As quatro mentes incomensuráveis

O mestre Thich Nhat Hahn, que nos deixou recentemente, ensina nesse texto uma forma direta para a mente do amor


Por
Revisão: Cristiane Schardosim Martins
Tradução: Mariana Smith

Apontando de forma direta a mente do amor, Thich Nhat Hahn nos  ensina como desenvolver as suas qualidades: amor, compaixão e equanimidade, com a delicadeza que lhe era tão peculiar de não excluir qualquer outra abordagem. Para ele, devemos desenvolver a mente do amor sem cortar nossas raízes.


 

Durante a vida do Buda, aqueles com a fé Bramânica rezavam para que depois da morte eles fossem para o paraíso e então viver com Brahma, o Deus universal. Um dia um homem brâmane perguntou ao Buda, “O que eu poderia fazer para ter certeza de que vou me encontrar com Brahma depois que eu morrer?” e o Buda respondeu: “Já que Brahma é a fonte do amor, para viver com ele, você deve praticar as Brahma-viharas que são: amor, compaixão, alegria e equanimidade”. Vihara é uma morada ou um lugar para se viver. Amor em sânscrito é maitri; em pali é metta. Compaixão é karuna nas duas línguas e alegria é mudita. Equanimidade é upeksha em sânscrito e upekkha em pali. As Brahma-viharas são quatro elementos do amor verdadeiro. São chamadas de incomensuráveis, porque se você as praticar, elas vão crescer todos os dias até você acolher o mundo inteiro. Você se tornará mais feliz e os outros ao seu redor também se tornarão mais felizes.

O Buda respeitava o desejo das pessoas de praticar sua própria fé. Então, ele respondia uma questão brâmane de forma a encorajar a pessoa a continuar praticando. Se você gosta de sentar e meditar, pratique meditação sentado. Se você gosta de meditar andando, pratique meditação andando. Mas preserve suas raízes judaicas, cristãs ou muçulmanas. Esse é o jeito de continuar o espírito búdico. Se você está afastado de suas raízes não poderá ser feliz.

Segundo Nagarjuna, filósofo budista do século II, praticar a incomensurável mente do amor extingue a raiva nos corações dos seres vivos. Praticar a incomensurável mente da compaixão extingue toda mágoa e ansiedade nos corações dos seres vivos. Praticar a incomensurável mente da alegria extingue a tristeza e a angústia nos corações dos seres vivos. Praticar a incomensurável mente de equanimidade extingue o ódio, a aversão e o apego nos corações dos seres vivos.

Se nós aprendermos meios hábeis para praticar amor, compaixão, alegria e equanimidade, vamos saber como curar as doenças da raiva, mágoa, insegurança, tristeza, ódio, solidão, e apegos nocivos.
No Anguttara Nikaya, os ensinamentos do Buda, se a mente de raiva brotar, o biku (monge) pode praticar a meditação do amor, compaixão ou equanimidade para a pessoa que causou esse sentimento de raiva.

Cena do documentário “Walk with me” (2017), sobre a vida desse grande ser

Alguns comentaristas do sutra já disseram que as Brahma-viharas não são a forma mais elevada de ensinamento do Buda, que não poderiam acabar com o sofrimento e aflições. Isso não está correto. Certa vez o Buda falou para seu querido atendente Ananda, “Ensine as quatro incomensuráveis mentes para os monges mais jovens e eles se sentirão com segurança, fortes e alegres, sem aflições de corpo ou mente. Para o resto da vida deles, eles estarão bem equipados a praticar o caminho puro de um monge”. Em outra ocasião, um grupo de discípulos do Buda visitou o monastério de uma seita próxima e os monges perguntaram, “Nós ouvimos que seu professor Gautama ensina as quatro incomensuráveis mentes do amor, compaixão, alegria e equanimidade. Nosso mestre também nos ensina isso. Qual a diferença?”

Os discípulos do Buda não sabiam como responder. Quando eles retornaram ao monastério, o Buda lhes falou, “Qualquer um que praticar as quatro incomensuráveis mentes junto com os Sete Fatores da Iluminação, as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho de Oito Passos vai chegar à iluminação profunda”. Amor, compaixão, alegria e equanimidade são a própria natureza de uma pessoa Iluminada. São os quatro aspectos do amor verdadeiro dentro de nós e dentro de todos e de tudo.

O primeiro aspecto do amor verdadeiro, maitri, é a intenção e a capacidade de oferecer alegria e felicidade. Para desenvolver essa capacidade, temos que praticar olhando e ouvindo profundamente para então sabermos o que podemos fazer ou não para trazer a felicidade para os outros. Se você oferecer à sua amada algo que ela não precise isso não é maitri. Você precisa enxergar a real situação dela, ou o que você oferecer poderá ser causa de infelicidade.

