A Bodisatva conversou com Alex Castro sobre novo livro que aborda a importância da atenção para ouvir e servir melhor ao próximo.
Esta é uma antiga história zen: um monge perguntou para o mestre Ikkyu (1394-1481): “Por favor, o senhor poderia me escrever algo de grande sabedoria?”. O mestre pegou o seu pincel e escreveu lentamente a palavra: “Atenção”. O estudante ficou surpreso: “Mas, isso é tudo?”. Então, o mestre voltou a escrever: “Atenção. Atenção.”. O monge se irritou: “Isto não parece importante ou sábio para mim.”. Em resposta, o mestre simplesmente voltou a escrever: “Atenção. Atenção. Atenção.”.
A importância da atenção, de cultivar um estado de presença a cada momento, em cada ação, é o que já apontava este famoso Mondo* escrito há mais de meio século atrás. “A atenção sempre foi um ponto fundamental. Atualmente, por exemplo, ela se tornou a mercadoria mais disputada do mundo. As maiores companhias de hoje são aquelas que canalizam e negociam a nossa atenção. Cabe a nós decidir a melhor forma de aplicar este bem precioso.”, conta Alex Castro, escritor e praticante zen budista que, por sinal, foi ordenado Bodisatva* com o nome dármico “Iquiú”, tal qual o do mestre da história mencionada.
Deitado numa rede e na companhia da sua cachorrinha Capitu, Alex Castro nos contou mais detalhes sobre o seu novo livro “Atenção: por uma política do cuidado”, que acaba de ser lançado pela Editora Rocco.
Inspirado na prática do Zen e nos ideais do Budismo Engajado, o livro apresenta 20 exercícios de atenção que podem ser aplicados no dia a dia.
“Praticamos atenção não somente para nosso próprio benefício, mas para melhor enxergar e cuidar de quem está a nossa volta”, conta Castro. “Qualquer desenvolvimento pessoal só faz sentido se nos transformar em pessoas melhores para as outras pessoas”, conclui.
ALEX CASTRO: O livro é sobre a prática da atenção. Nele eu proponho 20 práticas, que vão desde as mais simples até as mais complexas. As primeiras se referem aos sentidos e às ações: ver, ouvir, sentir, falar, entre outras, passando por atitudes como sustentar uma gratidão permanente, manter um olhar generoso, dar-se conta das pessoas, até chegar nas práticas mais filosóficas, questionando o que é conhecimento, desapego do “eu”, a aceitação da realidade, o reconhecimento da morte, etc.
No final, voltamos a algo concreto: escolher cuidar mais do outro, exercer a atenção como uma prática e uma atitude no mundo.
A ideia é que eu sou uma pessoa egocêntrica, sou consciente disto, e inventei estes exercícios para mim. Sou eu, todo errado, tentando melhorar. O que poderia ser mais autocentrado do que pensar que sou o único autocentrado? Ou que as minhas questões são apenas minhas e não de muitos? Tudo o que escrevo, cada palavra, sem exceção, é um dedo que aponto antes de mais nada para o meu próprio reflexo no espelho.
Obrigado! A minha ideia foi escrever sobre temas complexos, sem passar a mão na cabeça da pessoa leitora, mas utilizando uma linguagem que seja a mais acessível e direta possível. Esta é uma das coisas do caminho do Bodisatva: se você é uma pessoa inteligente, você utiliza esse dom não para ofuscar o “outro”, mas para fazer com que ele seja tão inteligente como você.
Eu comecei a praticar o Zen em Nova Orleans, continuei a praticar aqui no Rio, em Copacabana, no templo Eininji. Estes são dois lugares muito pouco Zen; em Nova Orleans — no meio do bairro latino — e em Copacabana, meditamos perto do morro, com funk alto e tiroteios. Não nos isolamos, praticamos para estar presente no mundo como ele é.
Outra influência muito marcante é a do Budismo Engajado. Ele articulou em mim a possibilidade de uma ação politicamente atuante, removendo o obstáculo intelectual que me impedia de começar a prática.
Eu também faço parte da Ordem dos Pacificadores Zen, fundada em 1996 pelo mestre Bernie Glassman. Participei Retiros de Rua e os Retiros de Testemunho, como o de Auschwitz. Agora, estou ajudando a organizar o primeiro Retiro de Rua do Rio de Janeiro.
Se a mudança é uma condição inerente da realidade, eu como parte desta realidade, também sou um componente ativo desta mudança.
Eu conto no livro que as nossas vidas estão cheias de “coisas que eu quero fazer” e as coisas que “eu não quero fazer”. As práticas de atenção somente se tornaram um hábito quando consegui colocá-las na categoria “coisas que se fazem”, independentemente das minhas vontades ou preferências: como comer, dormir, andar, tomar banho… Tudo pode se tornar uma prática quando a prática não é pequena.
Eu me recuso a ditar regras no livro, a ideia é criar um arcabouço para que as pessoas possam decidir o que podem fazer. Criei estes exercícios para que nos ajudem a agir politicamente no mundo, a cuidar mais do outro e exercer a atenção como uma atitude ativa no mundo.
Exato, o fato da palavra cuidado estar na capa do livro não é coincidência. O templo de Copacabana, o Eininji, se chama Templo Zen do Cuidado Amoroso Eterno. O livro vem dessa vivência no Templo, que é um espaço público e, por definição, ele está aberto para todos. E por mais que algumas vezes tenhamos problemas, por não saber o histórico, as questões ou as dúvidas que as pessoas trazem consigo, sempre voltamos à mesma pergunta: Qual é o nosso propósito? Cuidar amorosamente. E para fazer isto da melhor forma necessitamos praticar a atenção.
