Relato de Chokyi Nyima Rinpoche sobre como sua mãe, Mayum Kunsang Dechen, tornou-se também sua Guru
Nosso profundo agradecimento ao The Yogini Project e a Michael Ash, seu fundador, por permitir-nos traduzir e publicar este texto e pela sua disponibilidade ao longo do processo.
Mayum Kunsang Dechen: Consorte de Tulku Urgyen Rinpoche. Mãe de Chokyi Nyima e Tsikley Chokling Rinpoches.
Isto é o que sei sobre a minha mãe e o que me foi contado pelas pessoas que a conheceram. Quando era jovem, ela tinha um coração muito bom e se importava profundamente com o bem-estar de todos. Gostava de ajudar as pessoas pobres e os animais. Esta era uma das suas maiores qualidades na infância. Ela se preocupava, sobretudo, com a lei do carma, e tomava muito cuidado mesmo nas suas pequenas ações.
Ainda muito jovem, com cerca de 13 ou 14 anos, recebeu ensinamentos de vários professores no Tibete e iniciou as práticas preliminares do ngöndro. Ela prosseguiu com o ngöndro até mesmo durante sua estadia em Sikkim e mais tarde, quando veio ao Nepal. Se somarmos tudo, ela completou os 500.000 aspectos da prática do ngöndro treze vezes. Além disso, praticou muitas sadanas e recitou inúmeros mantras. Em resumo: meu pai me contou que nunca a viu desperdiçar um único dia; ela estava constantemente fazendo algum tipo de prática.
Minha mãe teve muita sorte de receber ensinamentos do meu pai, Tulku Urgyen, e especialmente de Sua Santidade o 16º Karmapa. Do Segundo Jamgon Kongtrul, chamado Palden Khyentse Oser, ela recebeu muitos diferentes tipos de ensinamentos, transmissões orais, iniciações e, em particular, transmissões de mente. Durante esse período, ela adquiriu uma sólida confiança na sua prática e, desde então, não teve mais dúvidas sobre a sua compreensão da natureza búdica. Sua confiança, devoção e compaixão foram crescendo cada vez mais.
Também recebeu ensinamentos de Sechen Kongtrul e de Dilgo Khyentse Rinpoche. Frequentemente, ao encontrar estes professores, ela os oferecia algo — tokbul — que significa “uma oferenda de sua realização”. Minha mãe sentia um profundo respeito por todos esses professores, em especial pelo 16º Karmapa. Um dia, ela perguntou se eles poderiam se encontrar para que ela lhe fizesse uma oferenda de tokbul. Eu estava presente. Fechamos a porta e ela falou bem abertamente, sem qualquer timidez ou medo. Descreveu de forma bastante direta suas diferentes experiências meditativas — como a bem-aventurança, a clareza e a ausência de pensamentos. Também a testemunhei fazendo esta mesma oferenda a Dilgo Khyentse Rinpoche. E depois ela me contou que também a fez a Palden Khyentse Oser e que ele gostou muito. O Segundo Kongtrul, que era seu guru raiz, também foi professor do 16º Karmapa.
Em resumo, minha mãe fez uma grande acumulação de méritos com ponto de referência [merit with reference point]. Ela gostava de construir monastérios, e sua maior aspiração era criar um local onde monges e monjas pudessem se dedicar seriamente ao estudo e à prática. Sempre que alguém a visitava, recebia este conselho: “Por favor, recite”. Ontem, duas pessoas do Nepal me contaram que ela um dia falou a uma jovem menina de lá: “apenas recite o mantra de Tara, alguns malas por dia. Mesmo que não saiba muito sobre a prática, basta sentir devoção por Tara. Isto te fará muito bem. Seus obstáculos desta vida serão removidos e você terá um bom renascimento.” Desta maneira, minha mãe oferecia diversos tipos de ajuda e ensinamento às pessoas.
Alguns anos atrás, por exemplo, uma jovem dos Estados Unidos veio ao Nepal. Ela se interessava pelo Darma, mas não queria tomar refúgio com um lama homem. Queria uma professora mulher. Ela gostava muito da minha mãe e várias vezes a questionou se poderia tomar refúgio com ela, mas minha mãe respondia: “Não, este não é a maneira correta. Você deveria procurar este e aquele lama.” Então, ela falou: “Se eu não puder tomar refúgio com você, não tomarei com ninguém.” Minha mãe, finalmente, ofereceu-lhe refúgio e ensinamentos. Na época, a menina era muito jovem e pareceu-me que ela seguiu fazendo algum tipo de prática depois disso. Ela acabou retornando aos Estados Unidos, de modo que não sei o que ela anda fazendo atualmente. Estes são apenas exemplos.
