Marcia Baja nos convida a iluminar nosso corpo-vaso em práticas contemplativas a partir de um trabalho suave e contínuo de integração.
No Darma, há ensinamentos apontando diretamente para a nossa natureza livre em práticas a partir do corpo – um dos três kaias (corpos) igualmente importantes do Buda. Para grandes mestres e mestras do budismo tibetano, o corpo é o fundamento da jornada espiritual – sem ele não há despertar.
Em tempos de pandemia e adoecimentos, lideranças budistas têm chamado nossa atenção: precisamos iluminar a relação com o corpo, pois esse desequilíbrio na saúde reflete nossa desintegração de corpo, energia e mente em níveis grosseiros e sutis. Quando não estamos presentes e inteiros, todo o nosso ser adoece.
Para nos apoiar nessa reflexão e completar nossa homenagem às mulheres do Darma, resgatamos esta pérola da querida Marcia Baja. Em nosso Acervo, ela apresenta o corpo como um amigo, enfatizando a importância de integrarmos a firmeza de nossa base com um profundo relaxamento e abertura – vaso perfeito para o silêncio! Vamos experimentar?
Quando somos apresentados à meditação, quase que naturalmente nos voltamos aos aspectos que consideramos mais sutis ou “elevados”, pensando neles como sendo apenas a nossa mente. Queremos ir direto a ela! Não queremos práticas “menores”. Então, recebemos as instruções iniciais: “Pare, respire profundamente e relaxe. Mantenha os olhos focados, sem se distrair, sem se mover”. Ótimo! Alegres, sentamos e começamos a prática. Um minuto, dois, três… e o corpo começa a falar conosco. Amorteceu, coçou, doeu… “Eu estou aqui!”. E nós para ele: “Shhhhh! Quieto! Agora não…Eu estou meditando. Você fica aí paradinho. Por favor, não me atrapalhe!”. Até parece brincadeira, mas é isso que fazemos. Sentamos sem olhar para o corpo e é exatamente aí que ele aparece.
Quando não olhamos para o corpo, ele se torna o foco da nossa meditação. Ao olharmos para ele, iluminando-o com nossa consciência e lhe oferecendo cuidado, ele desaparece! Na verdade, tudo é assim. Quando não olhamos para nossa casa, por exemplo, deixando objetos esquecidos por todos os lados, vamos fatalmente tropeçar neles ou eles cairão sobre nossas cabeças. Com nossa saúde é o mesmo. Quando tudo está bem, não precisamos pensar sobre ela, sequer lembramos que temos um corpo. Quando nos alimentamos adequadamente, mantemos uma atividade física, estamos equilibrados mentalmente, emocionalmente, o corpo simplesmente silencia.
O corpo nos apoia em sua completa generosidade. Mesmo quando não é olhado, seu único esforço é nos beneficiar, gerar saúde e equilíbrio. Se adoecemos, é porque já fomos além do seu limite. E ainda assim, não quer dizer que o corpo queira nos castigar, ele realmente fez o máximo, deu inúmeros sinais, mas como estamos demasiadamente “ocupados”, não ouvimos. Infelizmente, temos uma visão utilitária do corpo. Nós o atropelamos com nossas ideias e desejos, nossos movimentos desequilibrados, nossas emoções perturbadas.
Quando sabemos lidar com o corpo, sabemos lidar com as coisas práticas da vida. Quando iluminamos o corpo, iluminamos a terra e nossas ações. Se não nos relacionamos com o corpo, desenvolvemos uma ligação fantasiosa com a prática espiritual e com o mundo. Acabamos criando obstáculos para nós e para os outros: vamos deixando um rastro de desatenção atrás de nós. A desordem em nosso corpo e ao nosso redor se instala apenas porque não estamos presentes. Guardamos coisas no lugar errado porque nossa mente não estava ali. Podemos simplesmente guardar uma meia no freezer! Como é possível isso? A mente estava em outro lugar.
Para que o corpo não se torne o único foco da meditação e menos ainda um obstáculo para o silêncio, precisamos desenvolver uma abordagem inclusiva, aprendendo a convidá-lo para a prática: “Venha junto comigo. Do que você precisa? Descanse, porque eu vou te olhar e cuidar”. Não precisamos ter nenhum receio ao fazer isso, pois não estaremos perdendo tempo, nem nos desviando da “prática principal”. O corpo nos levará naturalmente para o silêncio e para tudo aquilo que pode ser considerado sutil e elevado. Vamos incluir tudo: pele, músculos, tendões, nervos e ossos! Olhamos isso entendendo que a iluminação inclui a terra — próprio Buda tomou a terra como sua testemunha. Por que ele faria isso?… Vamos nos iluminar a partir dos pés, da base, da nossa boa fundação. Maduros, sem fantasias, unindo céu e terra.