No sudeste da Ásia, muitas pessoas são extremamente fãs de uma fruta grande e espinhosa chamada durião. Você até poderia dizer que elas são viciadas. É uma fruta com cheiro bem forte. E quando algumas pessoas terminam de comer, elas colocam a casca da fruta debaixo da cama para que o cheiro continue. Para mim o cheiro de durião é horrível. Certa vez quando eu estava praticando mantras sozinho no meu templo no Vietnam, tinha um durião no altar que havia sido oferecido ao Buda. Eu estava tentando recitar o Sutra do Lótus, usando um tambor de madeira e para acompanhar, um sino grande em formato de tigela. Mas eu não conseguia me concentrar nem um pouco. Depois de algum tempo, eu peguei o sino e o coloquei de cabeça para baixo em cima do durião para que então eu pudesse fazer o mantra do sutra. Depois que eu terminei, fiz prostrações para o Buda e liberei o durião. Se você me falasse “Thay, eu te amo tanto, eu gostaria que você comesse um pouco desse durião”, eu sofreria. Você me ama, você quer que eu seja feliz, mas você quer que eu coma durião. Esse é um exemplo de amor sem entendimento. Você tem uma boa intenção, mas você não tem o entendimento correto.

Sem entendimento, nosso amor não é amor verdadeiro. Você deve olhar profundamente para ver e entender todas as necessidades, aspirações e sofrimento de quem você ama. Todos nós precisamos de amor. O amor nos traz felicidade e bem-estar. Isso é tão natural quanto o ar; precisamos de ar fresco para sermos felizes e estarmos bem. Somos amados pelas árvores. Nós precisamos das árvores para nossa saúde. Para nos sentirmos amados, temos que amar, em outras palavras, temos que entender. Para nosso amor continuar, nós temos que agir de forma apropriada, ou não agir, para proteger o ar, as árvores e nossos queridos.

Maitri pode ser traduzido como “amor” ou “bondade amorosa”. Alguns professores budistas preferem “bondade amorosa”, pois eles acham a palavra “amor” muito perigosa. Mas eu prefiro a palavra amor. Por vezes, as palavras ficam doentes e nós temos que curá-las.
Nós temos usado a palavra amor para significar apetite ou desejo, como na frase “eu amo hambúrguer” temos que fazer um uso mais cuidadoso da linguagem. “Amor” é uma palavra linda. Nós temos que restaurar seu significado. A palavra maitri tem raízes na palavra mitra, que significa amigo. No Budismo, o principal significado da palavra amor é amizade.

Nós temos as sementes do amor. Podemos desenvolver essa maravilhosa fonte de energia, nutrição e amor incondicional que não espera nada em troca. Quando entendemos alguém profundamente, mesmo alguém que nos tenha feito mal, não podemos resistir a amar ele ou ela. Shakyamuni Buda declarou que o Buda do próximo eon vai ser chamado de Maitreya, o Buda do amor.

O segundo aspecto do amor verdadeiro é karuna, a intenção e a capacidade de aliviar e transformar o sofrimento e as pequenas tristezas. Karuna é normalmente traduzida como “compaixão” mas isso não está exatamente correto. “Compaixão” é composta de “com” (junto com) e “paixão” (sofrimento). Mas não precisamos sofrer para remover o sofrimento de uma outra pessoa. Os médicos, por exemplo, podem aliviar seus pacientes sem ter que experienciar as mesmas doenças. Se sofremos muito, provavelmente vamos nos sentir esmagados e sem habilidade de ajudar. Ainda assim, até encontrarmos uma palavra melhor vamos continuar usando “compaixão” para traduzir karuna.

Para desenvolver compaixão em nós, devemos praticar a respiração consciente, a audição profunda e o olhar profundo. O Sutra do Lótus descreve Avalokiteshvara como o bodisatva que pratica “olhando com olhos de compaixão e ouvindo intensamente o choro do mundo”. A compaixão contém uma profunda preocupação. Você sabe que a outra pessoa está sofrendo, então você senta perto dela, você a olha e a escuta de forma intensa para poder tocar na dor que ela sente. Você está em uma profunda comunicação, profunda comunicação com ela, e isso já é suficiente para trazer algum alívio.

Uma palavra, uma ação ou pensamento de compaixão pode reduzir o sofrimento de uma pessoa e trazer felicidade para ela. Uma palavra pode trazer conforto e segurança, destruir a dúvida, ajudar alguém a evitar um erro, reconciliar um conflito, ou abrir a porta para a liberação. Uma ação pode salvar a vida de uma pessoa, ou ajudá-la a ter uma vantagem em uma oportunidade rara. Um pensamento pode fazer o mesmo, porque pensamentos sempre resultam em palavras e ações. Com compaixão em nossos corações, todo pensamento, palavra e ação podem causar um milagre.

Quando eu era um noviço, eu não podia entender por que, se o mundo está cheio de sofrimento, o Buda tem um sorriso tão bonito. Por que ele não está incomodado com todo esse sofrimento? Mais tarde, eu entendi que o Buda tinha entendimento, calma e força suficiente. E essa é a razão pela qual o sofrimento não o perturba. Ele é capaz de sorrir porque ele sabe como cuidar e como ajudar a transformar o sofrimento. Nós precisamos estar conscientes do sofrimento, mas mantendo nossa clareza, calma e força para, então, podermos transformar a situação. O oceano de lágrimas não pode nos entristecer se karuna estiver presente. É por isso que o sorriso do Buda é possível.