Combinando devoção, interesse e compaixão, minha mãe foi capaz de realizar sua natureza búdica. Praticou por muitos anos, e quando sua doença se manifestou na dor terrível do câncer, ela nunca proferiu sequer uma palavra de queixa. Todos nós perguntávamos como podíamos aliviar suas dificuldades, mas ela nunca emitiu qualquer comentário sobre sua dor. Pelo contrário: ela parecia, em geral, bastante relaxada.
Durante a maior parte do dia, havia uma monja com ela. Numa manhã, entretanto, a monja deixou o quarto por alguns minutos. Quando entrei, estávamos apenas nós dois e pude perceber que ela havia chorado. Havia lágrimas nos seus olhos e sua mão tremia. Fiquei um pouco abalado. Pensei que talvez ela estivesse morrendo ou que tinha uma grande preocupação. Perguntei: “Mãe, por qual sofrimento você está passando? Diga-me a verdade.” E ela respondeu: “Não estou sofrendo”. Perguntei outra vez, mas ela não respondeu. Na terceira vez, ela disse: “Estou chorando de felicidade. Todos os cabelos do meu corpo se arrepiaram e meus olhos se encheram de lágrimas porque o meu guru raiz, Palden Khyentse Oser, apareceu diante de mim e falou: ‘Devido às práticas que você acumulou, minha mente e a sua se uniram. O fim desta vida se aproxima, mas quando chegar sua hora, nossas mentes se transformarão numa só.’” Este é apenas um exemplo dentre as várias experiências que ela teve ao longo de sua doença.
Um dia, ela me falou: “Assim que essa armadilha do meu corpo material se desfizer, voarei como um pássaro escapando de uma emboscada.”
Muitos grandes mestres a visitaram durante sua doença. Quando Dilgo Khyentse veio, ela lhe disse: “Chegou a minha hora. Não tenho mais nenhum apego. Desde muito nova, tive medo da morte, e foi por isso que pratiquei com tanta diligência. Agora, meu momento chegou. Ouvi que o melhor praticante sente alegria ao morrer. O praticante que é bom, mas não é o melhor, sente-se destemido. No mínimo, não deveríamos ter arrependimentos. Eu não estou com medo nem me arrependo. Mas isto não se deve apenas a mim. Deve-se, sobretudo, à compaixão do meu guru raiz. O que tenho a lhe pedir, Rinpoche? Peço-lhe que permaneça neste mundo em nome do Darma. Se sua vida for longa, será de grande benefício a todos os seres sencientes, direta e indiretamente. Minha cerimônia de longa vida a você é o simples pedido de que você e todos os detentores da linhagem permaneçam, pelo benefício de outros seres. Alegremente, tomaria sobre mim qualquer obstáculo físico ou de outra natureza que você ou outro detentor da linhagem possa vir a ter, a fim de livrá-los dos impedimentos.” Com tais palavras, ela ofereceu a Khyentse Rinpoche um longo kota de seda branca. Sua Santidade pegou sua mão e falou: “Posso garantir que, quando a morte chegar, você se tornará indivisível com Guru Rinpoche na gloriosa Montanha Cor de Cobre.”
“Te encontro lá”, ela respondeu.
Um dia, Trulshig Rinpoche contou-me que sentia um grande respeito pela minha mãe e desejava vê-la. “Que gentil”, nós pensamos. Rinpoche lhe falou: “Por um lado, entristece-nos saber que sua saúde não vai bem. Por outro, no entanto, estamos todos orgulhosos por você ter dedicado sua vida inteira à prática de forma séria e por ter alcançado uma mente tão elevada. Nós a respeitamos profundamente. Reze por mim, por favor.”
Minha mãe respondeu: “Você me inspira uma profunda devoção, pois é uma emanação de Vairotsana. Gostaria de receber de você o Tsig Sum Nedek.” Trulshig Rinpoche disse que não havia necessidade, mas ela insistiu: “Sim, eu preciso. Por favor.” Assim, de forma simples e direta ele a transmitiu o Tsig Sum Nedek. Ela o ofereceu um manto branco e tokbul, e pediu que ele permanecesse nesse mundo para ajudar os seres. Rinpoche, então, falou: “Tulku Urgyen é Guru Rinpoche e você, Yeshe Tsogyal. Não digo estas palavras para agradá-la. Sei que isto é verdade. Você está somente trocando de corpo. Será liberada.”
