A prática do Darma inclui o cultivo de relações benéficas com a biosfera e todos os seres
Quando trabalhamos com o tema ambiental ou, de um modo geral, com todos os temas de reorganização social, podemos partir de uma posição como se fosse uma posição derrotada, porque vemos a sociedade andando velozmente, aceleradamente, em direções diferentes da responsabilidade social, humana, psicológica, ambiental e até mesmo tecnológica. A sociedade aparentemente avança em uma direção muito perigosa, com muita força e velocidade.
Tenho acompanhado esse processo desde o final dos anos 1960. Nessa época, por volta de 1972, os países europeus já estavam em outra paisagem. Com 23 anos, tive a oportunidade de viajar por vários países europeus. Vi museus e outdoors trazendo a preocupação ambiental. Em um museu de ciência na Inglaterra, por exemplo, eles prepararam um espaço que simulava uma praia, com lixo esparramado. Já estavam apontando esse descuido, essa forma humana de poluir e criar obstáculos para os seres. De lá pra cá tivemos mudanças. Como meu mestre Chagdud Tulku Rinpoche costumava dizer, “as coisas boas melhoram, aumentam, e as coisas ruins também”. Algumas coisas ruins vão aumentar, mas algumas coisas boas vão aumentar também. Entre essas coisas boas, tivemos, por exemplo, o despertar de uma nova consciência ambiental.
Naquele tempo, o Brasil defendeu uma posição que ninguém mais teria coragem de defender. Em 1974 foi feito um acordo nuclear com a Alemanha. Lembro que o general Ernesto Geisel declarou: “Pela vontade unânime do povo brasileiro, nós estamos criando um programa nuclear…”. Eu estava terminando, com meus alunos do departamento de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, um estudo bem abrangente, uma pesquisa na área da energia nuclear. Levantamos a quantidade de acidentes e incidentes que já haviam ocorrido nos países que usufruíam desse tipo de geração de energia, e publicamos os resultados. Enviei o material para o professor José Goldemberg, à época presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Imediatamente ele publicou a pesquisa na revista Ciência e Cultura, e assim foi criada a primeira comissão da sociedade brasileira para tratar da questão da energia nuclear.
Fui convidado, então, pela SBPC, para representar essa sociedade recentemente criada. Fiz parte de todas as edições da comissão. Fui também consultor quando houve o acidente com o césio radioativo em Goiânia. Esse foi um momento interessante, fui para uma posição acima dos gestores nucleares. Sempre me colocaram abaixo, naturalmente, pois era representante da oposição. Mas, pela primeira vez, os governos precisaram me chamar e fui aos gabinetes dos tecnólogos dessa área. Trouxe essa reflexão inicial para nos animar, para não pensarmos que estamos com uma causa perdida na questão da educação.
Vamos olhar agora o problema da macroeconomia. Podemos dizer que o capital internacional não tem problema algum em destruir um ambiente até o fim e depois simplesmente trocar de ramo. Mas não vamos acusar só os americanos. Tenho acompanhado a questão ambiental da venda de madeira no Brasil há muito tempo. Até recortei a notícia do jornal quando foi fechada a última madeireira de Santa Catarina.
É provável que os gaúchos estivessem em Santa Catarina antes de começar a obrigação do plantio de madeiras em reposição ao que é retirado das florestas. Eles simplesmente encerraram a produção ali e se transferiram para o Paraná. Agora os gaúchos, meus conterrâneos, estão chegando ao Pará. A madeira que o Brasil está usando agora vem do Pará. Para mim é uma coisa aflitiva imaginar que estou construindo no Recife com madeira do Pará. Eles vão desmatar, depois vão trocar de ramo. Esse é o pensamento do tipo destruidor. Não precisamos falar só do capital internacional, ou dos americanos e dos europeus, podemos colocar essa questão do pensamento destruidor como sendo nossa também, do próprio ser humano.
Esse comportamento negativo e aparentemente vitorioso está associado ao que podemos chamar de agronegócio. Ele vai destruindo a Floresta Amazônica, instalando novas paisagens. E os madeireiros seguem assim, apesar de hoje serem um pouco mais regulados. Precisam cumprir a legislação e são vigiados por satélite. Lentamente, está se formando um anel no entorno cujo objetivo é minimizar sua ação. Naturalmente, fazem lobby dentro do Congresso Nacional, alteram a legislação e se beneficiam de várias formas. Algumas vezes suas multas são perdoadas, mas acredito que nesse momento estão razoavelmente contidos. E assim tentam se adequar a um novo formato, porque simplesmente não é mais possível viver desse modo, agindo com tal tipo de inteligência. Mesmo que haja uma pujança econômica, a situação é naturalmente insustentável.
