Em conversa com Lama Samten no CEBB Talks, o monge de Uganda Bhante Buddharakkhita fala sobre como aplicar a sabedoria budista para deixar de ser prisioneiro da crise
“’Ensino Budismo Theravada com sabor africano de forma a assegurar que as pessoas entendam o senhor Buda e não o vejam como algo estranho, gringo ou asiático. Vejo muita gente sofrer em Uganda e na África. Penso nesta missão como uma maneira de virar o jogo, de mudar o paradigma do sofrimento para a felicidade na África.’
Fundador e abade do templo e Centro Budista de Uganda, autor de Plantando Sementes do Dhamma: A Emergência do Budismo na África (sem publicação no Brasil ainda), Buddharakkhita nasceu Steven Jemba Kabogozza e cresceu como católico. Ele se filiou ao Budismo em 1990 enquanto estudava na Índia e tem ensinado meditação mindfulness na África desde 2005.
‘Os líderes culturais e políticos da África não acolheram a tradição religiosa e filosofia budista. Não sei se há realmente algum presidente, rei ou liderança cultural em Uganda, na África, que abraçou plenamente o Budismo…Se houvesse algum que o fizesse, o Budismo poderia crescer muito rápido.
Eu pesquiso sobre a prática meditativa e como ela pode curar traumas intergeracionais. A maioria das pessoas tem algum trauma. Nós convivemos com a ressaca colonial, que continua a repercutir.'”
— Trecho de ensaio sobre Bhante Buddharakkhita no jornal The Guardian
Em 8 de maio de 2021, Lama Padma Samten recebeu Bhikkhu Bhante Buddharakkhita em um encontro do CEBB Talks. Sua fala foi uma chuva de alegria e inspiração para todos os que o escutavam (inclusive seus alunos brasileiros da Casa de Dharma), e a Bodisatva compartilha, abaixo, a tradução de um trecho.
Gostaria de trazer uma reflexão sobre enfrentar a crise mundial com sabedoria, compaixão e paz. É muito interessante que estas palavras – “crise mundial” – não se referem apenas ao mundo lá fora, mas também à nossa humanidade, ao estado da nossa experiência humana. Podem ser crises pessoais: eu me lembro de uma vez em que experienciei o que se chama de lockdown, no meio do nada, onde carros particulares estavam proibidos de trafegar na estrada. Fiquei preso, disseram que era ilegal permanecer no local onde eu estava hospedado. Era um hotel onde me foi pedido que fizesse autoisolamento. Disseram que era ilegal estar no hotel, era ilegal estar na estrada, era ilegal ir a qualquer lugar, então eu estava sem opções, sem a possibilidade de ir e vir. Tive que ir à polícia e explicar a eles o que estava acontecendo. Eu estava em uma crise pessoal, eu não podia sequer ir ao templo, sair do hotel, pegar a estrada.
Neste momento, tive que lembrar a mim mesmo de ser mais sábio, escolher os melhores cursos de ação, e me acalmar para encontrar paz. Eu tive realmente que dizer “que eu encontre a paz, que eu seja feliz”. Uma policial, inclusive, estava muito zangada comigo porque eu desobedeci as diretrizes do presidente. Eu estava viajando, apesar de ser proibido [nas novas circunstâncias]. Para resolver aquela situação, precisei praticar autocompaixão. Eu estava sofrendo muito, não estava nem fazendo minhas refeições. Portanto, consigo me conectar bem com essa conversa sobre sabedoria, paz e compaixão e sobre como lidar com a crise mundial.
O mundo está atravessando muitas, muitas crises; por exemplo, a pandemia de COVID – acho que é familiar para vocês. Temos também as mudanças climáticas. Essas são crises bem grandes. Mesmo agora, acho que a COVID está ofuscando as mudanças climáticas. Temos conflitos em larga escala, guerras em todo lugar, a crise humanitária.
Minha abordagem para a crise mundial é lembrar a mim mesmo do significado da palavra crise. Na língua chinesa há dois caracteres: um representa o desafio, o outro [representa] a oportunidade de lidar com estes desafios. Às vezes, enfrentamos os desafios, posso até dizer crises, mas eles não desaparecerão. O que podemos fazer? A abordagem budista é a de realmente encontrar um caminho, como for possível, de nos relacionarmos com o que está acontecendo. Esse relacionamento precisa ser muito lúcido e permeado por sabedoria, compaixão e paz. Agora temos o problema, o desafio e a oportunidade de lidar com o desafio. Minha fala é sobre essas oportunidades que temos em meio a todas essas dificuldades e crises.
