Sabe quando alguma situação perturbadora perde seu poder e passamos por ela sem nos abalar? Sabe quando nos sentimos espontaneamente abertos e atentos ao outro, sem que nada externo ou favorável precise acontecer?
Para uma mente como a minha, preguiçosa, orgulhosa e fortemente ancorada na separatividade, a “coisa” pode durar uns minutos ou uns dois dias. Mas é inconfundível. Parece que os nós se afrouxam e consigo ver melhor o que existe de potencial positivo em qualquer fenômeno que eu observe.
Percebi este tipo de mudança sutil na energia há algum tempo — por acaso foi numa época em que eu frequentava divã e é claro que fui comentar com a analista.
– Que sensação boa. Foi uma bênção do lama — eu disse, emocionada, ao final do relato.
– Ou pode ter sido um progresso seu, uma conquista sua — ela respondeu.
Desde então, todas as vezes em que uma situação libertadora surgiu, mesmo que por um minutinho só, resolvi contemplá-la. Não foi difícil perceber que em cada uma delas eu tinha sentido o coração abrir um pouco. Surgiam lampejos de amor e compaixão, a respiração ficava mais fácil, cessava a sensação de elevador lotado e de repente existia mais espaço no mundo e menos peso pra carregar.
Não, aquilo não me parecia um progresso pessoal; era algo bem mais tranquilo e natural do que passar numa prova difícil ou conseguir juntar dinheiro pra trocar de carro.
Encontrei na palavra “bênção” uma maneira de expressar surpresa e gratidão pelo presente vindo dos céus. Mas me parece que tenho pensado em “bênção” como se fosse um pacote que os lamas mandam entregar a seus alunos via Sedex, pessoais e intransferíveis, tendo o destinatário que comprovar recebimento mediante assinatura… Alguém já ouviu falar de um lama que faça isso? Pensando bem, o que eles fazem é nos lembrar que se quisermos avançar temos que… abrir o coração!
Entendi então que o desejo de abrir o coração é a bênção que o ensinamento budista me proporciona todos os dias.
Folheio o livro Para Abrir o Coração, coletânea de palestras de Chagdud Tulku Rinpoche, e encontro o seguinte:
“Um bom coração é o remédio que cura todos os conflitos, o grande antídoto para o egoísmo e para os problemas dele decorrentes. Faz brotar naturalmente a compreensão e a compaixão; nos torna mais abertos para escutar, mais hábeis para reconhecer a causa de nossos problemas com as pessoas e como solucioná-los. À medida que o bom coração emerge, vemos o florescer da felicidade pessoal e coletiva.”
“A morte não me amedronta, pois tenho confiança em minha prática espiritual e tenho tentado ajudar os outros o quanto posso. Sei, por experiência própria, que esses ensinamentos beneficiarão quem quer que os aplique, não apenas nesta vida, mas no momento da morte e em vidas futuras. Do fundo do coração, eu lhe digo: um momento de bondade para com um outro ser ou um ato com intenção pura valerão mais do que toda a riqueza do mundo na hora da morte. Portanto, pratiquem agora, enquanto podem, da maneira mais ampla possível em cada situação. Isso realizará o propósito supremo de suas vidas e, na hora da morte, você não sentirá remorso.”
E por fim lembro de uma instrução do Lama Padma Samten sobre situações aflitivas, despachada, sim, via e-mail, no melhor estilo de bênção eletrônica e pós-moderna:
“Refaz teus votos de trazer benefícios aos seres em todas as direções”. Talvez ele pudesse ter dito: “retorna à tua intenção original de abrir incondicionalmente o teu coração”.
Chagdud Tulku Rinpoche e Lama Padma Samten na consagração da terra para a construção do templo CEBB Caminho do Meio, Viamão, RS. Foto: Arquivo CEBB.
Escrevo tudo isso e ao mesmo tempo sinto um certo arrependimento por não ser capaz de acessar uma linguagem menos contaminada. Os mestres precisam recorrer à linguagem do mundo dual, por pura compaixão pelo entendimento limitado de alunos como eu, mas fico imaginando que efeito têm essas palavras quando se avança na realização do ensinamento de que não existe um eu separado dos fenômenos.
Imagino que seria o caso de dar risada e pensar assim:
Abrir o coração? Ele sempre esteve aberto!
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