Partimos de um quadro no interior do qual a sociedade se organiza para simplesmente saquear. Temos, seguramente, pelo menos cinco séculos de saques gerais. A história da humanidade nos últimos cinco séculos é essa, de saquear povos, saquear a natureza, saquear as montanhas, os rios, saquear de um modo geral, tudo com que nos deparamos.
Tenho um amigo historiador que lançou um livro recentemente, com um prefácio do Leonardo Boff, muito interessante. Ele mostra como o Brasil já nasceu ajustado à economia globalizada. Quando o Brasil foi “descoberto”, ninguém perguntou para as pessoas que viviam aqui quais eram suas prioridades. A prioridade era unicamente o capital internacional. Fomos colonizados pelo capital internacional da época, a Companhia das Índias. A divisão das capitanias hereditárias foi feita no papel. Sem conhecimento dos rios, dos povos e das aspirações políticas das pessoas que viviam no país. Os primeiros imigrantes eram administradores, todos eles fidelizados ao capital internacional e à gestão internacional. Falavam uma língua que ninguém entendia e que, aliás, tornou-se a língua vigente na nova terra. Eles trouxeram populações de outros lugares para viver no “novo” território e para trabalhar; trabalhadores internacionais – que vieram forçados, pelo que se sabe. Vieram forçados e não tiveram voz ativa alguma nesse contexto. O que eles plantaram também foi trazido de outros lugares, essencialmente a cana-de- açúcar. De resto, tudo o que havia originalmente aqui foi saqueado, os minérios e as florestas. Temos mártires de norte a sul do país, pessoas que pensaram de forma subversiva, ou seja, fizeram um círculo – como o nosso nesse novo projeto educacional – e pensaram como poderíamos viver melhor.
A questão que se coloca é: “Nós, o povo dessa terra, queremos fazer o que aqui?” Ainda privilegiamos as elites nacionais e internacionais. Somos ainda, de forma não muito clara, colonizados por um pensamento externo. Desse modo, estaremos criando e sustentando a realidade do país. Talvez o grande mérito da última década tenha sido o surgimento da sensação de que podemos nos reunir em assembleias e dirigir nossos destinos. Isso é profundamente subversivo, para usar a linguagem dos anos 1960 e 70. É algo realmente novo.
Tenho encontrado diversos grupos em diferentes organizações, algumas grandes, como a Câmara do Comércio Brasil-Estados Unidos, a Braskem, a Votorantim. Converso com eles, sou constantemente convidado para diálogos. E quem me convida são os próprios gestores, pessoas como nós, seres humanos que também querem fazer diferente. Mas estão dentro das organizações; não podem, não conseguem promover grandes alterações porque as organizações onde estão inseridos já têm uma feição. E as pessoas que estão dentro desse processo têm de operar com uma determinada inteligência. Não há outra forma de gerir. Essa é uma questão que se coloca para todos nós.
Olhando essa situação, nos damos conta de que os professores têm uma importância admirável. Eles estão lidando com as novas gerações, vão formar as pessoas que aceitarão ou não o que é colocado pronto para elas. Hoje encontramos muitas crianças que não estão se adaptando à escola. Talvez a gente não esteja entendendo bem o que isso significa. Porque também não sentamos em roda e pensamos propriamente como deveria ser a escola. As crianças estão mudando. E as escolas estão gerando adultos que talvez possam não se ajustar à forma como a sociedade está se mantendo.
Ivan Illich, um pensador da década de 1960, escreveu um trabalho muito importante chamado “Sociedade sem Escolas”, onde mostra o papel político da escola tradicional como sendo o papel de domesticação das pessoas. E assim, vejo o projeto do Curso de Educação para Sustentabilidade inspirado no Educação Gaia como muito importante, pois não se trata de domesticar, mas sim de emancipar os alunos. É maravilhoso que a gente consiga gerar isso, que possamos dar a nossa contribuição e que, através da nossa inteligência local, possamos passar a pensar globalmente de um modo mais lúcido.
O ponto seguinte é: precisamos encontrar eixos referenciais para essa mudança educacional. Eixos que a gente não precise abandonar no futuro. Esse processo de assembleia torna necessário o estabelecimento de um eixo referencial através do qual possamos conversar com as pessoas em qualquer lugar. Vou trazer uma contribuição, mas vocês não precisam utilizar isso. Se encontrarem um eixo referencial melhor, eu mesmo vou adotá-lo. Esse eixo referencial foi utilizado por Sua Santidade o Dalai Lama.
Não se trata de um referencial religioso. É um referencial de bom senso, uma percepção de como sentimos a vida, o mundo. De uma forma consciente ou não, buscamos a felicidade, buscamos ultrapassar o sofrimento. E de um modo geral, não apenas os seres humanos, mas os animais, as plantas, todos os seres têm esse referencial.