Vou começar pela sabedoria. Sabedoria é muito importante em situações como a que estamos [enfrentando] no momento. Sem ela, podemos adentrar a confusão, nos deludirmos, ignorando os fatos. A palavra páli é paññã, que significa “ver as coisas em detalhes”. Precisamos ver as coisas claramente. Em outras palavras: precisamos ver as causas. Quais são as causas e efeitos do problema? Quando vemos as causas, é mais fácil nos relacionarmos com o que está acontecendo. Se não chegamos até as causas, ao menos tentamos descobri-las, tentando ser bastante claros [a respeito delas] para que possamos efetivamente minimizar ou erradicar os efeitos do problema.
Outra coisa que descobri ajudar bastante é lembrar de um ensinamento budista [que diz] que o mundo está se desintegrando. Na verdade, as pessoas falam do mundo, e perguntam ao Buda o que significa “o mundo”? O Buda fala: o mundo está se desintegrando. Em outras palavras: está se despedaçando. E isso é novidade para você? O que você esperava deste mundo? Ele está desmoronando. Do ponto de vista budista, nós já sabemos disso, não é assustador, é claro. Mas quando chega até nós, quando as coisas mudam ao nosso redor, nos assustamos.
Voltando ao meu exemplo inicial, as coisas mudam da noite para o dia. Foi, de fato, de um dia pro outro que anunciaram que carros particulares não podiam mais pegar a estrada. Você vê, esse é o mundo, as coisas mundanas estão se transformando o tempo todo. Saber disso me ajuda a acessar a realidade e a não viver em autonegação, a aceitar sabiamente o que está acontecendo. A maior parte do tempo nós sofremos porque não aceitamos, porque continuamos negando. Em Uganda, porque o COVID não nos atingiu tão duramente quanto em outros países do mundo, muitos amigos me disseram: “ah, na Uganda não tem Covid”. Coisas que são evidentes… as pessoas estão morrendo e eu ouço em Uganda que o Covid não existe, porque não nos atingiu tão fortemente. As pessoas vivem em autonegação, sem saber que tudo está mudando, então isso é super útil para ajudar a lidar com a crise mundial.
Outro aspecto da sabedoria que descobri que ajuda muito é Saber que Todos Os Seres estão Interconectados. Interdependência, interconexão ou interrelação de tudo que existe no mundo é uma chave porque, na maior parte do tempo, nos esquecemos disto e muitos dos problemas que estamos enfrentando se devem à falta deste conhecimento. Nós nos esquecemos! É muito claro que estamos conectados. Nós respiramos e damos dióxido de carbono para as árvores e as árvores nos dão oxigênio, e nós as cortamos! Esses são os grandes pulmões que temos lá fora. O que você esperaria? Mudanças climáticas. Agora, é preciso que saibamos que estamos todos interconectados.
Na sabedoria africana, que eu estou pesquisando no momento, existe um belíssimo conceito: ubuntu, que significa eu sou porque você é, você é porque eu sou. É exatamente sobre isso que o Buda estava falando quando [citava a] originação interdependente, ou originação dependente, ou cossurgimento dependente. Buda disse: quando isto é, aquilo é; quando isto não é, aquilo não é. Quando isto surge, aquilo surge. Quando isto cessa, aquilo cessa. Isto é exatamente o que podemos ver na conexão entre a sabedoria africana e os ensinamentos do Buda, bem isso! Quando nos sintonizamos com esta interconectividade, podemos ver como transformar nossas atitudes e comportamentos desde o nível individual.
Quando os indivíduos se transformam, ocorre uma transformação global. Desse modo, há também o que chamamos de transformação da comunidade por meio da qual estamos unidos. Dentro da palavra “comunidade” existe a palavra “unidade”, então podemos nos unir, nos ver como uma unidade na comunidade. Alguns dos problemas que estamos enfrentando acontecem, na verdade, por causa da desunião, e eu pude ver [na pandemia do] COVID como a unidade é muito, muito importante. Nós tivemos que cooperar para ajudarmos uns aos outros. Não era o governo que estava ajudando, mas, sim, a comunidade, para lidar com as crises. Podemos também ver países que têm essa solidariedade, [como o] Brasil ajudando a Uganda. Isso vem com a compreensão da interconexão e é por isso que cooperamos; senão, se Brasil e Uganda pensarem que são separados, não pode haver cooperação. Achar que o que acontece no Brasil não vai afetar o que acontece em Uganda é delusão. O que acontece em Uganda afeta o Brasil, o que acontece no Brasil afeta a Uganda. Então é por isso que essa sabedoria é muito importante.