Para aprendermos a iluminar o corpo, a prática de Hatha Yoga é uma ferramenta maravilhosa. Em cada postura, uma oportunidade de visitar o corpo e ampliar suas possibilidades. Movimentos e posturas que despertam a inteligência e a sabedoria do corpo tornando-o cada vez mais forte, flexível e equilibrado, um aliado para nossa prática. Vamos oferecer estímulos positivos, reestruturando e alimentando o corpo com novas informações. Não precisamos sentar e aguardar que o corpo simplesmente se adapte para que em algum momento — não sabemos quando — surja o conforto. Podemos fazer esse trabalho direcionado para o sentar, paralelamente à meditação. Entendendo nossas limitações físicas para sentar, podemos realizar exercícios específicos e estimular nosso avanço.
Enquanto estivermos cuidando do corpo, nossa mente também estará focada. Não há como cuidar verdadeiramente do corpo sem uma mente atenta, sem uma consciência que se espalhe viva por ele todo. Somente com esse olho removemos tensões e rigidez, visitamos lugares esquecidos, tornamos o corpo mais leve, oferecemos espaço. Mais sutil, o corpo acaba revelando uma dimensão de energia que sustenta todas as nossas experiências. Por estarmos profundamente conectados com o corpo, descobrimos esse movimento sutil em nós. Vamos compreender, enfim, que corpo, energia e mente são inseparáveis, um leva ao outro, um equilibra o outro. Nessa prática integramos os três veículos. O simples fato de olharmos dessa forma atenta e cuidadosa revela uma mente amorosa e acolhedora, capaz de encontrar meios de penetrar no universo físico e entender o corpo a partir de suas necessidades.
O corpo está completamente aberto, despido para o nosso olhar. Ele revela tudo o que precisamos saber para realizar um bom trabalho.
O corpo é como um vaso. Vasos são receptivos, guardam espaço para acolher, para serem preenchidos. Como um vaso, nosso corpo também é receptivo e guarda seus conteúdos. Ele está preenchido por memórias e tendências , resultado de todas as escolhas feitas até este momento. Vamos jogando tudo para dentro e acumulando! É muito raro fazermos uma “faxina” interna. Mas assim como um vaso enche, ele também esvazia. Devidamente olhado e cuidado, esse mesmo corpo pode se tornar puro, receptivo, silencioso e confortável, vazio de tendências: o corpo vaso para o silêncio. Olhar para o corpo e descobri-lo nessa perspectiva pode se tornar encantador, um laboratório com descobertas que nos convidam a aprofundar mais e mais.
No início, olhar para o corpo é como entrar numa casa escura. Enxergamos pouco ou quase nada. Na verdade, talvez nem saibamos por onde começar. Por isso recebemos instruções: “agora olhe para o seu corpo, localize tal ponto, faça tal e tal movimento. Sente?”. E assim, vamos sendo conduzidos por dentro do corpo, aprendendo a visitá-lo através de movimentos e exercícios muito específicos, iluminando cada canto com o brilho da nossa consciência. Lugares esquecidos vão sendo iluminados. O corpo está em constante movimento, sempre mudando. Ao oferecermos novas informações e estímulos, ele surgirá gradualmente como um novo corpo, como nosso aliado. O corpo que senta para meditar se apoia numa estrutura muito clara. Podemos dividi-lo em regiões, com funções específicas, e também exercer ações internas envolvendo ossos e músculos que o ajudarão a se sustentar na posição. Estamos vivos na postura! E porque vasculhamos nosso corpo, descobrimos isso. É importante lembrar que a base onde tudo vai acontecer surge da consciência que permeia o corpo e de um profundo relaxar. Só podemos mudar quando estamos presentes e relaxados.
O corpo se mostra muito plástico na medida em que descansa liberado de todas as tensões. O relaxamento não só será a base para o trabalho com o corpo, como também será a base para o silêncio na meditação. O relaxamento é a própria realização da mente natural. Por isso, podemos tomar o resultado como caminho e relaxarmos desde já. O ponto principal é sentarmos em conforto. Como não é a mente que senta, não é ela que escolhe. Nossa posição precisa surgir do próprio corpo, só assim encontraremos conforto. Sentados, a posição das pernas pode variar de acordo com cada um. Não há razão nenhuma para darmos um nó em nossas pernas forçando uma postura de lótus completo, que pode até resultar em uma lesão — que tomará meses para ser curada! Qual é o sentido disso? A prática não é uma batalha, não vamos vencer ninguém, nem temos nada para provar. Mesmo uma boa cadeira pode ser a nossa base. Precisamos sentar com humildade. Precisamos ser simples.