Esse referencial é muito importante. O Dalai Lama costuma perguntar aos cientistas: “Qual é a base ética de vocês?” E eles olham com uma cara estranha. Os cientistas se movem, não precisam propriamente de uma base ética. Eles imaginam que o conhecimento, a ciência em si mesma, seja alguma coisa naturalmente pura e, assim, tudo aquilo que for criado dentro do que chamamos “ciência” esteja bem. Mas poderíamos fazer a pergunta mais específica: “O senhor trabalha para a felicidade da população?”. Acho que responderiam: “Não tenho bem certeza, mas decerto que sim”. Ou também poderíamos perguntar: “Você trabalharia para gerar sofrimento para as pessoas?”. Certamente a resposta seria “Ah não, isso não.”
Nos anos 1970, no Departamento de Física da UFRGS, pesquisávamos sobre terras raras, um determinado tipo de material. Ninguém sabia muito bem por que realizávamos aquela pesquisa. Um outro professor nos esclareceu que as terras raras são utilizadas para melhorar a economia de nêutrons nas bombas nucleares. Descobrimos que estávamos engajados no esforço de guerra americano. Recebíamos as verbas das agências de pesquisa americanas como se fossem algo muito bom para o nosso departamento. Por que estávamos fazendo aquilo? Porque não havia um conselho de ética. Temos um conselho de cientistas no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), na Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), que julgam as verbas, mas eles mesmos não possuem um conselho de ética. Aprecia-se mais se a pesquisa é interessante dentro de uma aspiração por prestígio internacional. Ocorre o mesmo no cenário econômico. Se perguntarmos para as empresas: “Você está produzindo a felicidade para as pessoas ou está produzindo a destruição do ambiente?” Eles provavelmente diriam “Olha, nós não entramos em questões políticas”.
Também poderíamos perguntar “E a escola, está produzindo o quê? Estamos produzindo a felicidade das pessoas?”. Com essa pergunta, nos damos conta de que a escola se encontra atrelada ao esforço econômico. Treinamos as pessoas que ao final do processo afunilam-se, dentro de uma inteligência que visa à ocupação de postos de trabalho, como se essa aspiração desse conta de todos os nossos anseios como seres humanos. Mas a escola, em algum momento, pensou no ideal de felicidade e de ultrapassar o sofrimento? Em algum momento se pensou sobre isso? Não se pensou, nem ao menos olhamos para as crianças, para apurar se a felicidade delas foi o resultado de nossa ação.
A questão humana é de grande importância. Isso foi o que, na minha história pessoal, me levou a olhar o aspecto espiritual como um foco. Percebi que, mesmo que a gente gere uma visão ecológica, se não gerarmos uma visão interna elevada, se não melhorarmos como seres humanos, não conseguiremos implantar boas ideias, mesmo que elas existam.
Os professores são alimentados pela alegria que veem nos rostos dos alunos. Essencialmente, essa visão de que buscamos a felicidade e nos afastamos do sofrimento, nós, os outros, as crianças, a sociedade como um todo, e que temos um destino positivo, e que podemos assumir isso na nossa mão, gerar o conhecimento que precisamos. Temos os mais diversos desafios locais, mas em todos esses locais, podemos produzir novos conhecimentos. Somos pesquisadores, inovadores. Podemos produzir coisas inéditas. E, com certeza, operar com essa forma de mente é muito mais interessante. Educação para Sustentabilidade não é um processo de ensino, é um processo de geração de conhecimento. Todos geram conhecimento, todos são participantes. E aprendemos uns com os outros, o tempo todo.
Ainda como um novo referencial, seguindo a inteligência reflexiva que estamos olhando, temos as tradições contemplativas, a sabedoria advinda da prática do silêncio. Após contemplar, silenciamos. Considero o silêncio como uma experiência muito importante no processo vivo do conhecimento. Se os alunos conseguem ficar em silêncio, ficam menos responsivos, aprendem a ver o estímulo ao redor e a não responder de imediato, de um modo compulsivo.
Esse silêncio não é um amortecimento, não é sonolento. É mais parecido com um silêncio do goleiro na hora do pênalti. Ele é aberto, receptivo e intenso, mas o aluno não se move, treinamos assim. Essa é a base mais profunda da inteligência. Essa capacidade de gerar o conhecimento e de parar diante das coisas é o que de fato produz o novo. De outro modo, seguimos simplesmente respondendo. A Educação Gaia é uma possibilidade de nos reconstruirmos, de aprendermos a olhar de forma ampla, aberta. E essa minha fala é no sentido de evidenciar que nunca estamos realmente derrotados, mesmo quando imaginamos que o sistema educacional falhou completamente.
Texto originalmente publicado na Revista Bodisatva n. 25, em janeiro de 2012.
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