Outro ponto que eu acho que é muito útil nestes tempos é, na verdade, a compaixão. Compaixão é a qualidade do coração que estremece quando encaramos o sofrimento, as crises dos outros, [incluindo] nós mesmos. Há essa qualidade coração-mente que estremece ao se defrontar com essas situações. Quando praticamos esse tipo de compaixão, compaixão consigo mesmo, compaixão direcionada a quem está sofrendo nestas crises, isso pode te levar à ação. Chamamos isso de compaixão em ação. A compaixão nos ajuda a realmente fazer algo para ajudar os outros.
Há muitos projetos que vieram à tona baseados na compaixão, com a ideia de aliviar o sofrimento na comunidade, na sociedade. Nós temos a escola da paz, iniciamos o empoderamento das jovens e das mulheres para ajudar na comunidade, projetos para prover água limpa para a comunidade, tudo isso é parte de nossos projetos. Na realidade, quando olhamos a prática da compaixão, ela é uma meditação em si mesma. Portanto, não basta apenas repetir: “que todos os seres estejam livres das crises do mundo”. Você tem que realmente meditar, praticar, seja sentado ou andando ou como for, repetindo na mente “que eu seja livre do sofrimento e das causas do sofrimento, que todos os seres sejam livres do sofrimento e das suas causas”. Pratique isso até que se torne parte da sua prática ao lidar diretamente com quaisquer desafios mundiais, de modo que você possa se relacionar com eles a partir de um lugar de cuidado e ternura em vez de não se importar de verdade.
Eu desenvolvi uma sigla aqui para a prática da compaixão. Chama-se RAID. R é de Reconhecimento de que todos os seres experienciam estas crises, dor e sofrimento. Isso é uma maneira de desenvolver empatia por todos os outros seres. A é de Aceitação. Você aceita que o sofrimento e as crises são parte da vida. [Hoje as pessoas] estão falando de COVID? No passado, elas tinham varíola. Essas doenças sempre estiveram aqui. Temos que aceitar isso como parte do que é ser humano. Os animais também enfrentam este tipo de problemas. As pessoas tiveram a gripe espanhola, acho que depois da primeira guerra mundial. Elas também morriam [de tragédias] no passado. Então, isso não é novidade alguma para o mundo, de fato. Mas nós temos que nos relacionar de uma maneira compassiva, então você aceita a realidade sabiamente, sem complacência, mas com a sabedoria [de entender] de que isso faz parte da vida dos seres. I é de Inclinação, é inclinar sua mente para desenvolver compaixão através de pensamentos. Você tem que gerá-la em seus pensamentos. Você tem que repetir mentalmente por meio de palavras e também colocar compaixão em tudo o que você faça, em todas as suas ações.
Em seguida, temos a ação. Compaixão na ação significa fazer projetos, organizar as pessoas e uni-las de maneira que elas sejam ajudadas a se libertarem do sofrimento por meio de suas ações (ou atitudes), sejam lá quais forem. Isso é muito útil. Uma vez que você faz isso, você começa a pensar “ok, a crise mundial está aqui”, mas ocorre uma transformação dentro de você, de sua família, de sua comunidade, globalmente até, porque qualquer ato de compaixão afeta os outros, pois – como eu disse anteriormente – todos os seres estão interconectados. Então, compaixão é muito, muito importante.
D é de Devoção: você se devota a essas práticas de compaixão, é preciso se devotar. Não é só inclinar a mente para a compaixão, você realmente tem que se devotar. A palavra em páli é bhavana, o desenvolvimento da mente. Desenvolver a mente é você realmente se comprometer a praticar diariamente, não apenas [praticar] às segundas-feiras ou somente um dia e pensar: “eu já desenvolvi a compaixão”, [falando] “que todos sejam livres do sofrimento e das causas do sofrimento”. E depois, no dia seguinte, você deixa pra lá. Esse desenvolvimento mental tem que ser como comer todos os dias, você come todo dia, você toma banho todo dia, então você desenvolve a compaixão todo santo dia. Isso é um projeto de vida, para a vida inteira. Não é somente até que o COVID desapareça; é por isso que se chama “desenvolvimento”.