Chatral Rinpoche também a visitou. Ela sentia profunda devoção por ele. Solicitou-lhe iniciação [wong] de Vajrasatva e pediu que ele lhe ensinasse “As quatro partes sem três” [“The four parts without three”]. Esta é a visão última de Trekchö. Ele a ensinou por um longo tempo. Infelizmente, não chegamos a gravar o ensinamento, mas ele provavelmente não iria querer que o fizéssemos. De qualquer forma, seu ensinamento foi muito extenso e claro. Finalmente, Chatral Rinpoche falou: “Ok, vamos unir nossas mentes. Repouse na equanimidade.” Todos sabíamos, especialmente os médicos, que minha mãe estava muito fraca. Mas, naquele momento, ela pronunciou “Ah” com enorme força. Seus olhos estavam completamente abertos. Não havia qualquer indício de dor: pelo contrário, ela parecia bastante relaxada. Olhei para o meu relógio. Ela permaneceu nesse estado por cinco minutos. Preocupei-me, de repente, que ela pudesse estar morrendo. Perguntei-me se havia algo errado e olhei para o Rinpoche, que estava apenas sentado em meditação. Isso me acalmou, e eu entendi que nós todos devíamos somente permanecer em rigpa.
Depois de cinco minutos, minha mãe “retornou”. Ela havia permanecido na visão das “quatro partes sem três” sem falar. Mais tarde, começou a se comunicar e agradeceu ao Rinpoche. Ele respondeu: “Fico muito feliz por você entender este ensinamento. Sabia que era uma boa praticante, mas não imaginava que tinha um nível de consciência [awareness] tão elevado. Hoje vejo isso e a respeito, e sinto orgulho em te conhecer. Você é um bom exemplo a todos.”
Mais tarde, Chatral Rinpoche almoçou comigo e meu pai em outro aposento. Durante mais de uma hora, comemos e conversamos. Meu pai não perguntou muito, mas eu indaguei: “O que aconteceu? O que foi que minha mãe experienciou?” Chatral Rinpoche me olhou muito sério e disse: “Foi uma coisa maravilhosa. Ela uniu espaço e consciência. Apenas o praticante mais experiente é capaz de fazer isso, sobretudo diante de tamanha dor e doença. Apenas hoje percebi que Yum Kusho-la é uma praticante tão avançada. É um bom exemplo para todos nós. Agora, observe. Haverá outros sinais maravilhosos. Seria bom se todos aqueles conectados a Yum Kusho-la viessem vê-la, oferecer um manto, fazer prostração e pedir que suas mentes se unam à dela.”
Chatral Rinpoche nunca havia dado ensinamentos a mim e ao meu irmão, mas prometeu à minha mãe ensinar-nos tudo. Depois de vê-la, ele veio até mim dizer: “Prometi à sua mãe que te daria ensinamentos. Devemos combinar um horário e local. Você pode me apresentar um exame e nós vamos esclarecer tudo, 100%. Respeito e amo muito sua mãe. Este foi seu último desejo, portanto acatarei.” Tão bonito ela ter providenciado isso para nós.
Uma semana antes de morrer, minha mãe chamou Tulku Urgyen, nossos parentes, alguns monges e eu até o seu quarto. A cada um de nós, ela apresentou um kota. Sua respiração andava fraca e bastante difícil, mas ela subitamente ficou bem e falou com força. Alguns de nós choramos, mas ela disse: “Não, não estou morrendo agora. Tudo é impermanente. Todos sabemos. Mas agora posso ser franca, então me permitam dar um conselho. Primeiramente, gostaria de pedir a Tulku Urgyen que viva muitos anos. É muito, muito importante que todos vocês cuidem muito bem dele.”
Então, ela se voltou ao meu irmão, Chokling Rinpoche, e a mim: “Ambos vocês carregam o título de tulku. O Karmapa os reconheceu como emanações, que significa ‘renascimento elevado’. Todos nós respeitamos o Karmapa, mas se vocês não praticarem, isso não significa nada. Quem lhes falará isso? Somente sua mãe dirá isso a vocês! Então, peço aos dois que pratiquem bastante. Não devem pensar que não precisam fazer nada, que são elevados, que são tulkus. Não façam isso.”
Até o momento, tínhamos sempre oferecido aos nossos monges o melhor tratamento ao nosso alcance. Naquele dia, minha mãe falou a Kungo e Namdol, que cuidavam deles: “Sei que é difícil cuidar de tantos monges mas, por favor, peço que continuem oferecendo a melhor comida e o melhor cuidado. Nunca sejam mesquinhos. Permitam que eles estudem o máximo possível. A Sanga é a própria raiz do Darma. Se a Sanga estiver bem, o Darma se espalhará pelo mundo, beneficiando muitos seres.” Então, falou aos monges presentes: “Como estão me mostrando tanto amor, isso é o que tenho a lhes dizer: por favor, estudem e reflitam sobre os ensinamentos. Sempre os coloquem em prática.”