As pernas não representam nenhum limite para a nossa prática, há muitas formas de acomodá-las. O único ponto que se mostra como uma condição não muito negociável é a coluna. Ela deve estar posicionada sempre ereta, expressão de nossa atenção mental. Mas isso também pode ser conquistado gradualmente. Se soubermos olhar e ouvir o corpo, saberemos tanto nos posicionar como conduzi-lo ao longo da meditação, reconhecendo o momento certo de nos mover, de alongar, de descansar. O tempo de permanência na postura é uma condição pessoal. Ganhamos a permanência com a continuidade. Não podemos tomar o tempo dos outros como referência, tampouco temos recordes para quebrar. Tudo o que estamos fazendo, neste trabalho com o corpo, é apenas para chegar na experiência do não fazer. Portanto, qual é o sentido dos esforços ou da pressa, se o que temos para fazer é justamente não fazer nada?
Precisamos apenas ser contínuos — suaves e contínuos, profundamente amorosos com nós mesmos. A instrução última diz apenas isto: “Não faça nada. Descanse corpo, fala e mente”. Em essência, precisamos descansar. É isso! Precisamos descansar desde o lugar mais profundo de nós mesmos… Descanse. Apenas descanse!
Fazendo a prática de Yoga e sentando para meditar com regularidade, todos os estímulos e informações serão absorvidos e se tornarão naturais. Oferecemos tudo pacientemente, e vamos sentir o momento em que já não há mais esforço: o corpo mudou, está bem posicionado, em conforto, disponível e silencioso. Já nem o percebemos mais. Estável, ele ajuda no equilíbrio da energia, que por sua vez acalma nossa mente. Estamos sentados e tudo em nós nos faz simplesmente permanecer. Estabelecemos essa relação com o corpo sem nenhuma meta, não nos fixamos em imagens prontas e ideais — como aquelas fotos lindas dos livros de yoga! Não vamos escolher, mas tomar o nosso corpo para entender do que ele precisa. Todas as mudanças precisam vir de dentro para fora — essas nós não perderemos.
Não podemos aprisionar o corpo com nossos julgamentos e expectativas. Não há nada para negarmos em nós, nem formas a serem perseguidas. Vamos tomar tudo como caminho, tudo será conteúdo para o nosso trabalho. Aceitamos todas as limitações e trabalhamos com elas. Não há nada que não possa ser tocado e transformado. De cada limitação surgirá uma flor, uma liberação, um ensinamento. Se pensarmos assim, nos descobriremos como um manancial de sabedoria. Vamos mergulhar nessa prática, ávidos por nos conhecermos de verdade. Portanto, o que encontramos está bem, ali começa nossa prática, ali está nossa iluminação. Qualquer coisa que não seja a nossa própria condição é uma fantasia e não nos levará a lugar nenhum. Somente quando olhamos diretamente para nós mesmos, para o nosso corpo e tudo o que faz parte da nossa vida, nos colocamos na condição de iluminar e liberar. Nossos pés estão plantados no chão, o coração está aberto… relaxamos e integramos tudo! Estamos prontos: um vaso perfeito!
Texto publicado originalmente na edição impressa nº 27 da Revista Bodisatva I Verão – Outono de 2015 — Corpo, o Fundamento da Prática —, que você encontra em nossa loja virtual! Para ler mais textos do acervo clique aqui.
Marcia Baja é arquiteta, instrutora de yoga e facilitadora de práticas contemplativas. Iniciou-se no budismo tibetano em 1996, quando tornou-se aluna de Lama Padma Samten, e seguiu se aprofundando também com outros professores, especialmente Namkhai Norbu Rinpoche e Tenzin Wangyal Rinpoche. Em 2013, completou um retiro de 3 anos e 3 meses no CEBB, onde colabora como tutora em palestras, cursos e retiros. Além disso, tem oferecido oficinas e imersões em práticas contemplativas de corpo, silêncio e energia que ela vem desenvolvendo nos últimos anos. Para acompanhar a agenda da Marcia, siga no Instagram !
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1 Comentário
Os textos de Márcia Baja são muito elucidativos. O caminho do silêncio nos possibilita conhecer o nosso mundo interior que se articulará de forma mais coerente e lúcida com o mundo externo. A forma como enxergamos a nós mesmos, a compaixão e o acolhimento conosco nos indicará um olhar mais compassivo e assertivo com as outras pessoas e o mundo. Parabéns pelo texto!