Você começa a desenvolver sua compaixão com a meditação. Pode usar essas frases, mas não se atenha a elas. Você deve encontrar o que ressoa com você. “Que eu seja livre do sofrimento, que eu seja livre da dor, que eu seja livre desta crise” . Você escolhe a que ressoa com você, mas não deveria apenas recitá-las mecanicamente, de maneira brusca e rápida, como se estivesse forçando para que a situação acontecesse, sabe? Você apenas se conecta gentilmente com as palavras. Na verdade, isso vai além das palavras, mas nós as utilizamos apenas para manter as frases fluindo; você pode se conectar com o significado? Você pode realmente se ver livre do sofrimento e das crises que enfrenta ou ver o mundo livre do sofrimento? As pessoas dizem “ah, você me manda agir com compaixão, mas as pessoas não param de sofrer”. Ora, não se preocupem! No mínimo, a sua mente não estará cheia de raiva, confusão e todas essas coisas. Ao menos você está se tornando profundamente compassivo e, logo, o mundo também, tenho certeza, conforme já vimos. Então, se a crise continua ou não, não é esse o problema.
A outra coisa que descobri que funciona bastante é paz, cultivar a paz, śānti em páli. A paz também tem que ser praticada para se lidar com as crises do mundo. A maioria das pessoas fala sobre paz, canta sobre paz, mas o que estou falando aqui é paz na teoria e na prática. Na teoria, você pode aspirar que as outras pessoas tenham paz, incluindo você mesmo. Na delegacia, eu estava aspirando que eu mesmo encontrasse a paz. “Que eu encontre a paz, que todos estes policiais, que estão ficando bem desagradáveis, encontrem a paz” [risos]. Mas na verdade isso não é suficiente. Nós precisamos daquilo que chamo de paz em ação. Paz em ação significa que todas as coisas que você faça sejam ações ações de paz, e não do contrário, de conflito. Conflito é uma crise. A maior parte do tempo nós não estamos em paz, estamos em conflito. Temos desejos conflituosos: queremos fazer isso, acabamos fazendo aquilo. Então, esse também é um problemão. Se não conseguimos encontrar a paz, nós precisamos cultivar a paz.
De todos os projetos que realizo, um deles é particularmente significativo (é claro que todos são significativos), mas [este] projeto é chamado de Meditação de Mindfulness, Meditação de Insight. É o que tenho compartilhado com a comunidade e é isso que pode nos manter mais pacíficos, tendo mais equanimidade. Porque você pode realizar vários projetos, lidar com a crise mundial, mas, se não estiver em paz, você não chega a lugar algum. Sua abordagem em qualquer coisa que faça deve se basear na paz. Estar em paz significa, para mim, cultivar todos os tipos de meditação que estejam direcionadas para obter clareza e calma na mente e no corpo e cultivar a equanimidade.
Tudo o que praticamos na meditação pode ajudar a desenvolver a paz. Esta é a paz à qual nos devotamos, não é somente falar a respeito. Você se devota a isso, então sua mente se pacifica. Quando sua mente se torna pacífica através da meditação, isso significa que você está eliminando as contaminações, tais quais cobiça, apego, ódio, delusão, confusão e medo. Quando a mente está em paz, ela faz o oposto disso, torna-se mais generosa, mais grata, se torna desapegada, tem a compaixão verdadeira sobre a qual falamos: tem a bondade amorosa; tem o que chamamos de sabedoria e compreensão do que está acontecendo; tem também a coragem para lidar com a crise mundial ou o que quer que aconteça. Tudo isso eu considero extremamente útil para enfrentar as crises do mundo.
Por fim, gostaria de concluir dizendo que o surgimento das crises mundiais está além de nosso controle, mas a Prática da Sabedoria, da Compaixão e da Paz pode fazer a diferença entre ser aprisionado pela crise mundial e pelas crises pessoais, ou ser libertado. Esta é a reflexão que ofereço, e muito obrigado por me ouvirem!
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2 Comentários
Excelente! O diálogo com as sabedorias africanas pode abrir ricas chaves para o florescimento da sabedoria no Brasil.
Que maravilhoso.
Temos a sensação clara e a confiança de que podemos encontrar a Paz através da Sabedoria e meditaçãodo, tendo a Methabava como metha de realização individual e coletiva.