Matthieu Ricard, “o homem mais feliz do mundo”, fala sobre o encontro entre as duas tradições
Ao definir a ciência como uma investigação empírica e rigorosa da realidade, Matthieu Ricard afirma que ela não se presta nem às crenças cegas, nem aos dogmas, nem tampouco a hipóteses não verificáveis. Não serve a dogmas, tornando difícil o diálogo entre ciência e religião, exceto no caso do budismo. Uma afirmação frequente do Dalai Lama é que, caso a ciência contradiga algumas das propostas budistas, a posição budista deveria mudar, demonstrando total abertura de espírito. Isso levou à criação do Instituto Mind and Life.
A ciência pode ser definida como uma investigação empírica e rigorosa da realidade, com o objetivo de descobrir e explicar os fenômenos naturais, bem como seu funcionamento. Seu campo de ação compreende não apenas os fenômenos exteriores, estudados pela física e pela biologia, mas também o funcionamento da mente, da alçada da psicologia, e a natureza da experiência vivida, ligada à introspecção, à fenomenologia e à compreensão da natureza de nosso próprio espírito. A ciência não se presta, assim, nem às crenças cegas nem aos dogmas, e menos ainda às hipóteses que não podem ser verificadas empiricamente.
Portanto, a maior parte das religiões que se fundamentam em dogmas inverificáveis, como o da criação do universo, fogem ao campo da ciência. É exatamente esse aspecto dogmático que dificultou a maior parte dos diálogos entre ciência e religião.
O caso do budismo é ligeiramente diferente, porque desde sua origem ele teve por missão ultrapassar o abismo entre as aparências e a realidade, isto é, entre a maneira como percebemos as coisas e sua verdadeira natureza.
Do ponto de vista da história das ciências, antes da era cristã, o budismo já havia sugerido uma refutação da existência de partículas indivisíveis muito mais sofisticada que a descrição dos átomos – proposta na Grécia antiga por Leucipo e Demócrito. Por volta do 1º século d.C., os tratados sobre a teoria da percepção registrados pelos filósofos budistas eram de um surpreendente modernismo. Aliás, um dos ramos da filosofia budista, chamada pramana, fundada sobre um sistema de lógica bastante elaborado, visa a estabelecer um “conhecimento válido” da realidade.
Esse passado intelectual coloca o budismo muito à vontade nos diálogos com a ciência. O principal ponto gerador de dificuldades entre o budismo e a ciência contemporânea é a investigação da natureza da consciência, questão das mais complexas.
O Dalai Lama, no entanto, afirma frequentemente que, se a ciência contradissesse de modo irrefutável certas proposições do budismo, seria, sem dúvida alguma, necessário abandoná-las. É dessa forma que o Dalai Lama declarou que a cosmologia budista tradicional (baseada, por sua vez, na cosmologia hindu vigente na Índia há 2500 anos) havia se tornado obsoleta perante os conhecimentos científicos atuais. Para avaliar sua afirmação, é como se o Papa declarasse o abandono da ideia da criação do mundo em seis dias.
Tal abertura de espírito permitiu, assim, um diálogo e uma colaboração frutuosa entre ciência e budismo há já cerca de trinta anos. Em 1987, o neurocientista Francisco Varela e o advogado americano Adam Engle criaram um organismo para facilitar o diálogo entre budismo e ciência, permitindo que o Dalai Lama encontrasse alguns dos cientistas contemporâneos mais eminentes: o Mind and Life Institute. O instituto, mais tarde, ampliou seu objetivo para o diálogo entre as ciências contemplativas em geral e as ciências modernas, incorporando meditantes de outras tradições religiosas.
O Mind and Life Institute organizou, ao longo do tempo, mais de trinta encontros (com duração de dois a cinco dias) entre contemplativos e os representantes mais respeitados de diferentes disciplinas, desde a física quântica às neurociências, passando pela psicologia, educação, ciências ambientais e economia solidária. Diversos detentores de prêmio Nobel participaram desses encontros, dentre os quais o prêmio Nobel de Física, Steven Chu, e o prêmio Nobel de Economia, Daniel Kahneman.
Um dos encontros Mind and Life, organizado em 2003 com o renomado MIT de Boston, reuniu mais de mil cientistas. A última reunião, organizada pela filial europeia do instituto, ocorreu em Bruxelas em setembro de 2016, e o tema foi “Poder e consideração do outro” (Power and care). Em torno do Dalai Lama reuniram-se eminentes especialistas, como o etólogo Frans de Waal, a antropóloga Sarah Blaffer Hrdy, a ambientalista Johan Rockström, os economistas Dennis Snower e Paul Collier, a neurocientista Tania Singer, o rabino Awraham Soetendorp, o frade dominicano Thierry Marie Courau, diretor da Faculdade de Teologia e Ciências Religiosas do Instituto Católico de Paris, a muçulmana canadense Aala Murabi, a ativista pacifista Maori Pauline Tangiora e Jody Williams, prêmio Nobel da Paz.
A filial europeia do Mind and Life é presidida por Amy Cohen-Varela, viúva de Francisco Varela. O conselho compreende membros como os neurocientistas Wolf e Tania Singer, respectivamente diretores de pesquisa nos Institutos Max Planck de Frankfurt e de Leipzig. Até recentemente, fiz parte do Conselho do Mind and Life Institute e do Mind and Life Europe e compareci a cerca de 20 encontros.
Este texto foi originalmente publicado no blog de Matthieu Ricard, em francês, e gentilmente cedido à Bodisatva.
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