Agindo em rede pela transformação do mundo

Em trecho de seu próximo livro, ainda inédito, Kazuaki Tanahashi expõe sua visão de como podemos trabalhar em rede pela transformação social e planetária


Por
Revisão: Cristiane Schardosim Martins e Leonardo Collares
Tradução: Fábio Rodrigues

O texto abaixo foi publicado na reedição especial da revista Bodisatva n.1., no final de 2021. A edição pode ser adquirida na loja da Bodisatva.


No início deste ano, Kazuaki Tanahashi nos contou que estava criando um novo livro chamado A Rede de Indra – A Ecologia Cósmica da Escritura do Esplendor da Flor de Buda. Nesse livro, ele gostaria de expor sua visão de como podemos trabalhar em rede pela transformação social e planetária, tendo como base uma perspectiva ampla como a encontrada no darma do Buda por meio do Sutra Avatamsaka. Sensei Kaz nos explica no prefácio:

“Este volume oferece uma continuação dos meus pensamentos e sugestões em um livro anterior, Painting Peace: Art in a Time of Global Crisis [ainda não publicado no Brasil], que escrevi como artista visual, assim como ativista pela paz e pelo meio ambiente. Agora, estou apresentando este livro como um estudioso e pensador budista, e com o mesmo objetivo que tive em Painting Peace — a busca de um caminho para uma transformação social em grande escala. Eu olho para esta escritura magnífica [o Sutra Avatamsaka] com um senso de urgência. Assim, este é um testemunho de um encontro entre uma necessidade do nosso tempo com uma sabedoria de mil e oitocentos anos. Este livro é meu testamento, um humilde presente para as gerações de hoje e do futuro.”

Ao saber da nossa alegria e interesse pelo que estava escrevendo, Sensei Kaz generosamente nos deu a ideia de publicar breves trechos nesta e, possivelmente, em edições seguintes da Revista Bodisatva, para que toda a Sanga pudesse desfrutá-los livremente, antes mesmo do lançamento do livro em inglês. Aqui está a primeira dessas publicações. Que este breve texto possa nos inspirar, e que qualquer compaixão e lucidez que surja de nossa prática possa cada vez mais transbordar para o mundo na forma de ações eficazes e transformações sociais benéficas!


Um texto sagrado para nos inspirar

Um futuro sustentável torna-se possível apenas pelo exame das questões do presente e pela utilização da sabedoria do passado. A Escritura do Esplendor da Flor de Buda é um tesouro de visões vastas da natureza e do universo. Não consigo pensar em nenhum outro livro, além deste texto sagrado, que seja tão adequado para inspirar a ecologia e a sobrevivência planetária.

A Escritura do Esplendor da Flor (Avatamsaka Sūtra, também traduzido como Sutra do Ornamento Floral ou da Guirlanda de Flores) começou a tomar forma em sânscrito por volta do segundo século da Era Comum, na Índia, e o texto como um todo foi traduzido do sânscrito para o chinês nos séculos quinto e sétimo. Também foi traduzido para o tibetano no final do século nono.

Somos feitos de redes?

Ver o mundo como uma rede pode ter certa vantagem. Os indivíduos estão todos conectados, de forma visível ou invisível. Os sistemas de comunicação dos humanos estão entrelaçados. Nossos pensamentos, mensagens, trabalhos, produtos e políticas afetam uns aos outros. Em sua altamente aclamada “Carta da Prisão de Birmingham”, Martin Luther King Jr. escreveu, em 1963, em um momento intenso do movimento pelos direitos civis no sul dos Estados Unidos:

“Em um sentido real, toda a vida está inter-relacionada. Todas as pessoas estão enlaçadas em uma rede inescapável de mutualidade, atadas em um único traje do destino. O que quer que afete a um diretamente, afeta a todos indiretamente. Eu jamais poderei ser o que deveria ser até que você seja o que deveria ser, e você jamais poderá ser o que deveria ser até que eu seja o que deveria ser… Essa é a estrutura inter-relacionada da realidade”.

Existem múltiplas “redes” descritas na Escritura do Esplendor da Flor. Elas incluem redes de flores, pérolas, lâmpadas, iluminações, fragrâncias, direções, seres sencientes e mundos. As redes são também de consciência, sentimentos, amor, visões e dúvidas. Há também redes negativas, tais como de ilusões, delusões, obstruções, sofrimentos, estupidez, males e demônios. Ao mesmo tempo, existem redes de prática, votos e ações de bodisatva.

