ainda mais importante do que os bens materiais.
Às vezes, achamos que o nosso gesto é pequeno, mas não é. Recentemente fiz uma coleta na casa de uma pessoa que estava se desfazendo praticamente da casa inteira, e tinha entre essas coisas uns cobertores. E com essa vida de muito trabalho, de coleta, de redes sociais, num outro dia eram quase 2h da manhã quando consegui parar para comer. No caminho de casa, vimos um rapaz deitado sem nada, sem nenhuma proteção. Fui direto falar com ele, quase me deitando no chão. Oferecemos dinheiro, mas não era o que ele queria. Ele queria um cobertor. E eu não tinha uma blusa quente, e me lembrei dos cobertores que ainda não tinham sido descarregados e pude fazer o bem entregando um para ele, que abriu um sorriso tão grande. Foi uma grande alegria por meio de um gesto muito simples, com aquilo que era o descarte de outra pessoa.
Nesse momento, para mim, é formalizar a ONG e cada vez mais ampliar essa rede de bem, oferecendo muitas coisas, como o banho solidário, por exemplo. Gostaria que as pessoas vissem o trabalho das catadoras e dos catadores e que elas e eles fossem valorizadas e valorizados dentro do seu contexto. Nós nascemos puros, sem nenhuma ideia fixa sobre algo, e vamos construindo as durezas e preconceitos, mas podemos mudar isso.
Se você tem interesse em ajudar a Anne com o projeto Perfum.A.Dor, pode usar o PIX ou enviar doações para o seguinte endereço:
R. Girassol, 34 – sala 42 – Vila Madalena, São Paulo/SP
Pix 052.936.141-85 (Lucas Martins da Silva)
Para maiores informações, confira os perfis da Anne no Instagram:
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1 Comentário
Sem palavras, ação no mundo é o que nos impulsiona gerar Vida
Gratidão Annecatadora querida beijo 💋