Foto: Baylee Gramling (Unsplash)

Como usar leave-in para estourar uma bolha de sofrimento

Um relato de autocura pela ampliação da visão


Por
Revisão: Caroline Souza

Com um pote de um creme leave-in muito cheiroso na mão, Yasmin, de 27 anos, me faz um anúncio em tom dramático:

Vou assumir os cachos pela primeira vez.

Yasmin tem pele clara e cabelo crespo. É uma configuração genética tão banal que não deveria obrigar ninguém a enfrentar preconceito, estigma, bullying e baixa autoestima. Pior é saber que, ainda hoje, humilhações e violências são impostas aos pequenos, pelo simples fato de terem cabecinhas encaracoladas. Claro, né? O motor do samsara não descansa e qualquer coisa que seja simples e bela, como os cachinhos de uma criança, pode ser transformada em causa de sofrimento. 

“Só quem passa por isso entende como é”, me explica Yasmin, “com cinco anos, eu ouvia minha avó gritar: Pelamordedeus, endireita esse mafuá na tua cabeça. Antes de sair de casa, eu tinha que passar cremes e prender os cachos, senão alguém na família me repreendia. Já adulta, eu ouvia relatos de mulheres que sofriam ofensas racistas e não conseguiam trabalho por causa dos crespos. A escova progressiva resolveu minha vida e passei a não viver sem ela.”

Naquela manhã, eu tinha que viajar duas horas até o centro de Darma onde faria meu retiro fechado. Desejei boa sorte à minha amiga, lamentando não poder ficar para ver o resultado final de sua transformação.

Eu queria ter assistido com Yasmin o emocionante Hair Love, filminho de seis minutos que ganhou o Oscar de melhor curta de animação em 2020. Se você não quer saber de spoiler, por favor não leia esse parágrafo. Se não se importa, aí vai. Em certo ponto do curta um pai tenta cobrir a cabeça da filha com um gorro, para disfarçar os cachos que tinham “acordado” um pouco rebeldes. Quando a menina jogou longe o tal gorro, dei um grito de alegria, pensando no sofrimento de tantas Yasmins. Ela então mostra ao pai um programa em vídeo chamado Hair Love, com muitas ideias sobre como realçar cabelos afros. O homem entende que não é o caso de esconder o crespo como se fosse algo constrangedor, e sim de valorizá-lo. Ele bota a mão na massa, vai seguindo o tutorial e o resultado é um penteado sensacional. “Precisa só de um pouquinho de trabalho e um bocado de amor”, resume, num tom feliz e orgulhoso, a apresentadora do vídeo.

“Um pouco de trabalho e muito amor” também é o que precisamos para lidar com a formidável complicação de nossos processos mentais. Até quando vamos gastar energias construindo padrões e fórmulas de normalidade? E se sabemos que os padrões condenam tantos de nós à amargura da exclusão, até quando vamos seguir cultivando-os, protegendo-os?

Voltei do retiro para encontrar o sorriso revigorado de Yasmin, agora emoldurado por uma bonita cabeleira cacheada. Nas redes sociais, as mensagens de parabéns chegam em cascata, junto com um eventual comentário escandalizado: Mas como assim? Você não vai mais alisar?

A ideia é parar com a escova, sim, digita minha amiga, colocando em dia a virtude da paciência.

Vou parar porque cresci, fiz faculdade, me tornei uma mulher bem informada e entendi que o cabelo crespo é tão bonito quanto o liso. Se estou alisando sem parar há doze anos, pode ser que eu precise no mínimo desse mesmo tempo pra apreciar essa parte de mim que foi tão reprimida e desvalorizada.

Ou seja, Yasmin se livrou da frágil identidade que chorava diante da desaprovação de seu grupo social. Com umas boas camadas de leave-in, ela estourou de uma vez a “bolha” infantil e nutriu a si mesma com o carinho que antes esperava vir dos outros.

Palmas para Yasmin e seu novo Hair Love.

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1 Comentário

  1. LEONEL disse:

    Sou culpado por dar a minhas filhas o cabelo encaracoladoo. Não sei até que ponto elas sofreram na infância e adolescência por essa causa. Hoje, “abaixo dos caracoles de seus cabelos” só existe orgulho e alegria por ser como são.

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