Não é só prestar atenção. É prestar atenção e cuidar. Se cuidamos sem prestar atenção, não sabemos de quem estamos cuidando, do que a pessoa realmente precisa. Daí vem a frase principal do livro: “sem atenção, não há cuidado” . Nenhum ato pode ser mais político e mais transformador do que enxergarmos e cuidarmos umas das outras pessoas.
Abaixo você pode ler trechos do exercício n. 17 do livro Atenção, sobre estar presente.
O que é meditar
A 17ª prática consiste em nos sentarmos em um local sossegado onde possamos ficar por uma meia hora sem interrupções e, então, aquietarmos o corpo, habitarmos o momento, estarmos presentes com nós mesmas. Pronto. Não é preciso cruzar as pernas em posições desconfortáveis, acender incensos ou entoar mantras. É uma prática de atenção, e nada mais.
Aquietamos o corpo e habitamos o presente não para alcançar um estado superior de consciência, não como uma prática mística ou transcendental, mas simplesmente para ser quem somos, sem todos aqueles penduricalhos mentais que acumulamos ao longo da vida, sem apitos eletrônicos e sem alertas vibratórios, sem apego e sem pressa, sem depressão sobre o passado e sem ansiedade sobre o futuro.
Estar presente é passear por nossos dedos dos pés, diafragma, ombros; sentir nossa respiração e nossa pulsação; criar uma nova intimidade com os ritmos fundamentais de nossa própria existência.
Habitamos o momento não para escapar de nada, mas simplesmente para estar aqui. Aquietamos o corpo não para adquirir nada, mas simplesmente para tirar o lixo. Estarmos presente é sermos o peixe que enxerga a água: é vermos o que sempre esteve a nossa volta, é finalmente percebermos a realidade.
O aqui e agora é para sempre
No conto “O milagre secreto”, de Jorge Luis Borges, Deus permite que um intelectual diante do pelotão de fuzilamento possa viver um ano inteiro dentro de sua própria cabeça. Assim, no instante quase eterno entre os gatilhos serem apertados e as balas atingirem seu corpo, ele tem a oportunidade de compor mentalmente sua obra-prima, sem que ninguém jamais saiba disso.
Estar no presente é uma maneira de fazermos por nós o que Deus fez por esse intelectual.
Meditar não é calmante: é laxante
Quando meditamos, uma das primeiras ilusões que se desfaz é nossa cuidadosamente esculpida autoimagem de pessoas calmas, tranquilas, relaxadas, controladas. Para nossa imensa surpresa, percebemos o quanto estamos presas ao passado e ao futuro, ainda obcecadas por aquele velho namorado e já sofrendo a angústia da futura morte, ainda remoendo aquela ofensa boba e já pirando de medo de uma rejeição potencial. Nossa consciência é um trem desgovernado, uma serial killer disparando, um caminhão terrorista na multidão.
Meditar é encarar nossa própria loucura e descontrole: por debaixo da imagem que tentamos passar às pessoas, existe o mais profundo caos.
Coisas que se fazem
O meu dia a dia é cheio de mim mesmo: há as coisas que eu quero fazer e as coisas que eu não quero fazer, as pessoas com quem eu gosto de conviver e as pessoas com quem eu não gosto de conviver. Tudo sempre girando em torno do prazer e do desprazer, dos gostares e dos desgostares, desse Eu tão cultivado, tão protegido, tão mimado. Eu, Eu, Eu!
A prática da atenção, quando colocada na categoria “coisas que eu quero fazer” ou “coisas que eu gosto de fazer” etc., já está fadada ao fracasso, pois, em breve, em um dia de cansaço ou frustração que cedo ou tarde chegará, será colocada na categoria “coisas que eu não quero fazer” e deixará de ser uma prática.
Elaborei as primeiras práticas de atenção em 2009; reescrevi tudo em 2013; reescrevi tudo de novo em 2017; e estão sendo publicadas em livro somente agora, em 2019. Por quê? Porque durante boa parte desses anos, elas estiveram na categoria “coisas que eu gosto de fazer”, sabe como é, quando me dá vontade. Eram textos engenhosinhos escritos por mim, mas sem nenhum impacto real na minha vida.
As práticas de atenção somente se tornaram um hábito quando consegui colocá-las na categoria “coisas que se fazem”, que incluem as clássicas comer e dormir, mijar e cagar, mas também “ser polido e gentil com as pessoas” e meditar. Faço essas coisas não porque eu quero (Deus sabe que quase nunca quero ser polido e gentil com as pessoas) e não porque tenho algum objetivo concreto a atingir (a maioria das pessoas com quem sou gentil e polido não sabe meu nome e nunca me verá de novo), mas porque sim: porque é o que se faz. Não tem nada a ver comigo, com minhas vontades, com meus prazeres.
* * *
A escolha é: ou queremos estar aqui, habitando de forma plena o momento presente que está acontecendo agora e que é a culminação última da realidade, ou queremos estar onde sempre estivemos, mastigando ofensas e saboreando vontades, nunca percebendo as pessoas à nossa volta, eternamente orbitando nossos próprios, gigantescos Eus.
Para conhecer o trabalho de Alex Castro, além das datas de lançamento do livro e dos encontros “Prisões”, acesse: https://alexcastro.com.br/
Para comprar o livro diretamente com o autor: https://alexcastro.com.br/atencao/
*Mondo, no Zen, é um diálogo entre um discípulo e o seu mestre.
* O Bodisatva, no budismo Mahayana, é um ser que procura usar sua sabedoria para ajudar outros seres a se tornarem iluminados.
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2 Comentários
Gostei muito.
Gratidão pela entrevista e pelo trecho do livro 🙂 e parabéns Alex Castro pela publicação do livro ^.^