O terceiro elemento do amor verdadeiro é mudita, alegria. O amor verdadeiro sempre traz alegria para nós e para quem amamos. Se nosso amor não trouxer alegria para ambos, não é amor verdadeiro. Comentaristas explicam que a felicidade está relacionada a corpo e mente. Já a alegria está relacionada principalmente com a mente. Esse é um exemplo frequentemente falado: Alguém que está viajando no deserto vê uma corrente de água fresca e experimenta alegria. Quando a pessoa bebe a água, ela experimenta felicidade. Ditthadhamma sukhavihari significa “vivendo feliz no momento presente”. Nós não corremos para o futuro; sabemos que tudo está aqui no momento presente. Muitas coisas pequenas podem nos trazer tremenda alegria, como a consciência de que temos olhos em boas condições. Só precisamos abrir nossos olhos e podemos ver o céu azul, as flores violetas, as crianças, as árvores e tantos outros tipos de formas e cores. Vivendo em plena atenção, nós podemos tocar essas maravilhas e coisas refrescantes, e nossa mente de alegria vai surgir naturalmente. A alegria contém felicidade e a felicidade contém a alegria.

Alguns comentaristas já disseram que mudita significa “alegria empática”, “alegria altruísta”, a felicidade que sentimos quando outros estão felizes. Mas isso é muito limitado. Isso é uma discriminação entre o eu e os outros. Uma definição mais profunda de mudita é alegria cheia de paz e contentamento. Nós nos regozijamos em ver os outros felizes, mas também nos regozijamos com nosso bem-estar. Como podemos sentir alegria por outra pessoa quando não sentimos alegria por nós mesmos? Alegria é para todos.

O quarto elemento do amor verdadeiro é upeksha, que significa equanimidade, sem apego, sem discriminação, mente serena ou desprender-se. Upe significa “sobre”, e kesha significa “olhar”. Você escala a montanha para poder olhar acima da situação toda, não limitado por um lado ou outro. Se seu amor tem apego, discriminação, preconceito ou é pegajoso não é amor verdadeiro. As pessoas que não entendem o budismo, por vezes pensam que upeksha significa indiferença, mas a verdadeira equanimidade não é fria ou indiferente. Se você tem mais de um filho, todos eles são seus filhos. Upeksha não significa que você não ama. Você ama de um jeito que todos os seus filhos recebem seu amor sem discriminação.

Upeksha tem a marca chamada de samatajnana, “a sabedoria de igualdade” a habilidade de ver todas as pessoas como semelhante, sem discriminar entre você e os outros. Em um conflito, mesmo que estejamos profundamente envolvidos, nós permanecemos imparciais, capazes de amar e de entender os dois lados. Nós eliminamos toda discriminação e preconceito e removemos todas as barreiras entre nós e os outros. Enquanto olharmos para nós mesmos como aquele que ama e o outro como aquele que é amado, enquanto damos mais valor a nós mesmos do que aos outros, ou vemos os outros como diferentes de nós, não temos a verdadeira equanimidade. Temos que nos colocar “na pele do outro” e nos tornarmos um com ele, se quisermos entendê-lo e amá-lo verdadeiramente. Quando isso acontece, não existe o “eu mesmo” ou “o outro”.

Sem upeksha, seu amor talvez se torne possessivo. A brisa de verão pode ser bem refrescante; mas se tentarmos a colocar em uma lata para então a termos inteiramente para nós, a brisa vai morrer. Nosso amado é a mesma coisa. Ele é como uma nuvem, uma brisa, uma flor. Se você o aprisionar em uma lata, ele vai morrer. Ainda assim, muitas pessoas fazem apenas isso. Elas roubam a liberdade de quem amam, até que a pessoa não possa ser ela mesma. Vivem para satisfazer a elas mesmas e usam a pessoa amada para ajudá-las a alcançar esse objetivo. Isso não é amar; isso é destruir. Você diz que o ama, mas você não entende as aspirações dele, as necessidades e dificuldades que ele tem. Ele está em uma prisão chamada amor. O amor verdadeiro lhe permite preservar sua liberdade e a liberdade de quem você ama. Isso é upeksha.

Para o amor ser amor verdadeiro, deve conter compaixão, alegria e equanimidade. Para a compaixão ser compaixão verdadeira, tem que ter amor, alegria e equanimidade. Alegria verdadeira tem que conter amor, compaixão e equanimidade. E a verdadeira equanimidade tem que ter amor, compaixão e alegria. Essa é a natureza “interexistente” das quatro mentes incomensuráveis. Quando o Buda falou para o homem brâmane praticar as quatro mentes incomensuráveis, ele estava oferecendo a todos nós um ensinamento muito importante. Mas devemos olhar profundamente e os praticar para trazermos esses quatro aspectos de amor para dentro de nossas próprias vidas e das vidas daqueles que amamos.

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3 Comentários

  1. Ryath disse:

    Ensinamento maravilhoso!

  2. Arthur disse:

    muito bonito o texto!!! continuem o belo trabalho!! obrigado por compartilharem esta preciosidade.

  3. Graziela disse:

    Muito bom

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