“空 — Ausência de delimitações”, pintura de Kazuaki Tanahashi

A rede de Indra

Entre as inúmeras redes, a maior e mais amplamente citada é a chamada rede de Indra. Indra, originalmente uma deidade guerreira Védica (pré-hindu), usava sua rede como uma arma. É possível imaginar como uma grande rede, manuseada por soldados comuns, poderia cobrir, incapacitar e capturar um combatente excepcional. Esse deve ter sido um dispositivo simples, mas muito poderoso.

Indra era visto como um protetor do darma no início do budismo, e sua rede é frequentemente mencionada, ainda que sem uma descrição muito clara. Mas há uma interpretação chinesa da Escritura do Esplendor da Flor que descreve sua imagem mais claramente — como uma visão da realidade do cosmos: o palácio de Indra contém infinitas camadas de uma rede; cada nó da rede tem uma joia multifacetada que reflete as imagens de todas as outras incontáveis joias.

Em um registro de sua conversa com o Dalai Lama, o físico americano Arthur Zajong diz: “Eu entendo que no budismo há o conceito da rede de Indra, de que em cada lugar há uma imagem de todos os outros lugares. É como se houvesse uma joia e ela espelhasse todas as outras joias da rede, de modo que você olha para um objeto, mas você vê todos os objetos.” (The Monastery and the Microscope, editado por Wendy Hasenkamp e Janna R. White).

Interação dinâmica

O modelo de rede de Indra pode parecer como a imagem de um mundo perfeito da verdade, em que todas as partes iluminam umas às outras, repousando assim de forma gloriosa e eterna. Mas a noção budista básica é a de que nada é permanente, nada é estático.

Embora a maior parte da versão original em sânscrito da Escritura do Esplendor da Flor tenha se perdido, ela sobreviveu íntegra nas versões em chinês e tibetano. Um conceito chave de mudanças no sutra é expresso no ideograma chinês 起, que significa “suscitar”, “levantar” ou “iniciar”. As pessoas suscitam idéias delusórias e tomam ações autocentradas, enquanto os bodisatvas tomam a resolução de evitar que estas sejam prejudiciais. Esse modelo sugere um mundo no qual a participação de cada um de nós de fato ajuda a fazer com que as coisas aconteçam ou não aconteçam.

A perspectiva tradicional é a de entender o ensinamento original da forma mais fiel possível. Mas precisamos também enxergar a nossa herança comum à luz do conhecimento contemporâneo e, então, aplicá-la ao melhor de nossos próprios valores. Precisamos empregar nossa compreensão a favor da sobrevivência planetária. Assim, nossa rede de Indra poderia ser vista como uma interação infinita de variadas redes que se unem ou se opõem umas às outras, enquanto afetam o mundo de formas que são autodestrutivas ou favoráveis à vida. Nenhuma rede é perfeitamente boa ou completamente má. Todas as redes e suas atividades têm problemas e deficiências.

Ainda que certas entidades, tais como organizações de paz e fabricantes de armas, tenham prioridades diferentes, elas podem ter algumas conexões e pontos em comum. Elas podem, por exemplo, ter formas similares de operar. Amigos de amigos podem ser executivos e diretores desses grupos, ou as mesmas pessoas podem estar financiando ambos. Seus trabalhadores talvez frequentem a mesma mercearia, posto de gasolina ou aeroporto. Eles querem que suas famílias sejam saudáveis. Então, você pode ver como não é totalmente impossível que as mentes e ações das pessoas que estão do outro lado possam mudar.

Networking profundo

Abstenha-se de reações precipitadas. É mais provável que ações saudáveis decorram de uma pausa reflexiva. Assim, as ações deveriam surgir de um período de não ação. Quanto mais você explora seu pensamento, mais suavemente flui sua atividade. Quanto mais você amplia sua rede, mais resultados você produz.

Trabalhar em rede significa ter grupos ou organizações independentes colaborando para alcançar objetivos comuns. Nenhuma pessoa ou entidade sozinha consegue alcançar a paz, a proteção ambiental ou uma transformação massiva. Trabalhar em rede, portanto, é a única maneira de alcançar uma transformação social em grande escala. É como a arma da rede de Indra, de dimensões flexíveis, e que funciona maravilhosamente pela coordenação de quem a manuseia.

A contemplação é a base do trabalho em rede. Identifique o padrão ético que deseja seguir, a situação que deseja mudar e o método de ação. O mais crucial é encontrar uma linguagem que seja inspiradora o suficiente para mudar a consciência das pessoas e garantir o apoio da maioria. Pense de forma profunda. Aja de forma eficaz.

 

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1 Comentário

  1. Solange Viana disse:

    Esse texto faz todo o sentido. E urgente escolher o padrão ético que se deseja seguir para pensar e agir.

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