Yum Kusho-la fez silenciosamente sua passagem na manhã do dia 24 de abril. Meu pai, irmão e eu estávamos ao seu lado. Ela tinha 65 anos.
Junto de alguns parentes e monges, passamos a manhã e a tarde fazendo orações ao lado dela. Seu rosto estava relaxado. Ela estava em um estado meditativo bastante elevado, chamado thuk-dam, que surge quando um bom praticante encontra o momento da morte. A mente permanece no corpo durante este período de contemplação, e o corpo mantém-se aquecido na área ao redor do coração, além de preservar a flexibilidade e uma cor rosada.
Ao redor das três da tarde, começou de repente uma tempestade que se prolongou até o cair do sol. Durante esse período, o rosto de Yum Kusho-la mudou. Ela passou a sorrir docemente e a transmitir uma grande serenidade. Aqueles que a viram foram marcados pela sua radiância. Quando o céu se abriu lá fora, surgiu um arco-íris sobre o monastério. Yum Kusho-la permaneceu em thuk-dam por três dias.
Doutora Isabelle, minha aluna, foi quem mais compartilhou experiências com a minha mãe enquanto ela esteve doente, pois cuidou dela por um longo período — dois ou três meses. Ela sabe tudo o que aconteceu.
Doutor Jurgen, da Alemanha, estava visitando o meu pai e viu minha mãe depois que ela morreu. Ele queria muito poder observar-nos enquanto preparávamos seu corpo para a cremação, banhando-o, etc, então permiti que ele entrasse no quarto naquela manhã. O que ele viu surpreendeu-o, e ele me disse que pesquisaria sobre a condição típica de um corpo após a morte assim que voltasse ao seu país.
O doutor nunca havia visto um corpo já morto há três dias. É de conhecimento geral que um corpo fica, normalmente, muito rígido após a morte. Jurgen surpreendeu-se com a extraordinária flexibilidade de Yum Kusho-la. Ainda que não houvesse ingerido qualquer alimento por mais de dois meses antes de morrer, ela não perdeu peso e manteve sua forma usual. Enquanto a banhávamos, a camada mais superficial de pele foi caindo e revelando uma pele branca, firme e linda logo abaixo. Muito jovem e branca. Ela estava incrivelmente bela. Tocou nossos corações e alguns monges choraram. O doutor Jurgen achou aquilo notável.
Mais de 1000 nepaleses, tibetanos, ocidentais, monges e monjas estiveram presentes na sua cerimônia de cremação, que ocorreu no pátio leste do monastério onde uma pequena estupa [chörten] branca havia sido construída. Inúmeras pessoas choraram, prostraram-se e ofereceram kota a Yum Kusho-la durante o puja funerário, realizado pelo Ven. Chatral Rinpoche, Ven. Tenga Rinpoche, Ven. Tarik Rinpoche e Ven. Minling Dungsey Rinpoche, bem como por mim, meu pai, meus irmãos e nossos monges.
Até então, minha mãe havia sempre sido “a minha mãe”. Eu a amava e respeitava o fato de que ela era uma boa praticante, mas nunca a vi como alguém que tivesse uma mente tão elevada. Talvez este seja um sinal de orgulho masculino ou do meu orgulho de filho. Mas desde que sua doença se manifestou, seu comportamento, as coisas ditas por ela, os ensinamentos proferidos em tão poucas palavras: tudo isso tocou nossos corações. Surgiu uma devoção tão profunda em mim, que comecei a sentir que ela não era somente minha mãe, mas minha Guru. Aprendi muito. Hoje, estou muito feliz por ter uma guru mulher.
Oro para que, no futuro, a forma de Yum Kusho-la encarar a vida e sua dedicação à prática do Darma se tornem uma inspiração para todos que ouvirem sobre ela, sobretudo as praticantes mulheres.
*Texto traduzido para o inglês por Erik Pema Kunsang, publicado originalmente pelo The Yogini Project e gentilmente cedido à Bodisatva.
Neste ano de 2018, o Yogini Project oferece sua tigela e seu sonho para as sangas de todo o mundo, convidando-nos a apoiá-los numa nova empreitada: a realização de um filme sobre praticantes mulheres ao redor do globo e a expansão do Yogini Fund, reserva destinada a sustentar a prática de mulheres em retiro, hoje e nas gerações por vir.
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5 Comentários
Que linda e inspiradora história de vida ^^ gratidão!
Uauuuuuuuuu. Tocante. Muito inspirador mesmo. Agradecido demais.
LINDO !
Que coisa linda… Que mérito podermos ouvir a história de uma praticante como Yum Kusho-la.. Agradecimentos infinitos a todas e todos que fazem a Revista Bodisatva por nos permitirem acessar memórias tão inspiradoras.
LINDO DEMAIS !